A principal lembrança que o crítico de arquitetura inglês Kenneth Frampton guardou de São Paulo após sua primeira visita à cidade, em 2010, foram as três horas de percurso, de carro, entre um hotel na região central e o Aeroporto Internacional de Guarulhos. Num veículo fechado, deslocou-se morosamente até carimbar na memória a medonha paisagem da marginal do rio Tietê – um fim melancólico às expectativas pelo encontro com uma natureza tropical rara ou com uma cidade vibrante e singular. Até para um estudioso que conheceu meio mundo, não há nada mais decepcionante do que chegar ou sair do Brasil por Cumbica.
Já na segunda passagem de Frampton, autor do fundamental História Crítica da Arquitetura Moderna (1980) e professor da Universidade Columbia, na semana passada, ele descobriu algo que havia passado completamente despercebido na vinda anterior, e que ele chamou de “aspecto intersticial” da metrópole. No fim da tarde de quinta-feira, 23 de novembro, nos encontramos no térreo do Copan e de lá andamos pelo Centro da cidade. Passamos pela praça Dom José Gaspar, entre a galeria Metrópole e os fundos da Biblioteca Mário de Andrade. Depois, cortamos o interior de um quarteirão ao atravessar a Galeria Nova Barão até chegarmos à rua Barão de Itapetininga.
Durante boa parte do tempo, o inglês de 87 anos olhava para baixo, prestando atenção na calçada – e nas pedras portuguesas, não tão familiares a ele. Levantava a cabeça, selecionava alguns edifícios, observava-os e emitia breves e taxativos comentários. Mas o que lhe encantou foi a vitalidade da multidão que caminhava por aquelas ruas para pedestres. Era uma São Paulo que não pertencia ao seu imaginário sequestrado pelo trânsito de automóveis: “Algo que a gente não espera. Você precisa entrar em São Paulo para encontrar de alguma maneira esse aspecto intersticial que ainda há aqui, apesar da megalópole.” Em uma cidade traçada com muitas pistas para veículos e calçadas ruins, ele deparou-se com algumas áreas remanescentes – na Bela Vista, no Centro antigo – com uma escala mais própria ao ser humano, com relações mais generosas entre os edifícios e as ruas, estimulando os vínculos de vizinhança e de um senso de comunidade.
Acompanhado de um grupo de arquitetos, caminhamos até o recém-inaugurado Sesc 24 de Maio, projeto de Paulo Mendes da Rocha com o escritório MMBB. Sentamos para conversar no antepenúltimo andar – no café, com uma área envolta por espelhos d’água, dois pavimentos abaixo da grande piscina de 25 por 25 metros a céu aberto. Frampton dedicou-se a divagar sobre a obra de Mendes da Rocha: falou sobre a dimensão pública que se encontra tanto no arco da Praça do Patriarca quanto na casa que o arquiteto projetou para si mesmo no Butantã. Sobre a mesma residência Frampton ressaltou que há nela um microcosmo, um mundo em si – outra característica que via como frequente em projetos do prêmio Pritzker de 2006. Por fim, destacou que o entendimento de Mendes da Rocha pela paisagem tinha uma dimensão geográfica – declarando-se um grande admirador do projeto para a baía de Montevidéu, onde uma incisiva intervenção na hidrografia da capital uruguaia poderia reconfigurar o sistema de fluxos e transportes da cidade.
Uma curiosa sensação de familiaridade permeia a conversa com Frampton, já que muitos de seus livros e artigos são leituras básicas a qualquer estudante ou estudioso de arquitetura. Antes de se tornar quase unanimidade no meio, o crítico ganhou protagonismo com uma dezena de ensaios, livros, como um dos fundadores da célebre revista Oppositions – periódico que reuniu entre 1973 e 1984 os principais textos de teoria da arquitetura do final do século XX – e com uma próspera atividade acadêmica, especialmente como professor em Columbia, em Nova York, desde 1972.
Pouquíssimos autores vivos se detiveram com tanto sucesso à hercúlea tarefa de escrever um bom compêndio da história da arquitetura nos últimos dois séculos – apesar de o autor consentir que “não vai ser atingido o projeto moderno, no seu senso utópico, vanguardista e em última medida conectado com a Revolução Russa. É uma causa perdida”. Apesar da crítica às vanguardas modernas do entreguerras (de Le Corbusier, Walter Gropius e sua Bauhaus, e tantos outros) que acreditavam na arquitetura e urbanismo como redentores da sociedade na Era da Máquina, a importância de sua História Crítica… para a formação dos arquitetos é incalculável.
Tanto que Frampton passou uma semana inteira no Brasil para ministrar duas palestras com base em seu mais recente livro, L’altro Movimento Moderno (2015), por enquanto publicado somente em italiano. A primeira apresentação foi em Uberlândia, no encontro brasileiro do Docomomo (organização para o estudo e preservação da arquitetura moderna) e, no dia seguinte à nossa conversa, falou para o auditório lotado da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo. No seu currículo é preciso notar também que, mais jovem e ainda vivendo na Inglaterra, Frampton teve uma pouco conhecida produção de projetos.
Questionei-o sobre a importância e os limites de escrever sobre arquitetura, e ele fez uma interessante digressão: “Qual é a minha imagem para mim mesmo? Sou um crítico? Um teórico? Um historiador? Considero desconfortável qualquer uma dessas classificações. Penso em mim como um escritor em arquitetura.” E prosseguiu: “Qual é a validade do meu trabalho? Ele pode encarnar uma nova ideia ou reformular uma ideia.”
Entre todas as suas formulações, a mais difundida foi a noção de “regionalismo crítico”, termo que não criou – provém dos também teóricos de arquitetura Alexander Tzonis e Liane Lefaivre –, mas desenvolveu para lançar luz sobre uma produção que não era do mainstream global, nem hegemônica. Ressaltava arquitetos com projetos que respeitam e relacionam-se com o lugar onde são implantados, dando valor a uma identidade local. Frampton associa tal ideia com os modos de fazer de construtores e projetistas de uma localidade determinada, com soluções técnicas específicas, usando recursos regionais, com a inteligência de lidar com condições climáticas características do lugar.
Ao me responder sobre a ideia de regionalismo crítico nos dias atuais, Frampton fez questão de distinguir o que há de nocivo e virtuoso quando nos deslocamos para a ideia de provincianismo: “Provincianismo negativo é quando a comunidade pensa em si como o centro do mundo. Provincianismo positivo é quando as pessoas da comunidade são confiantes quanto ao que fazem, não se sentindo subordinadas ou inferiores com o que estão criando.”
Isso demonstra a evidente contrariedade de Frampton à homogeneização das edificações no mundo e ao fenômeno da “cidade genérica” – grosso modo, quando urbes nos quatro cantos do planeta se parecem cada vez mais. O que me levou a questioná-lo se os stararchitects (quando o arquiteto se transforma numa celebridade, numa marca, como Jean Nouvel e Zaha Hadid, entre outros) seriam antagonistas ao “regionalismo crítico”? “Claro que sim”, respondeu Frampton. “O que stararchitects projetam não faz sentido na maior parte dos casos. Eles não se importam com os lugares onde constroem. Frank Gehry se irrita porque eu nunca escrevo sobre ele. Mas ele não precisa de mim. É difícil aceitar o que fazem o Gehry, o Rem Koolhaas, o Norman Foster mais velho. Eu tenho muito respeito pela produção antiga do Foster, mas agora ele se transformou numa paródia de si mesmo. O que é patético. Isso foi o que aconteceu com Oscar Niemeyer em algum momento: na metade final da carreira, ele se transformou numa paródia de si mesmo.”
As ideias urbanísticas do prefeito João Doria também entraram no radar: “Soube que o prefeito de São Paulo está procurando um arquiteto estrela cujo nome é uma grife para vir aqui, como em Dubai, para fazer alguma coisa estúpida que colocaria São Paulo no mapa. Essa obsessão é ridícula, isto é, essa sedução pela marca. Isso tem acontecido por muito tempo: é o efeito Bilbao. É uma imagem. É uma ilusão.” Poucas horas antes, Frampton havia visitado o Sesc Pompeia – que o encantou justamente pelo fato de, segundo ele, “não ser fotografável”.
Já que São Paulo voltara a ser mencionada, perguntei se ele achava que a noção de projeto urbano ainda seria possível na metrópole. Frampton não titubeou: “Eu acho que projeto urbano é cada vez mais inviável em qualquer lugar. Em cidades históricas, a gente talvez ainda consiga fazer projeto urbano. Mas, em megalópoles, eu não sei o que projeto urbano significa.”
O fenômeno das megalópoles é encarado por ele como problemático, porém, não menos que as consequências de um mundo em que, cada vez mais, as pessoas optam por obter produtos sem sair de casa, pela internet. Não que haja como retornar ao mundo não-virtual de antes ou se negar a tecnologia, mas é preciso perceber e lidar com o fato de que nós, moradores de grandes cidades, precisamos cada vez menos colocar o nariz para fora de casa ou do trabalho. Frente aos muitos estímulos apresentados numa tela digital, há o risco de que se torne obsoleto vivenciar a cidade. “Se pensarmos o que está acontecendo com os espaços no mundo devido a alguém como Jeff Bezos e sua Amazon, no limite, o objetivo é a eliminação de todas as grandes lojas de departamento e de todo o pequeno comércio também. É a total privatização do mundo, pois ninguém precisaria encontrar outra pessoa numa loja, numa rua. É um projeto muito obscuro.”
Talvez aí esteja o encanto de Kenneth Frampton pelo “aspecto intersticial” que, desta vez, encontrou ao caminhar por São Paulo. Naquelas ruas centrais com comércio popular, camelôs nas calçadas, galerias que enchem de vida o interior dos quarteirões, pode estar ali um último anteparo (ou mesmo o antídoto) à arquitetura Bezos.