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questões cinematográficas

A hora mais escura – exigências da verdade

O filme dirigido por Kathryn Bigelow a partir do roteiro de Mark Boal tem duas fragilidades – a legenda na abertura e o close final de Maya, a analista da CIA interpretada por Jessica Chastain. Entre esses dois extremos, porém, há duas horas e meia de bom cinema.

| 19 fev 2013_16h04
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O filme dirigido por Kathryn Bigelow a partir do roteiro de Mark Boal tem duas fragilidades – a legenda na abertura e o close final de Maya, a analista da CIA interpretada por Jessica Chastain. Entre esses dois extremos, porém, há duas horas e meia de bom cinema.

Em letras brancas sobre fundo preto, a legenda inicial informa que é “baseado em relatos de eventos reais dados em primeira mão”. No último plano, sem saber para onde ir, Maya chora. A derrapada inicial é mais suave. A do final provoca um acidente sem maior gravidade.

Uma declaração de princípio como a que é feita na primeira imagem do filme, serviu de pretexto para a crítica de que Hollywood sempre quer o melhor dos mundos – “banca a autenticidade dos seus filmes enquanto ela não é desafiada, e aí apela para a defesa de que ‘Ei, é só um filme.’”. (“The Oscar for Best Fabrication”, Maureen Dowd, The New York Times, 16/2/2013).

, em particular, não precisaria de um affidavit desse teor para servir de aval da sua autenticidade. Afinal, os fatos narrados são conhecidos, já tendo sido relatados em livros, reportagens e documentários feitos para televisão. O comentário de Maureen Dowd, e outros que põem em questão a fidelidade aos fatos, cobram de Bigelow e Boal o que ela e ele nunca prometeram. Ao dizer que o filme se baseia em “relatos”, a diretora e o roteirista asseguram crédito suficiente para ampla margem de liberdade em relação aos eventos reais. Todo relato, como deveria ser evidente, inclusive de testemunhas e dado em primeira mão, é subjetivo por princípio e está sujeito a graus variáveis de reconstrução.

A legenda, além disso, não afirma que o filme reproduz “eventos reais”. Diz que é baseado em “relatos de eventos reais”, o que é totalmente diferente.

Sem a legenda inicial, poderia ter se livrado dos inúmeros comentários que negam não só o direito, como também a necessidade de se fazer adaptações ao contar uma história baseada em fatos reais. Trata-se, afinal, de um filme de ficção que não reproduz a realidade factual, como todos deveriam saber. O que faz é representar a realidade.

Quanto ao choro de Maya no final, que vem sendo menos comentado, não chega a causar dano irreparável. Ao introduzir uma nota sentimental, porém, destoa da caracterização da personagem, resultando numa tentativa tardia de humanizar Maya e atender expectativas previstas dos espectadores. Que ela sentisse sensação de vazio depois de uma década dedicada a localizar Osama Bin Laden, não só é verossímel como está bem expresso por ser a única passageira de um imenso avião de carga. Mas chorar depois de cumprir a missão é uma escorregada dos autores por mais que possa cair bem com o público.

O fato de Maya ser uma personagem síntese, representando a irmandade de analistas femininas da CIA que trabalharam, obstinada e obsessivamente, para encontrar Bin Laden, não deveria servir de argumento para questionar a autenticidade do filme. Esse procedimento é usual e legítimo do ponto de vista dramático, ainda que já tenha se tornado um recurso convencional. Sem personagem principal que conduza a ação seria difícil levantar 40 milhões de dólares para fazer . Mas não era preciso chegar ao ponto a fazê-la chorar. Ainda mais por que uma das virtudes do filme é justamente deixar de lado relações pessoais, afetivas e eróticas. Os personagens são profissionais no desempenho de seus ofícios e são retratados nesse âmbito.

Ninguém põe em questão o papel crucial representado pelas analistas da CIA. Afinal, foi a uma delas que o autor dos disparos que mataram Osama Bin Laden, diante do cadáver dele enfiado num saco de lona encerada, deu o pente do seu rifle, no qual faltavam as três balas letais. Isso, segundo o relato do próprio atirador, em reportagem de Phil Bronstein, publicada da Esquire (“The Shooter”, 11/2/2013).

Outra virtude de , aliás, é não transformar em heróis os integrantes da força de operações especiais 6 da Marinha, conhecida como SEAL. A determinação de Maya é que sustenta a narrativa e faz dela a heroína do filme.

Entre as críticas recebidas por Bigelow, uma das mais contundentes certamente foi a de Slavoj Zizek que a acusa de estar “aliada à normalização da tortura” por, segundo ele, representá-la de forma neutra (“[A diretora] Kathryn Bigelow está aliada à normalização da tortura”, O Globo, 16/2/2013). É o caso de perguntar o que Zizek diria se os autores de A hora mais escura tivessem omitido qualquer referência à tortura, apoiados nos relatos segundo os quais as informações que levaram à localização de Osama Bin Laden não foram obtidas dessa forma? Ele teria poupado Bigelow da acusação de estar acobertando a tortura?

Para Zizek,  representar a tortura de maneira neutra, o que A hora mais escura segundo ele faria, é tão destruidor quanto “torturar um ser humano”, e “neutralizar este caráter destruidor […] é por si uma maneira de apoiá-lo.”

O argumento implica, primeiro, em aceitar que a representação da tortura no filme é feita de maneira “neutra”, o que não parece ser o caso, e também em considerar que para tratar dessa ou qualquer outra violação de direitos humanos é preciso fazer uma condenação explícita.

Outra das qualidades de é justamente a de não ser veículo de posições politicamente corretas.

A relação de Maya com a tortura se altera ao longo do filme. Ela começa tendo dificuldade de assistir a uma sessão de tortura que, no entanto, é retomada por iniciativa dela depois de um pequeno intervalo. E adiante ela mesma faz um interrogatório em que o preso é torturado. Essa prática é contraposta à declaração do recém-eleito Barack Obama ao programa 60 minutes, mostrada na televisão, de que a “América não tortura, e vou me certificar que não torturamos.” O confronto entre o que se faz de modo rotineiro e as palavras do presidente é suficiente para rebater a acusação de Zizek.

Trabalho “corajoso e perturbador”, escreveu Roger Cohen (The New York Times, 11/2/2013). “Traz à tona sentimentos reprimidos. Conduz o espectador para o ‘lado escuro’ – esse obscuro mundo de versões, facilidades secretas e tortura, nascido quando os Estados Unidos arquivou seus princípios e declarou guerra a um substantivo, terrorismo.” Para Cohen, A hora mais escura atende as exigências da verdade.

Não se pode pedir muito mais a um filme.

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