Sempre fui fã da elegância da Pantera Cor-de-Rosa. Tudo no desenho é elegante. Do despojamento dos traços – que sempre ultrapassam um pouco os limites dos objetos que definem -, à forma enxuta como em poucas linhas os cenários são evocados, com uma levíssima sugestão de perspectiva, e que, junto com as grandes superfícies chapadas de cor, coloca o desenho em uma zona de indefinição entre a franqueza bidimensional e a ilusão de tridimensionalidade. Gosto também da paleta quente de cores esmaecidas que fornecem a tonalidade de fundo, deixando a figura rosa da pantera livre em seus movimentos. Esse prazer no jogo solto das cores me faz pensar em Matisse. E penso nele não apenas porque foi um exímio colorista, trabalhando com cores puras que certamente remetem a ilustrações infantis, mas porque talvez tenha sido ele, Matisse, o artista que, na tradição Ocidental, melhor dominou o uso da cor rosa. Foi o que li, certa vez, numa entrevista de Francis Bacon – outro grande mestre do rosa – com o que concordei de imediato. Não raro o pintor francês abre grandes áreas de rosa, mas jamais se torna enjoativo; nunca fere o equilíbrio de certa elegância clássica. É um feito e tanto basear a elegância no rosa – uma cor que tende muito facilmente ao imaginário de gênero e ao excesso, a conotações enfadonhamente óbvias, e que parece engolir as outras cores à sua volta. Para permanecer ainda no território dos desenhos animados, podemos dizer que isso é o que acontece, por exemplo, com a Penélope Charmosa, da Corrida Maluca: ali a cor rosa serve apenas para reforçar certo estereótipo de feminilidade. É o contrário do que acontecem em muitas telas de Matisse, e do que fez Blake Edwards em seu magnífico desenho animado. Neles, o rosa livra-se desse fardo simbólico e revela a beleza plástica que geralmente permanece encoberta por uma teia de associações e clichês.
Estúdio rosa, Henri Matisse (1911)
Há ainda uma outra dimensão dessa elegância que tento descrever (que está entranhada em cada linha da Pantera). Ela encontra um desdobramento no plano musical. Talvez não seja um mero acaso que Matisse tenha feito uma série de colagens de exuberante colorido, intitulada Jazz (1947), e que a personagem felina de Edwards tenha se tornado famosa tanto pela sua figura visual quanto pela vinheta jazzística que a acompanha.
O cavalo, o cavaleiro e o palhaço, Henri Matisse, série Jazz (1947)
Parece haver, nos dois casos, uma relação entre a atmosfera cromática visual e o colorido timbrístico do som. O prazer sensual da cor e do elemento tátil tornando-se tão (às vezes mais) decisivos quanto o desenvolvimento de temas, ideias ou narrativas. As formas estilizadas de Matisse (que não chegam a tornar-se abstratas), e os traços meio “sujos” do desenho de Edwards possuem certa afinidade com a forma mais aberta do jazz, seus desenvolvimentos temáticos mais relaxados, sem descambar para a abstração, ao mesmo tempo capazes de incorporar lances do acaso, certos gestos expressivos (“sujeiras”) que a música erudita sempre almejou barrar. Sobretudo, há alguma substância cool que emana tanto das figuras sentadas nos interiores de Matisse quanto da performance cênica de uma pantera muda, e que está no cerne de boa parte do jazz produzido no início dos anos 1960, quando Edwards cria a personagem.
No caso de Matisse, a inspiração no jazz é indicada pelo título da série, mas no caso do desenho o jazz está de fato presente. E não se trata apenas de um acompanhamento: houve uma fusão total entre desenho e música. O tema de Henry Mancini foi tão bem sucedido que tornou-se, mais do que uma tradução, um equivalente sonoro da pantera. É como se o movimento da pantera – seu jeito elegante de andar – fosse mimetizado pelo movimento sônico da música; o tom quente da cor rosa encontrando paralelo no timbre aveludado do sax tenor que emite a principal frase melódica. A simbiose é tão completa que por vezes penso que a música veio primeiro. Não veio. Ao contrário: conta-se que Mancini compôs a trilha vendo imagens do desenho, inspirando-se no jeito de andar da pantera. O fascínio da música vem disso: mais do que representar ou simbolizar, como a linguagem verbal faz, ela é capaz de imitar o movimento de seres, coisas e até de noções mais abstratas, como por exemplo “inverno” ou “revolução”. Foi nesse sentido que musicólogos ouviram no politonalismo e na violência rítmica da Sagração da primavera (1913) de Stravinski o prenúncio da Primeira Guerra; ou no adensamento cacofônico que marca o final do Bolero (1928) de Ravel, o prefácio da crise de superprodução que levou ao crash capitalista de 1929. Muito do significado musical vem da nossa capacidade de criar analogias de movimento, lançando assim uma ponte direta entre a música e as demais experiências do mundo. Robert Jourdain escreveu um belo parágrafo sobre isso, no qual curiosamente usa a mesma figura felina, dizendo que a música “pode imitar não apenas a fúria da pantera, mas também o que a pantera sente ao caminhar, pular ou escalar. Isso é alcançado replicando-se os ritmos desses movimentos, modulando harmonias para imitar as tensões e relaxamentos do corpo, e fazendo melodias que seguem a geometria das ações físicas”.
Voltando ao tema do desenho animado, é curioso notar que, antes da opção por Mancini, outro compositor havia sido convidado para fazer a trilha da pantera: Tom Jobim. No início dos anos 1960, Tom já era um compositor mundialmente famoso e bastante requisitado nos Estados Unidos. Sua música era apreciada por ouvidos escolados na tradição do jazz, com a qual ela, de fato, dialogava abertamente. Mas Tom não aceitou o convite. Por um lado, sorte nossa: não sei o que seria da Pantera (nem do rosa) sem o magnífico “ente” musical de Mancini. Por outro, fico pensando em como ela ficaria depois que passasse a transitar sobre acordes e melodias jobinianas – talvez ainda mais malandra e elegante, mais escorregadia, com um toque de leve melancolia… não sei. Mas se eu fosse escolher, hoje, um substituto nacional para a trilha de Mancini, talvez eu ficasse com um sofisticado baião de Waldir Azevedo, Delicado. Eis um outro tema que se impõe não tanto pela beleza, nem pelo impacto emocional, mas porque corporifica magistralmente uma singular elegância de movimento, um jeito de estar com o corpo no mundo.