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    Sérgio Côrtes (à esquerda) é levado para prisão por um policial: fantasiado de federal? FOTO: TÂNIA REGO_AGÊNCIA BRASIL

questões de polícia e política

A grande desfaçatez

Como o ex-secretário de Saúde do Rio Sérgio Côrtes se preparou para ser preso – já prevendo como deveria ser solto

Mariana Filgueiras | 04 maio 2017_21h35
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A frase vai entrar para os anais da história da corrupção nacional, não há dúvidas. Uma única fala que conjuga elementos gritantes de perversidade, esperteza, cinismo e impunidade. Caso saísse da boca de um personagem de um seriado do Netflix, alguém haveria de dizer que era exagerada – na vida real, ninguém falaria algo parecido. Nela, transborda a ideia de que o crime compensa, de que é possível manipular a Justiça, de que negócios privados estão – sempre – acima dos públicos. Além de revelar, involuntariamente,  o requintado palavreado usado por grupos de interesses escusos.

“Meu chapa, você pode tentar negociar uma coisa ligada à campanha. Pode salvar seu negócio. Podemos passar pouco tempo na cadeia… Mas nossas putarias têm que continuar”, escreveu o ortopedista Sérgio Côrtes, ex-secretário de Saúde do Rio, amigo fraterno do ex-governador carioca Sérgio Cabral, integrante da turma que botou guardanapo na cabeça para posar na foto em um restaurante de Paris, a autoridade pública que participou de um esquema fraudulento que pilhou mais de 300 milhões de reais da saúde pública. E que, desde abril, está preso preventivamente em Bangu 8, acusado de desvio, ocultação e lavagem de dinheiro. Côrtes foi apontado como organizador de um esquema de superfaturamento de suprimentos médicos que teria começado há pelo menos 12 anos.

A frase foi pinçada de um e-mail obtido pelo Ministério Público Federal – e publicada hoje pela Folha de S.Paulo –, no qual Côrtes escreve para o empresário Miguel Iskin, dono de uma empresa de suprimentos médicos e equipamentos hospitalares, acusada de favorecimento no esquema. Ele também está hospedado no presídio de Bangu.

Sérgio Côrtes já imaginava que o lodaçal no qual tinha os dois pés fincados o levaria para cadeia. E se preparou para o grande dia. Na manhã de 11 de abril, quando a polícia bateu na porta de seu apartamento e lhe deu voz de prisão, ele já tinha um esquema preparado, que incluía tirar sua família do país, livrar-se de objetos de valor e fechar uma versão comum sobre a história com os comparsas envolvidos na roubalheira. E mais: o agendamento de uma cirurgia na coluna, feita pouco tempo antes, que poderia ser usada como estratégia de defesa para levá-lo de volta para casa.

De acordo com o depoimento de César Romero, ex-subsecretário estadual de Saúde e que negociou um acordo de delação premiada, Côrtes planejava que, depois da operação, ele tentaria antecipar sua libertação alegando precisar de cuidados de um home care. A cirurgia de fato aconteceu e foi confirmada por seu advogado. Na delação, Romero ainda disse que Côrtes tirou obras de arte e outros objetos de valor de casa semanas antes da chegada da polícia.

Segundo nota publicada no mesmo dia da prisão de Côrtes, pelo colunista Mauricio Lima, da Veja, o ex-secretário também quis proteger a família. Ele teria enviado as filhas e a esposa para a Suíça. Dois dias depois, o colunista do Globo, Ancelmo Gois, noticiou que o destino da família seria na verdade Paris. Segundo me disseram vizinhos de seu apartamento, num prédio com vista para a Lagoa Rodrigo de Freitas, as duas meninas, menores de idade, foram de fato para alguma cidade da Europa. Viajaram em companhia da mãe, Verônica Vianna, que retornou ao Rio pouco tempo depois, sozinha. Sérgio Côrtes tem um filho de 22 anos que vive no exterior, mas não se sabe se as adolescentes teriam ficado sob os cuidados do irmão.

Também há indícios de que o ex-secretário de Saúde teria tentado negociar com os demais comparsas as versões dos depoimentos que todos dariam à Justiça. “O que mais chamou a atenção foi que ele de fato estava tentando articular uma colaboração premiada com outras pessoas, ou seja, ele estava efetivamente obstruindo a Justiça antes de ser preso”, disse-me o procurador Sérgio Pinel, que desde dezembro reforça a equipe da Lava Jato no Rio.

Uma gravação capturada do telefone do delator César Romero, realizada no dia 8 de março, sustenta a acusação dos investigadores. Nela, Côrtes fala com Romero sobre uma conversa que teve com seu cunhado, Sergio Eduardo Vianna Júnior, também comparsa no esquema. “Peraí, César… você já estava fazendo, aí foi quando eu falei pro Júnior: Júnior, o ideal é que pelo menos a gente tenha alguma coisa parecida… porque se ele falar de A, B , C, D e eu falar de C, D, F, G, fudeu, porque A e B eu não falei e F e G ele não falou.” Ao que Romero retruca ao telefone: “Eu acho que numa delação tem que jogar a merda toda no ventilador…”

No dia 3 de maio, Côrtes, Vianna Júnior e Iskin foram denunciados pelo crime de obstrução de Justiça. Os procuradores dizem que o ex-secretário tentou constranger Romero para que ele mudasse seu depoimento, inclusive em troca de dinheiro.

Três dias depois da prisão de Cabral, o ex-secretário publicou uma foto em sua página no Facebook. Ele surgiu de barba, numa paisagem árida, com uma aparência bem diferente da imagem arejada, sempre de jaleco branco, com a qual se apresentava publicamente.

Quase cinco meses depois, com o andamento da operação, Sérgio Côrtes já tinha trocado a equipe de advogados e estava irreconhecível quando foi preso: visivelmente mais magro e abatido, ainda mais hirsuto, vestia uma camiseta preta e um boné surrado. “Fantasiou-se de Federal”, ironizou Dorrit Harazim, colunista de O Globo.

 

Assim como Côrtes, moradores de seu prédio também se prepararam para a prisão – a maioria na torcida. Uma das vizinhas pediu para que o porteiro a acordasse no dia em que a Polícia Federal cumprisse o mandado de prisão preventiva. Outra filmou a saída de Cortes e distribuiu as imagens à imprensa. Quando o ex-secretário deixou o prédio escoltado pelos agentes, foi vaiado pelos corredores e janelas do prédio.

 

“Não foram poucas as vezes que lamentamos sua presença entre nós”, dizia um trecho de uma carta aberta escrita por condôminos do edifício de luxo em que mora. A mensagem foi distribuída nas caixas de correio dos vizinhos no dia 27 de abril. “Obras intermináveis, que desrespeitavam nosso direito ao silêncio e à limpeza, homens fortemente armados que circulavam junto a nossos filhos, reformas ilegais na fachada do prédio, invasão de área comum, atitudes que demonstravam ausência de qualquer escrúpulo, antecipando a rara perfídia que está paulatinamente a se revelar”, prosseguia a carta.

A síndica, no entanto, colou um comunicado nos elevadores: “Na qualidade de síndica do edifício Garça Branca, e também como condômina, informo aos demais moradores que não passei procuração aos demais moradores para falarem por mim na ‘carta aberta’ enviada pelos Correios aos moradores. Da mesma forma, alguns condôminos já se manifestaram contrários a esta ‘carta’. Quem a escreveu escondeu-se no anonimato, comportamento esse que repudio. Acredito na Justiça deste país e não compete a mim julgar quem quer que seja.”

A tensão entre Côrtes e a vizinhança é antiga. Em outubro de 2012, um curto-circuito na adega climatizada do seu apartamento, que fica na cobertura, teria provocado um incêndio que mobilizou cerca de 12 viaturas do Corpo de Bombeiros ao local e destruiu parte do andar superior do edifício. Não esclarecido até hoje, o incidente ganhou farta cobertura da imprensa à época porque o secretário, ferido, usou uma ambulância do Corpo de Bombeiros para ser encaminhado a um hospital particular. Os próprios bombeiros desmentiram que Côrtes estava desmaiado quando foi atendido, como alegou a família para justificar o uso da viatura. O inquérito que investigava se houve improbidade administrativa no episódio foi arquivado pelo Ministério Público Estadual em 2014.

Cirurgião ortopédico de referência no Rio, Sérgio Côrtes foi alçado à tribuna do folclore político carioca a partir de 2002, quando assumiu a diretoria do Instituto Nacional de Traumatologia e Ortopedia e ficou conhecido por propalar que sua gestão combateria a corrupção na instituição. Na época, ele disse: “Meu sonho é que cada um real da Saúde valha realmente um real.” Foi quando divulgou que estaria recebendo ameaças de morte e passou a ser escoltado por agentes da Polícia Federal.

Em 2005, uma crise dos hospitais municipais na gestão da prefeitura de Cesar Maia fez com que o Exército instalasse hospitais de campanha no Campo de Santana, um parque público cheio de capivaras e gatos abandonados no Centro do Rio, onde aconteceu a Proclamação da República em 1889. Côrtes foi o interventor federal na crise, o que lhe rendeu, dois anos depois, a nomeação como secretário estadual. Quando o então governador Sérgio Cabral o anunciou como titular, o fez com pompa: “Fico muito tranquilo em deixar a pasta nas mãos desse médico intolerante com a incompetência, inimigo da corrupção.” Uma das primeiras medidas foi implantar o sistema das UPAs, unidades de pronto atendimento do Corpo de Bombeiros espalhados pelo estado. Côrtes chegou a ser cogitado como possível ministro da Saúde de Dilma Rousseff.

Depois de deixar a pasta, em 2014, foi trabalhar na Rede D’Or, uma das redes de hospitais mais caras do Rio, onde exercia o cargo de vice-presidente médico até ser detido. Os enfermeiros são sarcásticos em relação ao destino do ex-chefe: “Agora é Bangu D’Or”, comentavam nos corredores, dias depois da prisão.

Segundo as investigações da Operação Fatura Exposta, o esquema fraudulento no Into acontecia desde 2002, quando Côrtes já comandava o instituto. Em 2007, auge de sua popularidade, a imprensa chegou perto, mas não viu: numa reportagem do Jornal do Brasil do dia 26 de setembro sobre a falta de insumos básicos no Hospital Pedro II foi noticiado que os contratos de emergência haviam expirado e que o secretário havia centralizado todos os gastos em seu gabinete “a fim de ter um melhor controle das compras”. De acordo com o Ministério Público Federal, a concentração de poder estava relacionada ao desvio de verbas.

Era o mesmo ano em que ele passaria a frequentar uma mansão luxuosa no condomínio Portobello, em Mangaratiba. No mesmo local também têm casas de veraneio o governador Sérgio Cabral e Fernando Cavendish, proprietário da Delta Construções. A mansão seria de propriedade de Benedicto Júnior, da Odebrecht. Em delação, no entanto, César Romero indica que a casa é, na verdade, de Sérgio Côrtes – as empreiteiras e a secretaria de saúde aparecem relacionadas no texto da decisão do juiz Marcelo Bretas, da 7ª Vara Federal Criminal, que colocou o ex-secretário atrás das grades.

Para Bretas, todos integravam a mesma organização criminosa, investigada tanto na Operação Calicute quanto na Eficiência, outras desdobradas da Lava Jato, e agora na Fatura Exposta. Escreveu o juiz em seu despacho: “Trata-se da continuidade de investigações e processos criminais em curso neste Juízo Federal especializado quanto à prática de diversos crimes por uma mesma ORCRIM que teria atuado por vários anos no Governo do Estado do Rio de Janeiro, no seio da Secretaria de Obras, Secretaria de Transportes e, como agora se vê, na Secretaria de Saúde.”

Logo depois, as investigações começaram a apertar: em 2013 a Controladoria-Geral da União descobriu um desvio de 21 milhões do Into, ocorrido durante o período de sua gestão, num esquema de superfaturamento que fazia com que garrafinhas de água mineral que custavam 77 centavos não saíssem por menos de 3 reais, como detalhou a revista Época. Côrtes foi condenado pelo desvio de verbas públicas, mas não foi preso porque recorria contra a sentença em liberdade.

Em Bangu 8, Sérgio Côrtes divide uma cela com outro acusado. Dorme em um beliche, ao lado de um vaso sanitário. Ainda não conseguiu receber visitas da família por uma burocracia da Secretaria Estadual de Administração Penitenciária: há uma espécie de “habilitação” que deve ser feita para entrar no presídio, mas que só pode ser solicitada com uma carteira de identidade expedida pelo Instituto de Identificação Félix Pacheco. De volta ao Brasil, Verônica Vianna, mulher de Côrtes, ainda aguarda pelo documento.

Na próxima semana, os advogados de Côrtes devem encaminhar um pedido de liberdade provisória – mas garantem que não vão usar o argumento da cirurgia da coluna. A estratégia deve focar no que juridicamente se chama de “contra reversa” – provar que a delação de César Romero não usou gravações de telefonemas espontâneos, mas armados pelo próprio delator.

Em casos de acusados que já desconfiam que vão puxar cadeia em breve, entre as orientações gerais de escritórios especializados, a melhor estratégia, no entanto, é que se deixe tudo como está: o dinheiro nas contas, assim como os imóveis e bens materiais. Fugir, nem pensar. “Qualquer movimentação bancária pode gerar cautelaridade, ou seja, provocar novas medidas cautelares. Faz o réu produzir provas contra si mesmo”, comentou outro advogado, que acompanha de perto a Lava Jato. Ele lembrou que, nessa hora, o mais difícil é conter os parentes: “São os mais atabalhoados, e saem se desfazendo das coisas sem pensar, deixando rastros.”

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