Combinação de progresso e espanto, de promessa e perigo, o que a esburacada e enlameada BR-163 me ensinou sobre o Brasil
06jul2017_18h40
Simon Romero
tradução de Sergio Flaksman
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A BR-163 é só uma estrada. Mas quando os céus do Pará prorrompem em chuvas, ela se transmuta. As rodas dos caminhões carregados com a soja colhida no interior do Mato Grosso giram em falso na lama. Mesmo ao volante de uma cobiçada Hilux, como eu numa viagem sacolejante pela Amazônia, é questão de sorte se desviar dos buracos do tamanho de piscinas de brinquedo. Em certos pontos da pista, os caminhoneiros dão de ombros e concedem a vitória ao incontrolável, dispondo seus veículos numa fila de ordem impecável. É esperar a lama secar. Um processo penoso, que pode levar dias. Ou semanas. Alguns exportadores abandonam cargas destinadas à China. As autoridades deslocam militares para levar comida aos motoristas parados. Um caminhoneiro que entrevistei ao lado da estrada me disse: “Esse lugar parece um pedaço do inferno.”
Quando a piauí me pediu um artigo sobre o que aprendi no Brasil como correspondente do New York Times, pensei em temas como o advento do império da lei, a húbris dos herdeiros do poder de Brasília, o desassossego que transformou o país numa superpotência no campo da música, o legado do tráfico de escravos, a conquista sofrida pelos povos indígenas e a transformação do país – ainda dependente de ajuda alimentar na década de 60 – numa potência agrícola tropical que hoje alimenta o mundo. A memória da ditadura militar, que enviou massas de trabalhadores à Amazônia nos anos 70 para construir a BR-163, ainda era recente quando cheguei ao Brasil em 1990 para passar um ano na Universidade de São Paulo. A economia estava um caos. A população estava atônita com o congelamento de suas contas pelo governo de Fernando Collor. A USP era vibrante e dilapidada, paralisada às vezes por greves. Durante as aulas, os professores fumavam em plena sala; os alunos fumavam enquanto discutiam novas ideias.
Prédio da Universidade Federal de Mato Grosso, em Cuiabá, 2015.
Para além da Cidade Universitária, em São Paulo, com seu mar de arranha-céus, era um festival de horrores do desenvolvimento urbano – a “grande boca de mil dentes” de que falou Mário de Andrade –, replicado a seguir em cidades por todo o Brasil, mesmo na Amazônia. Amigos que conheci na época me perguntavam por que eu tinha escolhido aprender português e vir para o Brasil, quando podia ter ido passar um ano em alguma cidade ordeira e segura da Europa. Claro, adorei São Paulo e fiquei fascinado com o processo brasileiro de saída do período autoritário. Voltei ao país anos mais tarde como repórter de economia, e acabei sendo contratado em 1999, em São Paulo, como colaborador do New York Times. Depois de períodos de trabalho em Houston e Caracas, voltei para o Brasil como chefe do escritório do jornal em 2011, época em que pairava no país uma sensação de orgulho, produzida por triunfos como a transmissão democrática do poder, a redução da pobreza e um invejável crescimento econômico. O Brasil parecia ter finalmente descoberto o caminho para o desenvolvimento como uma democracia plena e potência mundial.
Mansões à venda em Lucas do Rio Verde, Mato Grosso.
Ainda assim, a cada viagem que eu fazia para a Amazônia, as peculiaridades do progresso do país ficavam mais nítidas. A narrativa entusiástica promovida nos corredores dos Ministérios de Brasília não correspondia inteiramente ao que eu encontrava in loco na maior bacia hidrográfica do mundo. O rebanho de gado do Pará estava em expansão, mas jagunços assassinavam trabalhadores rurais em Marabá. Rondônia se gabava do aproveitamento do potencial energético do rio Madeira com a construção das barragens de Jirau e Santo Antônio, mas motins anárquicos de trabalhadores mostravam como esses lugares podiam transformar-se em barris de pólvora. Manaus emergia como território conflagrado na guerra sangrenta entre quadrilhas pela supremacia no tráfico de cocaína. Cidades como Parauapebas, Alta Floresta e Altamira viviam um crescimento explosivo da população, refletindo o quanto a mineração, a agricultura em grande escala e os projetos energéticos vinham transformando a Amazônia na região de crescimento mais acelerado do Brasil.
A Arena Pantanal, em Cuiabá.
À medida que fui conhecendo a Amazônia, o Cerrado e outras partes do país, descobri que a BR-163, esburacada e coberta de lama, com sua mistura de perigo, progresso, fascínio e exasperação, podia simbolizar o futuro do próprio Brasil. Embora às vezes intransitável, pode-se dizer que a estrada, com seus quase 1 800 quilômetros entre Cuiabá e Santarém, inclui-se entre as artérias mais importantes do país, por onde passa a produção agrícola do Mato Grosso, por exemplo. Não sei se foi essa a razão que motivou os governos militares brasileiros a construir a estrada, considerada uma questão de segurança nacional sob o lema “Ocupar para não entregar”. Mas nas várias viagens que fiz pela BR-163, os colonos estabelecidos ao longo da estrada deixavam claro o quanto ela era crucial para o seu sustento.
Fotografia num prédio público de Lucas do Rio Verde nos anos 70.
Nenhum outro ponto da estrada representa melhor o potencial do Brasil do que Lucas do Rio Verde. Localizada em Mato Grosso, numa área de transição entre o Cerrado e a Floresta Amazônica, Lucas recebeu seus primeiros colonos nas décadas de 70 e 80. Hoje, a cidade de cerca de 60 mil habitantes tem avenidas largas, praças arborizadas e escolas públicas invejáveis, com instalações semelhantes às dos países ricos e industrializados. Parei em Lucas em 2015 para escrever sobre uma ambição da China: construir uma ferrovia transcontinental, projeto recebido com certo ceticismo pelos barões da soja entrevistados por mim. Descreviam a burocracia colossal e o processo infernalmente complexo de obtenção de licenças no Brasil, dizendo-me com ar resignado que tanto a soja quanto os alimentos processados pelas indústrias da cidade continuariam a ser escoados pela BR-163.
Ciclovia em Lucas do Rio Verde.
Por outro lado, muitas pessoas que conheci em Lucas irradiavam otimismo ao falar da cidade. Marino Franz, ex-prefeito local, que se transferiu para Mato Grosso depois de crescer em Santa Catarina, declarou que sua expectativa era de que Lucas chegasse aos 500 mil habitantes. Vi casarões futuristas à venda, e ouvi falar de fazendeiros que voavam para Cuiabá ou São Paulo nos passeios de fim de semana. A próspera agência local dos equipamentos agrícolas John Deere podia estar localizada em Iowa. Ainda assim, Lucas passava uma certa impressão de cidade-fantasma. Quase nunca vi usarem sua gloriosa rede de ciclovias. Alguns dos agricultores que encontrei queixavam-se da solidão envolvida no cultivo da soja, já que a mecanização requer pouquíssima gente para o trabalho na terra. Mas, se lembravam que pelo menos até a cidade de Sorriso – maior e ali perto –, a estrada era asfaltada. Entretanto, quando eu revelava que meu plano era seguir para o norte, até os ermos do Pará, quase sempre eu recebia olhares de incredulidade.
Placa em homenagem ao general Médici no Hotel Tropical de Santarém, Pará.
Meus predecessores no New York Times já haviam feito incursões ao interior do Brasil para contar como os governantes tinham tentado colonizar regiões de população esparsa construindo estradas. “A possibilidade de conquista final da Região Amazônica despertou um novo espírito”, escreveu Tad Szulc em 1958 sobre a construção do que viria a se tornar a rodovia Belém-Brasília. Ainda assim, Szulc, imigrante que frequentou a Universidade do Brasil (hoje Universidade Federal do Rio de Janeiro) depois que sua família mudou-se da Polônia para o Rio na década de 30, disse que os trabalhadores envolvidos na construção da estrada expunham-se a riscos nos acampamentos, com a malária a água contaminada que bebiam e emboscadas. “Só por segurança, recomenda-se a todos que mantenham à mão seu revólver, fuzil ou facão de mato”, conta ele. A ditadura militar acelerou tanto o frenesi de abertura de estradas que outra correspondente do New York Times, Marvine Howe, escreveu em 1975 sobre o sonho do general Emílio Garrastazu Médici, de construir a Transamazônica para atrair colonos do Nordeste miserável: “Dizem que traçou uma linha mais ou menos paralela ao Amazonas nos pontos mais estreitos onde recebe os principais afluentes. Quando os construtores da estrada chegaram ao terreno, encontraram inúmeras surpresas. A bacia não é plana, como parece do ar, mas tem muitos morros, alguns com até 300 metros de altitude. O que retardou consideravelmente os trabalhos.”
Vista aérea de Novo Progresso, Pará.
Na época em que me estabeleci de vez no Brasil, em 2011, havia quem dissesse que a conquista da Amazônia, para o bem ou para o mal, finalmente estava prestes a acontecer. Claro que partes da região continuavam em desordem. Mas serviços como eletricidade, educação pública e saúde básica começavam a chegar a povoados distantes. Essas conquistas contrastavam com o abandono a que o Estado relegava as áreas de floresta nos países vizinhos como a Colômbia, onde cobri longa e sangrenta guerra envolvendo guerrilheiros, paramilitares e as forças armadas. Lembro do meu espanto ao ver um ônibus escolar amarelo, novinho, percorrendo um trecho remoto e sem asfalto da BR-163 no Pará, um projeto para aumentar a frequência escolar que me lembrou os ônibus que me levavam para a escola no norte do Novo México. O advento de focos da chamada civilização teve um altíssimo preço. Alguns povos indígenas brasileiros continuavam livres de contato nos rincões mais distantes da Amazônia, mas outros, como os Kreen-Akrore, foram devastados pela exposição às doenças trazidas pelos trabalhadores da BR-163. A tribo, também conhecida como Panará, despertou a atenção do mundo no pioneiro documentário The Tribe That Hides From Man (A Tribo que se Esconde do Homem). Tragicamente, os sobreviventes foram removidos num avião da Aeronáutica para o ParqueIndígena do Xingu. Entretanto, depois de recuperar pouco a pouco o contingente de sua população, os Panará, com a ajuda de grupos de apoio aos direitos indígenas, puderam regressar à aldeia de Nãsepotiti, perto da divisa entre o Mato Grosso e o Pará. Enquanto eles continuavam a lutar contra a dominação, a sociedade civil dava a impressão de funcionar em alguns casos.
Ônibus escolar na BR-163, no Pará.
Mais de uma década atrás, em 2004, durante a era Lula, autoridades proclamaram que a BR-163 estaria totalmente asfaltada em breve. Multinacionais, ONGs e as Nações Unidas produziram pareceres sobre o projeto, financiados em parte pela União Europeia. Antes de Marina Silva romper com o PT para traçar seu próprio rumo político, elaborou um plano, na qualidade de ministra do Meio Ambiente de Lula, destinado a evitar o desmatamento e transformar a BR-163 num símbolo do desenvolvimento sustentável. Um monitoramento avançado por satélite permitia ao governo rastrear queimadas ilegais, ao mesmo tempo em que o Ibama enviava funcionários ao local. Acompanhei batidas na Amazônia envolvendo agentes armados, operações de causar inveja a outros países com florestas tropicais em perigo, como a Indonésia ou o Congo. A disposição do Brasil em combater o desmatamento parecia afinal decidida a exibir os dentes.
Veículo do Circo Karolaine estacionado às margens da BR-163, entre as cidades de Trairão e Moraes Almeida, no Pará.
A longa viagem pela BR-163 até o posto avançado de Novo Progresso, no sul do Pará, deixava claro que a pavimentação da estrada e a proteção da floresta continuavam metas difíceis de cumprir. Em 2014, o asfalto de Mato Grosso deu lugar a uma estrada de terra assolada por tempestades de poeira, caminhões atolados na lama e um céu tão carregado de fumaça das queimadas que os helicópteros do Ibama sequer conseguiam decolar. Às vezes, na estrada, descortinam-se maravilhas inesperadas, como um lugar no Pará, entre Trairão e Moraes Almeida, em que cruzei com o surrado Circo Karolaine, que percorria lentamente a Amazônia ao estilo de Bye, Bye, Brasil. A incapacidade de concluir a pavimentação da estrada ajudou a preservar alguns costumes que parecem pertencer a outra era. Dada a importância da BR-163, por que é tão difícil levar a cabo seu asfaltamento? Claro, as condições da Amazônia são sempre um desafio. Mas noutras partes do mundo estradas atravessam florestas tropicais, a tundra e gargantas alpestres de difícil acesso. Mais de dois mil anos atrás, os romanos conectaram cidades do seu Império com estradas de traçado impressionante, para não falar dos túneis e viadutos. As autoridades chegaram a asfaltar muitos trechos, ainda que persistissem tantos buracos. No Pará, quando fiz perguntas sobre os atrasos, ouvi explicações falando de corrupção, ineficiência e promessas descumpridas, males que afligem projetos públicos ambiciosos em muitas partes do Brasil.
Vista aérea do desmatamento na área próxima a Novo Progresso.
Ainda assim, os criadores de gado, madeireiros e garimpeiros que conheci em Novo Progresso, cidade de uns 25 mil habitantes, não pareciam preocupados com a situação da BR-163. A sensação de isolamento facilitava, de certas maneiras, a destruição da floresta. Funcionários do Ibama me contaram que alguns desmatadores operavam em períodos de intensa nebulosidade, ou mesmo de chuvas mais fracas, para evitar o rastreamento das queimadas por satélite. Outros ateavam fogo à floresta lançando coquetéis Molotov de pequenos aviões. A provocação envolvida em ações como essas imbuía de orgulho nacionalista alguns habitantes de Novo Progresso. “O aquecimento global é uma invenção tramada por interesses nos países ricos que cobiçam a Amazônia”, disse-me Agamenon da Silva Menezes, criador de gado e negociante, com uma convicção que parece ecoar a dos seguidores de Donald Trump nos Estados Unidos. Em Novo Progresso, as equipes do Ibama receberam tantas ameaças de morte que, em suas missões, precisavam do apoio de unidades policiais de elite. Como numa guerra, uma rede de informantes a serviço dos grileiros acompanhava os movimentos da polícia ambiental. Depois que saí de Novo Progresso, agentes da Polícia Federal e do Ibama prenderam Ezequiel Castanha, importante homem de negócios da cidade, dono de um supermercado e de uma concessionária de automóveis, acusado de orquestrar uma das maiores redes de desmatadores da Amazônia por meio de uma série de empresas de fachada. “Não me arrependo de desmatar”, gabou-se Castanha antes de ser preso. “Se não fosse o desmatamento, o Brasil não existia.” Depois de alguns meses, Castanha foi liberado após ser beneficiado por um habeas corpus.
Ação de combate ao desmatamento perto de Novo Progresso.
Saí apressado de Novo Progresso, preparando-me para uma duríssima viagem de oito horas até Itaituba. Oficiais da Força Nacional me avisaram que assaltantes vinham atacando os caminhões que percorriam aquele trecho. No que me pareceu o meio de lugar nenhum, encontrei um homem a cavalo, João do Nascimento Silveira, de 73 anos, que tinha migrado do Paraná para o Pará nos anos 80. “Encontrei meu caminho para a liberdade quando me mudei para cá”, ele me disse, sorrindo enquanto descrevia uma vida derrubando a floresta, plantando e criando gado. Não parecia incomodado com o ronco dos caminhões que passavam carregados de soja, levantando uma poeira que entope as narinas. Em certos pontos, a poeira levantada era tanta, que limitava seriamente a visibilidade, eu me perguntava como os caminhoneiros conseguiam evitar colisões uns com os outros. Algum dia as autoridades vão dar conta de concluir o asfaltamento, imaginei, e com o asfalto há de surgir outro tipo de sociedade: mais eficiente, mais rica, mas pelo menos tão destrutiva quanto as incursões anteriores pela maior floresta tropical do mundo. E quanto à ausência da lei ao longo da BR-163? Num planeta ávido pelas riquezas da Amazônia, conseguirá o Brasil utilizar os recursos da região ao mesmo tempo em que desenvolve um maior apreço pela Justiça? Quando as chuvas caíram, na longa viagem até Itaituba, as nuvens de poeira se reduziram a brincadeira de criança. No retrovisor, os céus enevoados e tomados pela fumaça recuavam até o horizonte paraense. Em certos trechos enlameados, a Hilux girava sobre seu eixo, e eu não sabia dizer em qual direção apontava. Tentava lembrar que a BR-163 é só uma estrada.
Outro trecho da BR-163, no Pará.
CLIQUE NO MAPA E ACOMPANHE O TRECHO PERCORRIDO PELO JORNALISTA SIMON ROMERO A BR 163 tem uma extensão de 3000 quilômetros cortando o Brasil do Rio Grande do Sul ao Pará. O jornalista Simon Romero percorreu o trecho saindo de Cuiabá rumo ao norte do país – totalizando 1800 quilômetros. Ali, os sinais de um progresso distópico começam a aparecer à medida que a estrada deixa de ser asfaltada