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A democracia dos imortais

Na ABL, uma manobra regimental assegurou mais um ano de mandato ao atual presidente

01out2025_16h47
Ana Clara Costa

Merval Pereira (sentado, ao centro) em evento na ABL

O jornalista e imortal Merval Pereira completará mais um ano de vida em 24 de outubro, mas o presente veio antecipado. Presidente da Academia Brasileira de Letras (ABL), Pereira conseguiu em setembro estender por mais um ano seu mandato na chefia da instituição, que até poucos dias atrás fixava em quatro anos o tempo máximo de um titular no cargo. Pereira terminaria seu quarto ano em dezembro, mas acaba de ganhar o quinto. Ficar no poder mais do que o previsto, além de ser um sinal dos tempos, requereu articulação política e mudança de regras – tudo, claro, dentro das quatro linhas.

 

Na casa de Machado de Assis, é verdade que a democracia já teve dias piores. Na gestão do poeta Marco Lucchesi, que começou em dezembro de 2017, o limite de dois anos subiu para quatro numa canetada da diretoria. Já Austregésilo de Athayde, conhecido como “presidente eterno”, instalou-se por 34 anos no posto até morrer, em 1993, num reinado de fazer inveja a Stalin, que descansou nos 29.

 

Pereira ganhou mais tempo em razão de um argumento popular no meio político – ele vem tocando projetos que gostaria de concluir ainda em sua gestão, e não na seguinte. Um deles é o Dicionário da Língua Portuguesa, que será lançado pela ABL, com provável patrocínio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (Faperj). Há ainda a reforma do Petit Trianon, sede da instituição no Centro do Rio, e a venda de imóveis que pertencem à entidade. Resta também solucionar o imbróglio do Solar da Baronesa, uma antiga fazenda de café dos tempos do Império que foi doada à ABL e depois tombada, mas que a entidade não tem recursos para manter. 

 

 

 

Quando Athayde morreu, decidiu-se estabelecer um limite de dois anos para a presidência, que deveria ser referendada anualmente pelos imortais. Até 2019, era assim que funcionava. Mas a presidência de Lucchesi teve a ingrata tarefa de readequar os gastos da ABL aos tempos de crise econômica e vacas magras. O imortal empreendeu cortes de gastos e pessoal, além da redução de benefícios – medidas altamente impopulares. Entre as restrições estava o fim da verba de representação, que os imortais ganhavam indistintamente como incentivo para representar a ABL em eventos e palestras. Acabaram também as passagens aéreas pagas para todos os que viviam fora do Rio e quisessem assistir às sessões na sede. E os jetons, verba que recebiam pela presença em cada uma das sessões, foram congelados. Sem contar as demissões de funcionários que tinham décadas de casa, o que implodiu os ânimos da turma toda.

 

Como, ao final de dois anos, os ajustes ainda não haviam terminado e ninguém estava a fim de assumir o fardo de seguir cortando, acertou-se que ele poderia permanecer no cargo por mais dois anos, sempre com a votação anual como chancela. Um dos imortais, que pediu para não ter seu nome exposto, afirmou que recebeu apenas uma comunicação ao final de 2019 avisando da mudança. Mas que não havia “ambiente para indagações”. À época, tanto Pereira quanto o poeta Domício Proença Filho faziam parte da diretoria que assessorava Lucchesi nas decisões, incluindo a da prorrogação do mandato. A pandemia viria logo depois, agravando ainda mais o quadro: o Palácio Austregésilo de Athayde, prédio comercial construído em 1979 pelo antigo chefe justamente para que os aluguéis de suas salas bancassem a ABL, foi esvaziado em razão do isolamento social, o que derrubou a receita da entidade. Para economizar, e como não havia sessões presenciais, o jeton foi cancelado e só retomado depois da pandemia. Ao final dos quatro anos, quando Pereira assumiu, em dezembro de 2021, a situação era menos dramática. “Ele fez uma gestão de saneamento e entregou ao Merval as coisas num viés de equilíbrio”, diz o colega, elogiando Lucchesi.

 

Pereira manteve a austeridade nos gastos, os jetons passaram a ser reajustados abaixo da inflação e o nível do plano de saúde caiu “de excelente para bom”, nas palavras de um acadêmico. Ao mesmo tempo, a situação financeira está, de longe, muito melhor do que nas gestões anteriores. O prêmio Machado de Assis, que a ABL oferece a escritores anualmente, é financiado pela Light, um mérito de Pereira, que conseguiu os 100 mil reais anuais para a bonificação do ganhador. Ele também está em vias de fechar um convênio com o CCBB para uma série de eventos no ano que vem. Diante da aparente calmaria financeira, diferentemente do cenário de 2019, houve quem se questionasse sobre o porquê da permanência de Pereira.

 

 

 

O jornalista explica: “Lucchesi fez uma gestão importante, reorganizando a estrutura da ABL. Assumi em seguida, com o orçamento equilibrado, e demos continuidade a uma reforma, que está em curso. O meu último ano seria este, mas a maioria achou melhor que a atual diretoria ficasse mais um ano para terminar o que está sendo feito”, disse à piauí.

 

Realizar a vontade da maioria requereu coalizões e muito trabalho de bastidor. Primeiro, ocorre que nem o estatuto nem o regimento da ABL preveem dispositivos que permitam alterar a duração máxima de uma presidência – são quatro anos, sendo que em três deles há uma votação para referendar a permanência do titular e da diretoria. Como o ambiente não estava para canetadas, havia de se encontrar uma solução dentro das quatro linhas. 

 

Na análise minuciosa das regras, um inciso até então inofensivo do regimento saltou aos olhos e, de repente, pareceu ser suficiente para mudar tudo. Ele prevê que o presidente da academia possa nomear comissões especiais para “fins determinados”. Ou seja, para discutir qualquer coisa. E como uma comissão pode levar assuntos para serem debatidos e votados em plenário, a solução parecia perfeita para dar legitimidade à mudança. Bastava apenas convencer os imortais da ideia – ou alguns deles, já que muitos não participam ativamente de nada em razão da idade avançada e eventuais problemas de saúde.

 

 

 

Embora Pereira não tenha atuado na linha de frente das articulações, reconheceu aos colegas que desejava ficar mais tempo para conseguir concluir as pendências. Mas Domício Proença, que presidia a comissão, saiu-se com uma invenção muito mais vanguardista: que tal se os mandatos a partir de então fossem por tempo ilimitado? Desta forma, Pereira sairia quando, e se, achasse mais conveniente. Como nos tempos de Athayde…

 

Proença colocava na sala um bode maior do que o que já estava quando se cogitou a ampliação do mandato. A comissão, que teve entre seus membros, além de Proença, o ex-promotor e poeta Carlos Nejar, o escritor e advogado José Roberto de Castro Neves e o poeta e professor Antonio Carlos Secchin, acabou tendo de escolher entre duas propostas, e nenhuma delas era deixar as coisas como estavam. A maioria da comissão negou a presidência vitalícia, mas encaminhou para o plenário a ampliação de um ano – um desfecho de fazer inveja ao Centrão. Diante das circunstâncias, até Secchin, um dos que postulavam internamente para suceder Pereira, recolheu o time e defendeu a ampliação.

 

Quando o tema foi levado a plenário, nos bastidores havia estranhamento com a mudança, mas ninguém ousou abrir a discussão publicamente. Afinal, Pereira é respeitado no Petit Trianon, além de ser mais jovem do que a média (ele tem 75 anos), o que significa que uma guerra pública poderia contaminar o ambiente por anos a fio. Prezar pelo bom convívio interno é premissa basilar para se estar ali. A escritora Nélida Piñón, que morreu em 2022, chegou a explicar no programa Roda Viva o quanto o assunto é levado a sério: “Não se esqueça de que a relação que você vai estabelecer é para sempre, não há divórcio na Academia.”

 

 

Os aliados de Pereira, entre os quais os mais atuantes são o neurocirurgião e escritor Paulo Niemeyer Filho, seu amigo pessoal, e Proença, fizeram um trabalho de convencimento para que não houvesse dissenso. Como se tratava de uma mudança no regimento, e não uma eleição, não haveria voto secreto. Seria apenas uma deliberação – algo similar a uma votação simbólica, em que a decisão precisava ser unânime. Como o quórum da sessão que decidiria a mudança foi acima do comum, com a presença virtual de muitos imortais que moram fora do Rio, ficou claro para quem assistiu que houve um reforço no convite para o evento. “Foi feito um trabalho de calmaria pelo bem da ABL”, disse um interlocutor que acompanhou de perto os debates. Ao final da sessão, Pereira agradeceu a confiança, comovido. 

 

Nejar, que integrou a comissão, diz que a gestão de Pereira “é excelente” e que os próximos presidentes também terão direito aos mesmos cinco anos. Domício Proença disse à piauí que “as mudanças são regimentais e acontecem sempre que necessárias na vida acadêmica”. Tudo normal.  

 

Fora dos muros da ABL, a ampliação de mandatos nunca foi vista com simpatia pelo jornalista e imortal, que sempre achou salutar a alternância de poder. O título de um dos três livros que publicou – e que o cacifaram para a Academia – é O Lulismo no Poder (Editora Record), uma coletânea de suas colunas no jornal O Globo durante os dois primeiros termos do petista. Sobre a hipótese de uma mudança constitucional para permitir um novo mandato para Lula quando a presidenciável Dilma Rousseff havia sido diagnosticada com linfoma, em 2009, ele foi contra. Dizia que isso daria ao Brasil um ar “bolivariano”, mas que atendia aos interesses imediatos “desse grupelho político que vive à custa do poder”, que era como se referia à base de Lula. 

 

 

Quando Dilma se curou e ganhou, Pereira também criticou a dificuldade de Lula em abrir mão de sua influência, ao relatar que o presidente vinha interferindo na composição ministerial da sucessora. “Resta saber se ele fez isso porque ainda está no comando ou se está querendo continuar no comando depois do dia primeiro de janeiro de 2011”, escreveu. O ex-presidente José Sarney é imortal e, aos 95 anos, ainda aconselha políticos graúdos em Brasília, mas não foi ouvido nessa articulação específica. De qualquer forma, mandou dizer, por meio de uma assessora, que concorda com o desfecho: “Ele foi favorável, sim”.

 

 

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