Era véspera do encerramento da romaria de Nossa Senhora das Dores, em Juazeiro do Norte, no Ceará, um dos principais polos de turismo religioso no Brasil. Naquela noite de sábado, 14 de setembro, os milhares de romeiros que chegaram à cidade para cumprir promessas e louvar a santa se preparavam para a última procissão, no dia seguinte. Mas chegou uma “carreta furacão” na Praça Padre Cícero, no Centro da cidade, para delírio das crianças que acompanhavam os pais em romaria – a versão cearense se chama Trem Tsunami. Não havia imagem de santa no andor que competisse com o Chaves, o Fofão e o Homem Aranha em cima do trenzinho iluminado e musical que faz sucesso em cidades do interior do Brasil.
A fila rapidamente se formou, dando voltas na praça. Assim que a carreta completou sua lotação, com sessenta pessoas frenéticas, entre adultos e crianças, o motorista apertou o play na primeira música: “Hoje eu levantei da cama/ Tomei meu café/ Dei um beijo nas criança/ Eu coisei com a muié”, dizia o início da canção, uma seresta eletrônica. Os passageiros foram ao delírio. Os personagens começavam a executar a coreografia já ensaiada da música, imitada pelas crianças, que cantavam cada verso junto com seus pais, especialmente o refrão: “Eu só preciso de um dinheiro pra comprar um mé/ O leitinho das crianças/ E o Modess da muié/ O resto é só fé, só fé, só fé!”
A música era Só fé, do cantor goiano Grelo. Repetida pelo menos três vezes no percurso de meia hora de passeio, para alegria dos passageiros – e de quem ficou na praça assistindo. Só fé foi lançada em julho pelo compositor de 26 anos e já chegou ao primeiro lugar das plataformas de streaming, na casa de 2 milhões de plays diários. “Viralizou”, como se diz na internet. Difícil quem escapou no último mês de ouvir, ver algum meme ou se deparar com uma notícia sobre a música (uma delas: um supermercado montou uma gôndola com cachaça, leite e absorvente feminino em homenagem ao hit).
Grelo atendeu a piauí enquanto se preparava para a gravação do novo álbum, em Anápolis, sua cidade natal, para comentar o sucesso repentino: “Que doideira, né? O Nordeste foi o primeiro lugar que se identificou com a música. Antes mesmo de eu lançar nas plataformas de streaming, os áudios viralizaram pelo Whatsapp e algumas redes sociais. Foi inclusive o que me impulsionou a lançar oficialmente a música. Eu quis trazer a simplicidade na letra, buscar essa identificação com o brasileiro, mas com as crianças foi algo inesperado e novo, é uma responsabilidade ter os baixinhos como fãs, mas ao mesmo tempo é algo tão puro! Criança não tem maldade, é muito significativo elas terem essa genuinidade de gostar da minha música, me faz acreditar que fiz o certo, mas ainda sem conseguir explicar o que tanto atraiu nelas”, diz ele, que também é o autor de mais de quinhentas canções registradas no Ecad, entre elas outros hits, como Haverá sinais, gravada por Jorge & Mateus e Luana Prado; Traumatizei, pela dupla Henrique e Juliano; e Erro gostoso, grande sucesso da cantora Simone Mendes. Todas essas acima do milhão de acessos diários.
Só fé é um chiclete macio. A letra é um primor de brasilidade, com versos espertos e sinceros. Evoca a rotina de um trabalhador humilde que precisa “matar um leão por dia” e valoriza as coisas boas da vida que são “de graça”: “Lavei meu rosto nas águas sagradas da pia/ Eu já tô pronto pra matar meu leão do dia/ Deus abençoe nós e a nossa correria (…) A vida é de boa, não preciso de muito pra ser feliz não.” Grelo – apelido que faz uma alusão informal ao clitóris, mas que na verdade vem de Magrelo, o apelido de De Ângelo, como era conhecido anteriormente – constrói seu heroi trabalhador salpicando uma suave ironia erótica (“hoje eu coisei com a muié”) ao forte apelo religioso (“só fé, só fé, só fé”). É o primeiro acerto do compositor: o refrão anima fiéis evangélicos ou católicos, como os que enchiam o Trem Tsunami de Juazeiro do Norte. Seguindo uma tendência já dominada por João Gomes, tema de uma reportagem na revista piauí, Grelo também assume a devoção religiosa como um estilo. O TikTok já está cheio de versões (com menos “mé”) da música para se adequar melhor ao público cristão.
Na contramão da ostentação, tema muito presente em outros gêneros musicais populares como o trap, o funk ou o rap, Só fé evoca a humildade e a simplicidade como virtudes do narrador: “Tudo isso foi de graça, irmão (…) As coisas boas são de graça, irmão.” No videoclipe da música (assista ao final deste texto), ele corre atrás de galinhas, sobe numa moto de chinelo, lava o rosto numa pia sem reboco. Nada de correntes de ouro, dentes incrustados, carrões rebaixados. O tom lírico da letra faz lembrar o Rap da felicidade, funk clássico de 1995 de Cidinho e Doca: “Eu só quero é ser feliz/ andar tranquilamente na favela onde eu nasci”, e uma canção um pouco mais desiludida de Jorge Ben, Paz e arroz, de 1972: “Eu quero paz e arroz, amor é bom e vem depois.” As três têm o narrador cioso de que precisa de pouco, muito pouco, para ser feliz. Funciona bem com Só fé: na última semana, uma mãe chegou a compartilhar o vídeo em que o filho autista não verbal fala pela primeira vez cantando Só fé.
Grelo diz que esse foi um dos momentos mais comoventes até agora: “Eu já tive tantas emoções com essa música… No meu primeiro show, por exemplo, foi um arrepio que só. Tive pouco tempo para ensaiar, a música estourada, achei uma banda, corremos pros ensaios e em uma semana e meia partimos para os shows. Ver uma multidão cantando as músicas, foi loucura, inexplicável… Depois, quando eu vi a galera do Simple Plan usando Só fé nas redes sociais, fiquei “queeee”. Eu ouvia muito a banda, sempre escutei de tudo, então imagina a honra? Mas ouvir o Lucca, autista não verbal que emocionou não só a internet mas a mim, minha esposa, foi lindo, me fez chorar demais, A música tem um poder absurdo”, celebra Grelo.
O que é peculiar no sucesso de Só fé, no entanto, não é apenas a defesa da simplicidade do trabalhador, a aderência infantil ou a tensão irônica entre religião e erotismo. Há um trecho específico que captura a atenção de quem ouve: o verso inesperado “e o Modess da muié”. É uma quebra de expectativa, uma observação que mescla responsabilidade com galhofa, um elemento inusitado que provoca empatia feminina imediata. Não era raro ver uma mulher olhando para outra no Trem Tsunami na hora de cantar o verso ou repetir a coreografia que o cantor faz no clipe, fazendo um triângulo com as mãos, indicando uma vagina no ar.
A menstruação é um dos maiores tabus da música popular brasileira. Na história do cancioneiro nacional, especialmente entre as compostas por homens, é a primeira vez que uma letra nos lembra que o orçamento doméstico precisa incluir o absorvente feminino nas suas despesas – ou seja, que uma questão de saúde feminina é, também, uma questão econômica e de responsabilidade coletiva.
Moralizada pelas religiões, silenciada por uma sociedade patriarcal que controla o corpo feminino de todas as formas possíveis, a menstruação é um assunto interditado até hoje no debate público. O mais comum é que a menstruação remeta à ojeriza, asco, vergonha. É um não assunto. A prova é que só muito recentemente o combate à pobreza menstrual passou a mobilizar os Estados, e só em 2020 um país, a Escócia, implementou uma lei que dava acesso universal e gratuito a produtos menstruais. O Brasil teve a sua primeira lei municipal para combater a pobreza menstrual em 2021, em Florianópolis; e a lei federal que criou o Programa da Dignidade Menstrual, com ampla distribuição de absorventes via Farmácia Popular, foi instituída há pouco mais de um ano, em março de 2023.
Consultora do Menstrual Friendly Public Toilets, projeto da Universidade de Columbia, nos Estados Unidos, a antropóloga paulista Natália Fazzioni lembra que a questão não pode ficar restrita à distribuição de absorventes. “Nesse debate público, existe uma certa tentativa de cooptação da pauta apenas para a questão do acesso aos absorventes, como se a pobreza menstrual se resolvesse apenas com ampla distribuição. O que é até bem aceito, porque gera bons acordos entre governo e indústria. Mas vale sempre lembrar a pessoa que tem acesso ao “modess”, mas não tem acesso à água, saneamento, banheiro domiciliar, em escolas e em espaços públicos, segue igualmente pobre e com dificuldade de realizar a higiene. Inclusive com projetos de educação que tire a menstruação desse lugar de tabu”, detalha Natália, animada com as conversas que Só fé podem provocar por aí.
Como a representação estética nos informa sobre o mundo, não seria diferente com a nossa música popular. A menstruação nunca desceu numa letra de Vinicius de Moraes, Tom Jobim, Luiz Gonzaga, Paulinho da Viola, Tim Maia. Nunca desceu nos maxixes ousados do início do século, nas marchinhas de carnaval de duplo sentido, nem nas crônicas de alcova de um Odair José, um Agnaldo Timóteo ou Wando. Não que a MPB seja pudica, muito pelo contrário. Caetano Veloso já cantou a brochada (Eclipse oculto), Fagner já cantou a penetração (Borbulhas de amor, de autoria de Ferreira Gullar), Roberto Carlos o sexo de várias formas (como em Cavalgada), entre tantos exemplos. Como detalha o livro A história sexual da MPB, do pesquisador musical Rodrigo Faour, “desde suas origens a música brasileira sempre teve um lado muito libertário, com danças e letras que sugeriam a maior sacanagem”. Um dos exemplos mais antigos é um lundu de 1853 com versos que faziam alusão à genitália feminina: “Iaiá, não teime!/ Solte a marreca/ Senão eu morro/ Leva-me à breca!” Mas sobre menstruação, mesmo, não há quase nada.
Um dos únicos compositores que fizeram menção à menstruação foi Aldir Blanc, em 1994, na letra de Valsa do Maracanã. Assim como Grelo, Aldir usou a palavra “Modess”, que foi a primeira marca de absorvente descartável do Brasil, e que durante anos serviu à suavização das falas sobre a menstruação (e, com o perdão da revisora, vale repetir várias vezes a palavra neste texto). Na música, que tem o famoso verso “só dói quando eu rio”, Aldir lembra do Modess numa cena melancólica, ao fazer uma descrição do Rio Maracanã, listando tudo o que corre em seu leito poluído:
Ai, rio do meu Rio
Ai, lixo da cidade
De lâmpada queimada
De carretel de linha
Chapinha premiada
E lata de sardinha
O castigo e o perdão
O modess e a camisinha
Dá até pena do Modess, coitado. Ele é um lixo, está certo, e depois de descartado não é biodegradável, o que o torna um problema ambiental (além de matéria de música triste e bonita). Mas antes de ir para o aterro ele ainda é uma das soluções para a pobreza menstrual, esse problema que assola o país condenando milhares de mulheres. De acordo com o Relatório Livre para Menstruar, no Brasil 25% das adolescentes não têm acesso a absorventes, e cerca de 20% das mulheres não têm sequer acesso à água. Antes de o Modess boiar no Rio Maracanã, dá para imaginar que ele permitiu que uma mulher se levantasse e fosse matar o seu “leão do dia”, que ela provesse o leitinho das crianças e até o mé dos maridos. Quem sabe Aldir Blanc ficaria feliz em saber que o absorvente ecológico é cada vez mais comum – quem sabe o cronista e compositor compusesse até uma Valsa para o Copinho com versos sobre “plantar a lua”…
Seja com a pena da galhofa ou com a tinta da melancolia, lembrar da menstruação numa música com 2 milhões de acessos diários em plataformas de streamings não é banal. A menstruação ocupa um terço do mês de metade da população mundial, com suas demandas, dores e aflições, mas nunca é assunto para fazer cantar ou dançar. Pelo contrário. Quando Rita Lee tentou escrever uma canção sobre menstruação, em 1981, intitulada As duas faces de Eva – “Mulher é um bicho esquisito, todo mês sangra”, foi censurada pela ditadura militar, justamente porque a canção falava de… Menstruação. A justificativa dos censores dizia: “(o trecho) poderá também referir-se ao ciclo menstrual da mulher, o que suscitará indagações precoces em torno do assunto.” A música só foi liberada depois de diversos recursos da gravadora, que anexou até propagandas de Modess ao dossiê e dois anos de espera.
Grelo se espanta com a surpresa que o tema provoca, e até com o desconhecimento das pessoas acerca da marca usada por ele na canção: “Tá sendo muito doido ver que ao mesmo tempo muita gente conhece a expressão Modess mas também uma galera não tinha ideia o que era… Eu sempre ouvi minha vó, mãe falarem Modess, não sei se é algo mais do interior, ou talvez mais da antiga geração, só que para mim era comum e algo que os brasileiros estavam habituados a falar. Aí foi com muita naturalidade que pensei no termo quando estava escrevendo Só fé.”
Nas pouquíssimas vezes em que aparece em músicas brasileiras, o que só ficou mais recorrente há pouco mais de duas décadas, o ciclo menstrual é tratado como um suplício incompreensível que os homens têm de aguentar nas mulheres – e sobre o qual não sabem mais o que fazer. A menstruação está sempre associada à mulher raivosa. Um dos exemplos mais leves é o da música Mulher de fases, do grupo de rock Raimundos, um hit entre os adolescentes em 1999:
Ela é pró na arte de pentelhar e aziar
É campeã do mundo
A raiva era tanta que eu nem reparei que a lua diminuía
[…]
Meu filho, aguenta
Quem mandou você gostar
Dessa mulher de fases?
Complicada e perfeitinha
Você me apareceu
Era tudo que eu queria
Estrela da sorte
Quando à noite ela surgia
Meu bem, você cresceu
Meu namoro é na folhinha
Mulher de fases
Outro exemplo, bem mais atordoado, é o da música Essa tal de TPM, do grupo de rock sarcástico Velhas Virgens, dos anos 2000:
Mas essa tal de TPM está arruinando a minha vida,
Bandida, bandida
Eu não sei quem ela é, eu não sei o que fazer
Quando chega a dia dela
Minha mulher quer me bater
O exemplo mais raivoso é o da música Menstruação, do rapper De Leve, de 2001. A letra, que tem o verso “Passou pela TPM, encara até PM”, evoca o esforço enorme que é pro homem fazer sexo com uma mulher menstruada. O narrador reclama não só de ter de transar nessas condições, mas de ter de lavar os lençóis depois:
Menstruação! A gente carrega esse fardo!
Comer vocês assim é igual galinha ao molho pardo
O sangue desmancha , o trabalho que dá
não vale a pena é uma pena eu querendo virar e dormir
e tendo que limpar até conseguir ficar branco,
mais branco que eu no inverno
e deixo de dar a segunda
porque já esgotei minha pilha de esforço interno
Vinte anos depois desse esforço todo, quando os debates sobre pobreza menstrual começaram a se tornar mais frequentes no Brasil e no mundo, a Mc Carol compôs o funk Vampiro de Madureira. A música se refere a um sujeito raro que, vejam só, não considerava a menstruação um suplício na hora do sexo. Um sujeito “de raça”. Evocando a persona Carol Bandida, que aparece na maioria das suas canções, a compositora de Niterói fez o que sabe: esfregou na cara do público ideias bem diferentes desse suplício todo que os homens narravam. A canção conta a história de uma mulher que desafia um sujeito a encará-la numa sexta-feira em que ela brotou “na pista solta já querendo problema”, mas é surpreendida pelo fato de ele fazer o que nenhum outro faria:
Me envolvi com o conde Drácula
Fiquei com o vampiro de madureira
Chupou minha buceta menstruada.
[…]
Se não for com camisinha de alho
É o vampirão que vai fazer a festa
Como canta o Grelo, “As coisas boas são de graça, irmão”.