Em janeiro de 2024, Bruno Cestito decidiu apagar uma conta de Instagram na qual tinha mais de 50 mil seguidores. Adestrador de cães havia quinze anos, Cestito postou um vídeo criticando o uso de enforcadores em cães pequenos. “Falei: ‘Você, que tem um petzinho na sua casa, um shih-tzu fofinho, e esse cachorro puxa para o passeio… Precisa colocar um enforcador num bicho desse?’ Essa foi a pergunta.”
A partir daí, o perfil de Cestito na rede social pegou fogo. Recebeu uma enxurrada de comentários críticos, acusando-o de “demonizar uma ferramenta”. Foi desafiado, segundo ele, a “adestrar um dinossauro ou uma baleia com peitoral”. O adestrador relata que a reação a seu vídeo foi tão pesada que ficou “uma semana sem dormir”. A repercussão negativa foi a gota d’água para que ele tomasse a decisão de excluir o perfil pessoal no aplicativo e manter apenas o da +Behavior, centro de ensino animal da qual é sócio, junto de sua esposa, a também adestradora Ina Marins, na Zona Sul de São Paulo.
O “peitoral” é um tipo de coleira que veste o animal como se fosse um colete. Ele é considerado minimamente aversivo porque não promove dor ou enforcamento. Diferente do “enforcador”, que, como o nome sugere, é um equipamento que comprime o pescoço do cachorro caso ele puxe a guia.
O enforcador tem se tornado objeto de grandes controvérsias no meio do comportamento animal justamente por causar desconforto nos animais. Para alguns profissionais, é uma ferramenta necessária para educar os cães, especialmente os mais agressivos ou de grande porte. Para outros, trata-se de algo que deve ser usado apenas como ferramenta de segurança, em casos muito específicos em que há risco para o adestrador, para o cão ou qualquer pessoa que esteja por perto. Cestito dá um exemplo:
“A Ina, minha esposa, dá aula para muitos cachorros agressivos de grande porte, como o Lobo, um rottweiler de 56 kg que avança para matar. Ela vai botar um peitoral nesse cachorro? Não vai. Para conseguir lidar com ele, coloca em um ponto fixo, num enforcador, porque ela está prezando pela vida dela. Aí vai treinar com toda a segurança, com enforcador. [Depois vai] entrar com o treino do peitoral.”
Pode parecer razoável, mas há visões bem diferentes, dos dois lados da discussão. A polarização no universo do adestramento não deve em nada às rinhas políticas que tomaram o país nos últimos tempos.
Natural de Curitiba (PR), o adestrador Pedro Luiz Fontoura chegou a temer que as hostilidades virtuais saltassem para o dia-a-dia. Fundador da empresa Jeito Animal, Fontoura é incisivo no Instagram, onde tem 216 mil seguidores. Ele não se furta a entrar em polêmicas e a combater os métodos aversivos de treinamento.
Há dois anos, recorda, um adestrador de São Paulo queria falar com ele “a todo custo, não parava de mandar direct [mensagem privada no Instagram], queria saber onde a gente estava e queria conversar pessoalmente comigo”. Como era alguém com falas agressivas nas redes sociais, ficou com receio e evitou o encontro. Em outra ocasião, uma pessoa não gostou de um vídeo de Fontoura no qual ele reagia a uma gravação de outro usuário que provocava o próprio cachorro para fazê-lo rosnar, e mandou mensagens “em tom ameaçador”. Um terceiro caso foi de uma pessoa que ameaçou resolver as coisas “na bala”.
Outro profissional do adestramento que já sofreu com xingamentos na internet foi Bruno Leite, do Rio de Janeiro. Colunista do canal Tudo Sobre Cachorros, do YouTube, ele participou de uma série de vídeos chamada “5 motivos para não usar o enforcador”, publicada em 2017. Na seção de comentários, é possível encontrar usuários criticando o conteúdo do vídeo. Um deles: “Anda com o monster [ou pit monster, uma variação da raça american bully, da categoria dos pitbulls] de 50 kg. Ou com PITBULL ansioso para ir passear. Passear sem enforcador com esses FRUFRU é fácil”.
Outro registrou: “Compra um pitbull, passeia com um peitoral, aí você volta e faz a porra de um vídeo dizendo como foi o passeio”. E um terceiro: “Cheguei aqui para saber sobre cachorro e tive uma aula comunista kkk fala sério [sic]”.
De acordo com Leite, esse vídeo o motivou a ser mais combativo nas redes sociais: “Recebi tanto xingamento que entrei na guerra.” Ele percebeu que “o debate foi um pouco além das técnicas, era um debate filosófico, um debate de modo de enxergar o mundo”, explica. “De um lado está”uma cultura de punição. Do outro, uma cultura de suavização das relações.”
Os ataques não se resumiram a esse episódio. Já teve que desativar os comentários de seu canal Terapeuta de Cães, no YouTube, devido ao “caminhão” de impropérios em um vídeo com Cesar Millan [adestrador e apresentador de televisão]. “Conheço muitos adestradores – na verdade, adestradoras – que pararam de produzir [conteúdo] porque eram muito xingadas. E era sempre uma questão: ‘Ah, você não tem força para um rottweiler. Você só adestra esses cachorrinhos pequenininhos. Quero ver você entrar na minha casa com o meu pitbull.’ Era sempre uma coisa assim.”
Algumas pessoas contrárias ao reforço positivo passaram a chamar os profissionais adeptos do método de “moranguinho” como forma de xingamento. A ideia dos detratores é “afeminar” a imagem desses adestradores positivos: ‘Ah, isso é coisa de viadinho, coisa de moranguinho'”, diz Leite.
Para ele, a divisão reflete também a polarização político-ideológica do país. “O auge desse debate foi justamente no período eleitoral”, explica. Quem prefere continuar a usar métodos punitivos como base e faz paralelos entre cães e lobos “acredita nesse modelo e quer conservar isso”. Aqueles que preferem se basear no reforço positivo estão na outra ponta. “A gente acaba caindo no campo dos progressistas porque quer o progresso e trazer a ciência para o debate.”
Pedro Fontoura concorda: “Para mim está muito ligado à política.” Na equipe da sua empresa de adestramento, ele diz ter eleitores de Bolsonaro e de Lula. “Mas a grande maioria dos adestradores positivos votaram em Lula”, afirma. “Não vou dizer que o adestramento positivo é um movimento político, não entendo dessa forma. Mas acho que a cabeça, a consciência, está muito ligada à opinião política.”
No reforço positivo, premia-se o cão (em geral, com comida) pelos comportamentos desejados. Nos métodos aversivos, os aparatos para moldar comportamentos e coibir situações de risco incluem, além do uso de enforcadores, prong collars (coleiras com elos ou garras ao longo da circunferência, que podem machucar), e-collars (coleiras vibratórias) e coleiras de choque.
Tal divisão não é nova. No livro Cão senso – Como a nova ciência do comportamento canino pode fazer de você um verdadeiro amigo do seu cachorro, de 2011, o biólogo britânico John Bradshaw explica que “existe tremenda discordância entre os treinadores de cães sobre a melhor abordagem para conformar o comportamento de um cachorro”. “Muitos treinadores e famosos behavioristas continuam a promover a ideia de que os cães são animais de bando e que muitos deles só podem ser controlados através da teoria da ‘dominação’ e do recurso a castigos físicos”, diz.
Boa parte do adestramento que equipara cães a lobos tem como fonte o trabalho de David Mech, biólogo americano especialista nos últimos. Em 1970, ele publicou o livro The wolf: the ecology and behavior of an endangered species (O lobo: a ecologia e o comportamento de uma espécie em extinção, sem edição brasileira), que se tornou referência. De acordo com suas observações, os lobos estabeleciam uma hierarquia social baseada em dominância, com um indivíduo “alfa” controlando o grupo e os recursos. O livro se tornou um sucesso de vendas.
A limitação da obra é que as observações de Mech se restringiam a lobos cativos. Observações posteriores, do próprio Mech, mostraram que, na natureza, os lobos se comportam de maneira diferente. No artigo Alpha status, dominance, and division of labor in wolf packs (Status alfa, dominação e divisão de trabalho em matilha de lobos, também sem edição brasileira), ele mostra que a organização social se dá em famílias nas quais os indivíduos mais velhos são os principais integrantes do grupo, geralmente os pais. No entanto, a relação entre todos é colaborativa, muito diferente da disputa feroz que se tornou senso comum e influenciou o adestramento canino.
“A teoria da dominância ficou velha”, diz Marina Snitcofsky, veterinária especializada em comportamento animal.
O reforço positivo começou a ganhar força há duas décadas. Um dos responsáveis foi Alexandre Rossi, conhecido também como Dr. Pet. Ele é famoso pela participação em programas de tevê e fundador da empresa Cão Cidadão. Seu livro Adestramento Inteligente – Com amor, humor e bom senso, publicado em 1999, “tem 80%, 90% de reforço positivo”, explica Cestito. Ele próprio já foi franqueado e sócio da Cão Cidadão.
Para Brian Hare, professor de antropologia evolutiva na Universidade de Duke e autor de Seu cachorro é um gênio! – Como os cães são mais inteligentes do que se pensa, o sucesso do adestramento baseado em reforço positivo se deve a “uma mudança cultural em como vemos nossos cães”. “Muitas pessoas ao redor do mundo veem seus cães mais como membros da família. O treinamento positivo está mais alinhado com esses valores”, explica.
A base dessa linha de adestramento é a análise do comportamento, campo consagrado pelo psicólogo B. F. Skinner, um desenvolvedor do behaviorismo radical, como ele próprio se definia. Skinner dizia que todos os seres, incluindo os humanos, são motivados por recompensas e punições. Para explicar tal modo de agir, é preciso recorrer a um quadrante, nos quais estão os reforços positivo e negativo, além das punições positiva e negativa.
Reforço, nesse caso, significa algo que aumenta a ocorrência de um comportamento. Punição é um elemento ou estímulo que diminui a probabilidade de ocorrência de um comportamento. Um adestramento que prioriza o reforço positivo não significa que os outros quadrantes não possam ser usados, a depender da necessidade.
Para definir uma escala de prioridades e facilitar a compreensão de quando se torna aceitável usar ferramentas e métodos aversivos, a Associação de Treinadores Profissionais de Cães (ADPT) criou o Protocolo Lima: least intrusive, minimally aversive (menos intrusivo, minimamente aversivo).
“O que você quer que o cão faça?” Esta é a pergunta que guia o protocolo. Focar o treinamento em punições não responde a esta questão, diz a ADPT em seu site, porque elas não oferecem “um comportamento aceitável para que o animal aprenda a substituir o comportamento indesejado”. Além disso, o protocolo rejeita “o uso de métodos e ferramentas aversivas, incluindo (…) o uso de coleiras eletrônicas, de estrangulamento ou de pontas [prong]”.
Bruno Leite explica o funcionamento do protocolo. Se o cão tem comportamentos indesejados, são consideradas em primeiro lugar possíveis questões veterinárias que possam ser a causa: dores, doenças ou outros problemas de saúde. Depois, observa-se o ambiente em que o animal vive. Em seguida, ele diz, “a gente faz a construção de repertório com reforço positivo, ensinar os comportamentos que a gente quer que o cachorro saiba”. Se nada disso funcionar, explica Leite, entram as punições.
Pedro Fontoura é adepto do Protocolo Lima. Em um vídeo de 20 de junho de 2024, ele diz: “Recentemente, eu vi um influenciador e adestrador afirmando que, para conquistar o respeito de um cão, é necessário que ele sinta insegurança com relação a nós.” À piauí, ele explica que “isso não é só errado, é muito perigoso”. “O respeito é uma via de mão dupla que se baseia em confiança, em entendimento mútuo e não em medo. É ensinar sem intimidar, é orientar sem agredir.”
Para ele, a grande popularidade dos métodos punitivos tem uma explicação simples. “Na grande maioria das vezes, você terá resultados mais rápidos. O cliente não quer ficar investindo no adestrador, porque não é um serviço barato.”
Embora não se defina como adestrador punitivo, Felipe Fonseca, o Mister Pet, é adepto de ferramentas como e-collar, técnicas como o “alpha roll” (forçar o cão a deitar de barriga para cima, para enfatizar a submissão) e usa termos como “alfa da matilha”, que para parte dos especialistas está superado. Segundo ele, são muitas as críticas recebidas por insistir no uso dessas. Formado em contabilidade, Fonseca exerceu a profissão até 2018, quando pediu as contas, largou a empresa onde trabalhava para estudar cachorros.
Na sua visão, existem dois tipos de adestradores nos polos ideológicos. Os que ele chama de 100% positivos, “aqueles profissionais que dizem que não pode ter correções no cachorro, que cachorro não pode passar frustração”. Existem também os “antigos”, que “acham que sabem tudo, e continuam no método antigo, não trabalham pessoas, não entendem a dor da pessoa”.
Ele se classifica como “positivo instintivo”, que inclui a premiação com petiscos, mas em alguns momentos instrumentos como o enforcador, o prong e o e-collar. Segundo Mister Pet, isso se justifica pelo fato de os cães usarem correções entre si. “Por exemplo, quando o filhote nasce, começam a nascer dentes na boca dele, só que ele está condicionado a mamar na teta da mãe. E aí, quando ele tem os dentinhos, o que acontece? Machuca a teta da mãe, e o que a mãe faz? Ela rosna, ela impõe um limite. Se o filhote insiste, ela morde, então entre eles têm regras e limites.”
Há pesquisas, porém, que desencorajam que humanos façam o mesmo. Um estudo publicado em 2020 mostrou que cães treinados com métodos aversivos mostraram maiores níveis de cortisol (um dos hormônios produzidos em situações de estresse), além de darem sinais corporais e fisiológicos de desgaste, como ofegar. Segundo o artigo dos pesquisadores da Federação de Universidades para o Bem-Estar Animal (Ufaw), sediada na Inglaterra, e da Fundação Portuguesa para a Ciência e Tecnologia, de Portugal, “o uso de métodos aversivos compromete o bem-estar dos cães de companhia tanto a curto quanto a longo prazo”.
Além disso, explica a veterinária Marina Snitcofsky, outras pesquisas especializadas da área mostram que o aprendizado, o treinamento, o adestramento feito de maneira mais gentil atinge um resultado duradouro, e que não é demorado. Os aversivos, porém, podem resolver de imediato um latido excessivo, por exemplo, mas o problema voltará, com consequências negativas pelo caminho, como a alteração de peso corporal e o aumento do nível de cortisol.
Fonseca contesta essas pesquisas. “É muito lindo a gente ler esses estudos, mas esses cientistas, esse povo do positivismo, eles estão esquecendo de avisar os cães que não existe mais correção, porque na natureza tem correções”, diz ele, seguindo com uma argumentação religiosa: “E é bíblico, tá? Em Gênesis 1, versículo 26, Deus deixou claro ali que todos os seres humanos têm que ser dominantes sobre todos esses animais dentro desse planeta.”
Matthew Scully, jornalista e ex-integrante dos governos de George W. Bush, escreveu um livro chamado exatamente Domínio: o poder do ser humano, o sofrimento dos animais e um pedido de misericórdia, no qual investiga a raiz e as justificativas que os seres humanos dão para a exploração da produção de carne animal e outros fenômenos, como a caça. Republicano, conservador e vegetariano, ele levanta a hipótese de que “estudar a Bíblia e outros escritos sagrados e investigar exatamente o que exatamente significa o domínio, para então compará-lo com a nossa atual conduta, talvez nos leve a encarar o óbvio: o ser humano decaído abusa de seus poderes”.
Independentemente da justificativa para o suposto domínio do ser humano sobre os animais, para Brian Hare, “muitas pessoas têm expectativas irreais de seus cães”. “Eles precisam de uma quantidade incrível de atenção, ser bem exercitados, mais do que muitas pessoas percebem. Eles precisam de uma boa educação consistente. E precisam ser apresentados a todos os tipos de pessoas e situações. Essas condições podem levar os cães a se tornarem membros bem ajustados da família.”
Para Brian Hare, a discussão “não é tanto sobre superior versus inferior”. “Cachorros precisam de uma quantidade incrível de atenção. Eles precisam ser exercitados, bem mais do que as pessoas pensam (…) Precisam de uma educação boa e consistente. E precisam ser apresentados a diferentes tipos de pessoas e de situações. Espera-se que essas condições possam tornar os cachorros membros bem ajustados da família.”