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A experiência total de uma mulher

A história de Mirtes de Souza, cujo filho de 5 anos caiu de um prédio no Recife

24out2025_14h15

Mirtes de Souza: ela precisa lidar o tempo todo com a culpa de estar seguindo com a sua própria vida, depois da morte de seu filho. “Por onde eu ando, sou vista como a mãe do Miguel”, diz

Mirtes de Souza perdeu a conta de quantas vezes relatou que naquele dia 2 de junho de 2020 ela desceu para passear com a cadela da família para a qual trabalhava no Recife, e a patroa lhe disse: “Deixa o Miguel aqui que eu passo o olho nele.” Que tinha levado o filho para o trabalho porque a escola estava fechada por causa da pandemia. Que, ao retornar do passeio com a cadela, encontrou o filho estirado no pátio do prédio, depois de cair do nono andar. Que, apesar de ter fraturas expostas, o menino ainda respirava. Que a patroa os levou para o hospital de carro, mas, quando chegaram lá, era tarde demais.

 

Ela também já se cansou de repetir que pretendia voltar a trabalhar algumas semanas depois da morte do filho de 5 anos, mas, quando descobriu que Miguel foi deixado sozinho no elevador, ficou tão atordoada que acordou a mãe aos gritos: “Mãinha, eu não trabalho mais para a Sari. A Sari matou o meu filho. Ela se refere à empresária Sari Mariana Costa Gaspar Corte Real, para quem trabalhava como cozinheira.

 

Na piauí deste mês, Thallys Braga conta a história dessa mulher que, como ele escreve, durante os cinco anos que passou com seu filho, Miguel, viveu uma experiência humana total, de vida e de morte. O que aconteceu desde então virou uma confusão de eventos na sua cabeça. Ela passou a contar a passagem do tempo tendo como referência, sempre, o dia 2 de junho, a data em que perdeu o filho em 2020. Lembra, por exemplo, que nesse dia, em 2021, estava prostrada e sem saber como organizaria a vida prática.

 

 

 

Ela e a mãe ficaram sem emprego depois da morte de Miguel. Se sustentavam graças à ajuda de pessoas solidárias ao seu luto, principalmente daquelas do movimento negro. Os ex-patrões pagaram o velório de Miguel e não ofereceram nenhuma outra ajuda. “Nós demoramos até para receber de volta as roupas e os sapatos que ficaram na mansão (da cidade) de Tamandaré”, diz. Até agora, Souza também não recebeu nenhuma reparação pela morte do filho.

 

Hoje, aos 38 anos, ela conserva uma disposição juvenil. Seus olhos, pequenos e escuros, estão quase sempre alegres. Ela é bem-humorada e ri por qualquer coisa. Reage com desconfiança a gentilezas. “Mãinha é a única família que eu tenho hoje. Levo ela comigo aonde for.”

 

Nos dois dias que a piauí passou ao seu lado no Recife, ela foi abordada oito vezes na rua. Teve também que interromper todas as refeições para devolver abraços, ou agradecer o cumprimento de pessoas que diziam coisas do tipo: “Tu é uma guerreira”, “Vai para cima deles”, “Você não está sozinha”. No Paço do Frevo, um museu no Centro da cidade, uma senhora esbugalhou os olhos quando viu Souza: “Não acredito que é tu.” Ela cutucou duas amigas e disse: “Essa é Mirtes, a brava mãe de Miguel.” Ela sorriu com timidez. “Por onde eu ando, sou vista como a mãe do Miguel”, disse Souza, que precisa lidar o tempo todo com a culpa de estar seguindo com a sua própria vida.

 

 

 

Ela se engajou no movimento negro e, a fim de se inteirar do léxico jurídico e do processo judicial em que está envolvida, resolveu estudar direito. No dia 9 de junho, Souza recebeu nota máxima na monografia que apresentou em uma universidade privada do Recife. Escolheu como objeto de estudo o trabalho escravo contemporâneo no Brasil, com ênfase nas trabalhadoras domésticas. A pesquisa traz também um relato em primeira pessoa de tudo o que ela viveu na casa de Sari Corte Real. “Enquanto apresentava o meu trabalho, eu só conseguia pensar no meu neguinho”, contou.

 

Assinantes da revista podem ler a íntegra da reportagem neste link.

 

 

 

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