Além do jogo que encanta, dos bons organizadores no meio-campo e de tantas outras coisas técnicas, nosso futebol também tem sentido falta de histórias pitorescas. Como as que meu pai contava e eu ouvia meio cabreiro, desconfiado de que havia exageros aqui ou ali, da mesma forma que os jornalistas Sandro Moreyra e João Saldanha exageravam – quando não simplesmente as inventavam – nas histórias sobre Manga e Mané Garrincha.
Nos tempos futebolísticos que vivemos, com o politicamente correto deixando tudo quase sempre muito chato, certos casos do passado soam falsos ou, ao menos, improváveis. Mas muitos deles são reais. Pois vem aí um livro sobre um deles. Jogo do Senta, do jornalista Paulo Cezar Guimarães, descreve em detalhes o que houve no estádio de General Severiano em 10 de setembro de 1944, quando os jogadores do Flamengo sentaram em campo aos 31 minutos do segundo tempo e assim permaneceram até o apito final, impedindo a continuação da partida que o Botafogo vencia por cinco a dois.
Existe a versão dos botafoguenses e a dos rubro-negros; a imprensa que mete o pau na atitude do Flamengo e a que tenta limpar a barra; há fotos, reproduções de matérias publicadas nos jornais do dia seguinte, entrevistas com gente que foi muito importante na história do Botafogo (Zagallo, Paulo Cezar Caju, Paulinho Criciúma e muito mais); e tem também, sejamos justos, a indisfarçada tentativa de transferir para o Flamengo a fama de chororô, que acompanha o clube da estrela solitária desde 1904. É do jogo.
Só para deixar os torcedores – sobretudo os botafoguenses – com água na boca, Questões do Futebol traz em primeira mão pequenos trechos de um dos capítulos de Jogo do Senta.
Com as palavras, Paulo Cezar Guimarães:
Para quem achava que "esse jogo não existiu, "isso é uma calúnia", "quero ver você provar", "cadê as fotos?", os jornais da época abriram páginas e páginas durante dias e dias para falar do "chororô rubro-negro".
O Globo,em sua edição matutina, publicou com destaque no alto da página 2: "EXPRESSIVA VITORIA DO BOTAFOGO". Na abertura, a informação: "Quando vencia o alvi-negro por 5×2, o Flamengo recusou-se a continuar a disputa – Sentaram-se em campo os rubro-negros, faltando quatorze minutos para o final". No texto, o jornal escreveu:
"(…) o público, que não tivera o prazer de ver um match integral da peleja principal da rodada anterior, voltou a ser ludibriado com a atitude dos players do bi-campeão (…)".
A narrativa conta detalhes de como foi o jogo, até chegar ao que o jornal chamou em um dos intertítulos da matéria de "ATITUDE DE INDISCIPLINA" sobre a reação dos rubro-negros ao quinto gol dos alvinegros:"Confirmado o tento pelo juiz, os rubro-negros negaram-se a prosseguir na disputa e, depois da consulta feita por Jayme ao vice-presidente do clube, senhor Francisco de Abreu, os players sentaram em campo, aguardando o apito final do árbitro. A assistencia vaiou demoradamente a atitude indisciplinada dos jogadores, vivando os alvi-negros, quando foi dado por terminado o encontro."
Depois de afirmar que o segundo gol do Flamengo foi irregular, pois Zizinho empurrou o jogador do Botafogo, o jornal relatou que o juiz Aristides Figueira "como demonstrou em outras ocasiões, não possue condições físicas para aguentar os dois tempos da partida." No final da matéria, no entanto, o jornal descreveu:"(…) Devido à rapidez do lance, não se sabe ao certo o que ocorreu. Do local em que nos encontrávamos, pela altura da trajetoria da pelota e a maneira que voltou ao campo, temos a impressão de que bateu no ferro do fundo do arco. O juiz apitou para o centro do campo."
Mais um pequeno trecho, que reproduz matéria publicada pelo Jornal do Brasil:
"(…) A rodada de ante-ontem teve para tirar-lhe o brilho a inexplicável atitude da diretoria do C. R. do Flamengo, ordenando ao quadro de seu clube que não prosseguisse na partida quando o juiz consignou o 5º goal do team botafoguense. Mesmo que o juiz tivesse errado, o que somente podem dizer com mas (sic) segurança as pessoas localizadas próximo ao retangulo, se a bola bateu por dentro, no ferro, como afirma o árbitro ou na trave, por fora, como querem os jogadores do Flamengo, ainda assim a atitude da diretoria do Flamengo não tem justificativa. Foi por demais violenta."
A parte seguinte do texto justifica o subtítulo deste livro, “a verdadeira origem do chororô":
"Quando as reclamações serenavam e se tinha a impressão de que o jôgo ia continuar, viu-se entrar em campo o diretor de football do Flamengo, Dr Alfredo Curvelo e determinar ao quadro que não prosseguisse na partida. Como era natural, semelhante gesto que dispensa qualquer comentário para condená-lo causou verdadeiro espanto e grande decepção. Os jogadores obedeceram à ordem recebida e se negaram a atender ao juiz, que os chamava para o reinício da partida. Finalmente o juiz, à vista da negativa, deu a partida como terminada, nos 31 minutos, com a contagem de 5 a 2 a favor do Botafogo."
Mais unzinho:
O Diário da Noite, que deu início aos Diários Associados de Assis Chateaubriand e em alguns momentos suplantou O Globo (jornal que só veio a se consagrar mais tarde), no dia seguinte à partida, foi um dos poucos jornais, além do Globo e do Jornal dos Sports, a publicar uma foto dos jogadores rubro-negros sentados no gramado. O título da matéria dizia que “Quando o Botafogo marcou o 5º goal o Flamengo resolveu parar em campo.”
Tratando o caso como uma “vergonha inominável”, o jornal relata a entrada em campo de Alfredo Curvelo, diretor de futebol do clube da Gávea, após o gol de Geninho, procurando o capitão Jaime “para transmitir a decisão da diretoria, no sentido de não continuar a luta!” Informa, ainda, que “o quadro rubro-negro ficou sentado no gramado” e que, após o apito final do árbitro, “saiu de campo sob vaias, sem que sequer tivesse a gentileza de saudar o rival que o venceu.”
Sobre o lance em questão, os "correspondentes" afirmam não ter visto o lance com clareza, mas ressaltam:
“O Flamengo discute a existência de um 5ª goal, numa partida em que estava nitidamente superado no gramado e em que perdia por 4×2. Nada mais ridículo e inoportuno, portanto. Vontade de fazer barulho, de criar caso, de estabelecer confusão. Ou, talvez, de deslustrar a vitória merecida e brilhante de um rival que merecia maior respeito.”
E esse último aperitivo, só para deixar claro que meter o pau no juiz é algo que de há muito faz parte das nossas discussões de futebol:
Já a respeito do árbitro Aristides Figueira, o Mossoró, o periódico morde e assopra. Por um lado, afirma que “com aquelas banhas, não acompanha a bola como devia” e que “não tem a energia necessária para punir os elementos que o insultam durante a partida”, mas salienta: “Se errou no lance reclamado, teve o único erro grave na arbitragem de ontem. E isso não bastaria para que o Flamengo fizesse o que fez.”
Quem sabe, com Jogo do Senta, autores e editoras não se animam a recuperar e publicar muitas outras dessas deliciosas histórias que fazem a história do futebol brasileiro? Lançamento em 10 de setembro de 2014, comemorando os setenta anos do inusitado acontecimento.