Na noite de 12 de setembro de 2011, quase uma centena de modelos com vestidos esvoaçantes cruzaram o palco do Credicard Hall, na zona sul de São Paulo, descendo uma passarela curvilínea que imitava as vias da Ponte Estaiada, como é conhecida a Ponte Octávio Frias de Oliveira, perto dali. A cenografia ao fundo reproduzia o mastro em forma de “X”, rodeado de caixotes verticais e iluminados, que replicavam uma skyline genérica, sem qualquer particularidade. Entre os eventos internacionais sediados no Brasil nesta década, tivemos o inédito, feérico – e já esquecido – Miss Universo 2011.
Os produtores do concurso de beleza, realizado pelas Organizações Trump, elegeram a Ponte Estaiada como símbolo de São Paulo para o mundo. Um ícone da maior metrópole brasileira, em um evento com aura tão grandiosa quanto efêmera. A julgar por declarações recentes sobre a cidade, seu atual prefeito, João Doria, também é fã da estrutura de pistas curvas sustentadas por feixes de cabos de aço amarelos. Na semana passada, em tom lamurioso, declarou: “É inacreditável como a terceira maior capital do mundo, a sétima maior cidade do planeta, não tem edifícios icônicos. Qual é o símbolo da cidade? Não tem. Tem a Ponte Estaiada e o Masp, um projeto da década de 50, da Lina Bo Bardi, e ficamos aí. Não faz sentido São Paulo não ter uma simbologia arquitetônica à altura de seus arquitetos e de sua dimensão. Vamos ter edifícios icônicos, sim, São Paulo tem que pensar grande, é uma cidade global.”
É uma declaração rica em questões a serem analisadas, e que também remete às competições de beleza. A partir da fala de Doria poderíamos nos embrenhar pela discussão de quais outros edifícios marcam a paisagem paulistana (Copan, Sesc Pompeia, Conjunto Nacional, Banespão?), mas há um caráter subjetivo na querela que a torna infrutífera. Por sua vez, é interessante nos perguntar: precisamos de edifícios icônicos? O que é ser uma cidade global? “Pensar grande” equivale a construir novos ícones?
No começo deste milênio, governantes de diversas cidades pelo mundo, encantados com o “efeito Bilbao”, tentaram reproduzir a fórmula do Guggenheim na década de 90: atrair fortes instituições de alcance mundial, contratar um arquiteto cujo nome é uma grife, o qual fica encarregado de desenhar um enorme edifício de forma exuberante e suficientemente atrativa para se tornar uma ótima peça de marketing. E eis que qualquer povoado sem grande interesse pode se tornar uma cidade global. Assim surgiu a Dubai de nosso imaginário coletivo. Da mesma forma, materializaram-se dezenas de cidades chinesas, cujo voraz crescimento econômico transformou o que eram brejos em megalópoles com prédios delirantes.
Essa onda nos levou à era dos starchitects: Frank Gehry, Zaha Hadid, Rem Koolhaas, Norman Foster, Jean Nouvel, Santiago Calatrava, Renzo Piano. Independentemente da diversidade intelectual e dos distintos graus de qualidade dos projetos que fizeram, esses arquitetos viraram celebridades. Ultrapassaram a boa fama no circuito profissional e foram estampar capas de revistas de variedades. Assim foram contratados para deixar sua marca mundo afora: novas páginas de magazines, novos pontos turísticos, novas sedes de empresas multinacionais.
O porém é que há nessa ideia um atraso. Faz quase uma década que o rumo das transformações urbanas vai em sentido contrário. O crítico de arquitetura do New York Times, Nicolai Ouroussoff, percebeu já há um bom tempo o declínio da era dos starchitects, considerando a escassez do dinheiro fácil por causa da crise econômica mundial de 2008 e o discurso humanista do então presidente Barack Obama, em prol da construção de escolas, conjuntos habitacionais públicos e infraestruturas urbanas.
Mesmo que as coisas não tenham caminhado tal como descrito por Ouroussoff (Obama não conseguiu apoio em Washington para executar tantas obras infraestruturais quanto queria, e, para além de Thom Mayne, poucos grandes arquitetos participaram diretamente da gestão democrata), muitos são os indícios de que as edificações pirotécnicas saíram de moda.
Mais milionário que Doria, Michael Bloomberg fez uma administração na prefeitura de Nova York (2002-2013) com clara ênfase à vida dos cidadãos na calçada. O caminho dos pedestres entre suas casas e o trabalho foi melhorado tanto em ruas do Bronx quanto nas intervenções na Times Square e na Broadway, nas quais as pistas de carros deram lugar a praças pequenas e médias – o caótico trânsito de veículos deu espaço para cadeiras e mesas para a fruição da multiétnica multidão a pé. Some-se a isso os quilômetros de ciclovias feitos. A mais “icônica” intervenção urbana da era Bloomberg foi o High Line, parque resultante de um esforço público-privado de requalificação da estrutura elevada de uma linha de trem abandonada.
A gestão Bloomberg abriu caminho para o tom do debate urbanístico na presente década. Um dos luminares deste zeitgeist é o arquiteto e urbanista dinamarquês Jan Gehl, que cunhou o motto “cidades para pessoas” – de tão debatido já parece modismo. Lemas e propagandas à parte, fato é que tais ideias influenciaram, inclusive, o projeto feito pelo escritório de Jaime Lerner e apresentado pela administração Doria no último dia 26, na mesma cerimônia em que o prefeito pediu mais edifícios icônicos. No PowerPoint apresentado pelo escritório do arquiteto paranaense (que adoraria ser um starchitect brasileiro com fama capitaneada pela renovação urbanística de Curitiba no último quarto do século XX), há uma mescla entre construção de bulevares de espaçosas calçadas ativas com imagens de arranha-céus exóticos sem contextualização com o terreno que ocupariam no Centro de São Paulo. O projeto foi elaborado pelo Sindicato da Habitação (Secovi), representante de empresas da construção civil, e doado à gestão de Doria.
Outro importante indício do rumo da história são as escolhas recentes do prêmio Pritzker, o Nobel da arquitetura. Martha Thorne, diretora executiva da premiação, disse em entrevista à revista Bamboo ainda em 2014: “Um aspecto negativo da globalização é quando a arquitetura torna-se a assinatura de uma pessoa, como uma commodity que governos podem comprar para expressar uma marca, um poder.” Vários dos mais recentes premiados têm currículos a corroborar a afirmação acima. Wang Shu (vencedor em 2012) rema contra a maré chinesa, resgatando elementos – restos – de edificações vernaculares de cidades do interior do país para fazer uma arquitetura que resista à voracidade das demolições e reconstruções. Usando materiais reaproveitados, o japonês Shigeru Ban (2014) tem um relevante trabalho de produção de abrigos em locais devastados por desastres naturais. Já o chileno Alejandro Aravena (2016) tornou-se conhecido por um conjunto de casas em Iquique, no norte de seu país, no qual em meio a uma total escassez de recursos as construiu com as condições mínimas para uma habitação decente.
Coube ao mesmo Aravena a curadoria da última Bienal de Arquitetura de Veneza, no ano passado, que intitulou Reporting from the Front. Na mostra, o chileno destacou exemplos arquitetônicos que propunham resolver problemas reais do mundo, dando ênfase a atuações em países subdesenvolvidos. Nada de edifícios vistosos para instituições demonstrarem poder, o que passou a interessar eram intervenções simples mas engenhosas, que pudessem prover soluções.
Até como reação aos alertas do ano de 2016 – em que o cargo mais poderoso do mundo saiu das mãos de um estadista respeitado para um empreendedor que fez fortuna no mercado imobiliário –, o statement da próxima edição da Bienal questiona a postura ética do arquiteto e do urbanista ao atuar no mundo, seja qual for a escala e o alcance. Freespace, como foi batizada a Bienal de 2018, tem curadoria dos irlandeses Yvonne Farrell e Shelley McNamara e defende colocar a “generosidade do espírito e o senso de humanidade no centro da agenda arquitetônica, com foco na qualidade do espaço em si”.
Pois é, cadê os edifícios icônicos? Eles saíram da pauta há alguns anos. Hoje discutem-se mais questões ambientais (o banalizado termo sustentabilidade), mobilidade urbana ou a criação de novos usos para antigas edificações industriais. Seguindo os parâmetros colocados pelo próprio prefeito para sua gestão – buscar o que há de mais inovador no mundo e trazer para São Paulo –, vemos que a ambição de Doria por ícones na cidade flerta com o démodé. Construir prédios icônicos como sinônimos de “pensar grande” tem ares do pensamento da década passada. Os gostos e espíritos de época mudam – e, neste caso, saímos de um período de desvarios estéticos e financeiros para focarmos em questões mais respeitáveis e atemporais. Caso uma administração municipal paute-se por uma disputa de cidades globais, pode-se cair na armadilha de tratar assuntos sérios da vida dos cidadãos tais como um concurso de beleza. Cada concorrente coloca muita maquiagem e o vestido mais esvoaçante. Mas é tudo aparência. Ou truque.
Ao sugerir novos marcos, podemos ainda estar ignorando algo de muito particular ao próprio caráter de São Paulo: talvez o charme da pauliceia é ser mesmo uma cidade iconoclasta.