Teresa Rojas nunca vai se esquecer daquele dia de 1981 em que o gerente de recursos humanos do Hospital das Clínicas da Universidade do Chile convocou todos os funcionários e anunciou que o governo havia criado um novo e moderno sistema previdenciário. A promessa, como ela bem se lembra, era que, se o trabalhador renunciasse ao sistema vigente e aderisse à novidade, chegaria à velhice com uma boa aposentadoria, próxima do salário máximo recebido na ativa. Teresa era jovem, estava no início da carreira e, mesmo sem entender muito bem a mudança, achou a promessa interessante. Assim como a maioria de seus colegas, assinou o documento sem fazer perguntas.
Passaram-se 38 anos e, a cada trinta dias, Teresa rumina sua raiva ao receber uma aposentadoria equivalente a 170 mil pesos chilenos, o equivalente a 939 reais, tendo seguido à risca todas as instruções que lhe deram em 1981. O valor representa pouco mais de um quarto do salário que ganhava como auxiliar administrativa. “Muita gente acreditou nessa promessa, e por isso mudamos de sistema. Mas era uma promessa vazia. Trabalhei a vida inteira e agora recebo uma aposentadoria ridícula, menor que o salário mínimo. Era tudo mentira”, afirma Teresa.
Sua história se parece com a de María Gatica, que trabalhou na Escola de Saúde Pública da Universidade do Chile. Ela também foi atraída pela promessa de que mudar para o novo sistema era muito vantajoso, pois garantiria uma velhice tranquila, com uma aposentadoria quase igual ao seu salário. A realidade foi bem diferente: María recebe aposentadoria de 207 mil pesos chilenos (1 146 reais) e, se não fosse a ajuda das filhas, não teria como arcar com suas despesas básicas, muito menos com os medicamentos dos quais depende. “Foi em 1981, vivíamos numa ditadura, atravessávamos uma crise econômica, e todas as informações que recebíamos, dos empregadores, dos meios de comunicação e do governo, martelavam que mudando de sistema garantiríamos aposentadorias decentes”, lembra.
Como muitos chilenos, Teresa e María recebem menos que o salário mínimo chileno, hoje em 301 mil pesos, o equivalente a 1 662 reais. Esses dois casos exemplificam bem os resultados do sistema de capitalização individual implantado por Augusto Pinochet em 1981, em plena ditadura, por meio de um decreto que virou lei e perdura até hoje. A ditadura e seus agentes prometeram aos trabalhadores que, ao se aposentar, receberiam no mínimo 70% do salário. Para tanto era preciso renunciar ao antigo sistema e aderir ao novo, que seria gerido por empresas privadas, as chamadas Administradoras de Fundos de Pensão (AFP).
Mais que uma simples troca de nome, tratava-se de uma mudança total de paradigma previdenciário. Enquanto o sistema antigo era financiado por cotas divididas entre empregador, trabalhador e Estado, totalizando uma contribuição equivalente a 22% do salário, o sistema gerido pelas AFP é de capitalização individual, não conta com as cotas patronal e estatal e reduz a contribuição a 10% do salário, pagos exclusivamente pelo trabalhador e administrados por uma indústria altamente concentrada.
Na discussão da reforma da Previdência no Brasil, o modelo chileno recebeu elogios do presidente Jair Bolsonaro. O regime de capitalização, semelhante ao chileno, foi defendido pelo ministro Paulo Guedes (Economia). Não entrou na proposta aprovada pela Câmara, mas o governo ainda estuda a possibilidade de retomar a ideia.
O modelo chileno de Previdência também tem sido assunto de conteúdos falsos nas redes sociais. O projeto Comprova, coalizão de veículos voltada para a verificação de conteúdos sobre políticas públicas e da qual a piauí faz parte, checou um desses conteúdos, intitulado “o exemplo do Chile”. A checagem constatou que a postagem mistura informações verdadeiras e falsas e, de forma enganosa, tenta levar o leitor a conclusões erradas. Afirma, por exemplo, que todos os aposentados recebem salário mínimo – o que é falso, como mostram as histórias de Teresa e María.
Augusto Pinochet passou toda a manhã de 14 de outubro de 1980 discutindo o novo sistema de capitalização individual. José Piñera, seu ministro do Trabalho e Previdência Social e irmão do atual presidente do país, Sebastián, apresentou a ideia e explicou como implementá-la. Piñera disse que era uma invenção única no mundo e que, ao eliminar a contribuição estatal para aposentadorias, acabaria com a pressão fiscal. Também estimularia a economia, pois as empresas deixariam de contribuir e poderiam investir o valor poupado.
“Acho esse sistema maravilhoso; na minha opinião, deve ser implementado imediatamente”, disse Pinochet, segundo documentos secretos da ditadura que, já na democracia, foram tornados públicos pelo Congresso. “Mas sempre questionei o seguinte, como vocês já devem ter ouvido de mim outras vezes: quem vai administrar esse dinheiro?”
Piñera respondeu que isso seria feito pelas AFP, empresas privadas que qualquer jovem empreendedor poderia criar. Um ano depois, em 6 de outubro de 1981, o governo anunciava em cadeia nacional o início da era dessas administradoras privadas, prometendo criar um esquema “baseado na liberdade e na Justiça”, que permitisse ao trabalhador uma velhice digna e ao país acelerar o desenvolvimento econômico e social.
O sistema de capitalização individual começou optativo, acenando com promessas para quem contribuía dentro do velho sistema de distribuição. Para as novas levas de trabalhadores, seria obrigatório. A única exceção foram as Forças Armadas, cujos integrantes permaneceram amparados no sistema antigo, garantindo aos militares, até hoje, aposentadorias equiparadas a seus salários na ativa. Os trabalhadores que abandonaram o sistema de distribuição ficaram inicialmente sob a gestão de doze AFPs que, três décadas depois, ao se completar o ciclo de contribuição daqueles segurados, começaram a pagar as primeiras aposentadorias.
Atualmente são apenas seis AFPs em operação, depois de um agressivo processo de cartelização que as concentrou nas mãos de grandes grupos transnacionais: MetLife, Sura, Principal Financial Group e Atacama Investments, uma sociedade constituída nas Ilhas Virgens Britânicas e que ninguém, até hoje, sabe por quem é controlada. Apenas duas AFPs – Habitat e Modelo – têm capital chilenos. A primeira é filial da Câmara Chilena de Construção (CChC), um dos fundos patronais mais poderosos do país, com interesses transversais em setores estratégicos da economia; a segunda é subsidiária de uma empresa de Andrés Navarro, industrial chileno com investimentos em toda a América Latina, inclusive no Brasil.
A explicação desse processo de concentração está sobretudo nos altos lucros das AFPs, resultantes em grande medida da comissão que elas cobram de seus afiliados, de 1,2% em média. Essa taxa de administração, somada a contratos com empresas vinculadas, garante às AFPs dividendos que, em 2018, chegaram a 436 milhões de dólares, de acordo com os dados financeiros enviados pelas administradoras à Comissão para o Mercado Financeiro (CMF). “O modelo de capitalização individual obriga as pessoas a contribuírem apenas no setor privado, sabendo que suas taxas são baixíssimas e que as aposentadorias que paga são miseráveis”, diz Marcos Barraza, ex-ministro do Desenvolvimento Social e ex-subsecretário de Previdência Social do segundo governo de Michelle Bachelet. “Totalmente diferente do modelo de seguro-saúde, no qual é possível optar entre um sistema público ou privado. Portanto, a contribuição obrigatória funciona apenas como uma restrição que favorece o lucro da indústria de seguros, e não a aposentadoria de trabalhadores.”
Gonzalo Durán, economista da Fundación Sol, afirma que o problema de fundo está no real objetivo da previdência chilena: “o objetivo do sistema de capitalização individual não é pagar aposentadorias boas nem razoáveis, mas financiar os grupos econômicos e o mercado de capitais em geral”, afirma. Sua análise se baseia nos investimentos realizados pelas AFPs com a poupança dos contribuintes, que atualmente soma 218 bilhões de dólares. Em 1981, as AFPs só podiam investir em renda fixa, um tipo de aplicação segura, que não gera grandes lucros, mas também não apresenta maiores riscos. Quatro anos depois, Hernán Büchi, ministro da Fazenda de Pinochet, deu início a um plano de privatização de empresas públicas que dependia de altos investimentos.
O nascente mercado de capitais chileno viu nas AFPs o investidor ideal para concretizar seus movimentos na bolsa. Em 1994, as AFPs já aplicavam 32,07% de seus fundos em ações chilenas. Em 2008, na crise subprime, perderiam até 40% do valor, depois da queda dos mercados mundiais, incluindo o chileno. Atualmente, elas mantêm 10% do dinheiro sob sua administração investidos em ações chilenas, permanecendo como principal acionista e bastião do mercado de capitais.
De acordo com os dados da Superintendência de Aposentadorias, órgão regulador das AFPs, a média das aposentadorias por idade pagas em abril, último mês disponível, foi de 294 dólares (210 mil pesos, ou 1 162 reais), quase metade do salário mínimo vigente no Chile. A própria superintendência calcula que, com a ajuda do Estado, ou seja, incluindo o chamado “Pilar Solidário”, que acrescenta um subsídio estatal nos casos mais dramáticos, a média de abril sobe para 236 mil pesos, cerca de 70 mil pesos abaixo do salário mínimo.
Já o sindicato que reúne as administradoras, a Associação de AFPs, tem uma visão diferente: “Quem contribuiu com regularidade por tempo suficiente recebe uma aposentadoria que guarda uma relação muito boa com seu salário histórico. As estatísticas da Superintendência de Aposentadorias mostram, por exemplo, que os homens que contribuíram entre 35 e 40 anos recebem uma aposentadoria de 650 mil pesos ( 3 598 reais), e as mulheres, de 498 mil pesos (2 757 reais).”
Gonzalo Durán, da Fundação Sol, explica que isso aconteceria num mercado de trabalho perfeito, onde supostamente todos os trabalhadores contribuem. Mas essa não é a realidade chilena. Os dados, segundo Durán, são categóricos: “Entre as mulheres, 95% recebem aposentadoria por idade, a mais popular, cujo valor equivale a 55% do salário mínimo. Entre os homens, 86% das aposentadorias está abaixo desse limite.” Barraza, o ex-ministro de Bachelet, acredita que isso acontece porque o sistema se baseou numa conta que não fecha: a promessa de que o valor das aposentadorias não ficaria abaixo de 70% do salário na ativa, considerando apenas a contribuição do trabalhador e a rentabilidade possível desses recursos no mercado de capitais.
“Isso tem a ver com o projeto original do sistema de capitalização individual, imposto pela ditadura sem debate democrático”, diz Barraza. “Além disso, partiu-se de uma base de suposições que nunca se concretizaram, pois no Chile, e na América Latina em geral, não existe um mercado de trabalho que possa ser chamado de formal, e portanto é também descabido falar em seguridade social com constância no tempo.”
Essa informalidade laboral não permite a contribuição contínua e deixa grandes lacunas previdenciárias. O baixo montante de poupança, ou contribuição, que atualmente é de 10% do salário, também não ajuda. O sistema antigo era tripartite, com uma contribuição média de 22%. E as mulheres são as grandes vítimas dessa falha de origem.
Apenas 50,6% das mulheres está formalmente inserida no mercado de trabalho e sua remuneração é 21% inferior à dos homens, segundo dados da Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômicos (OCDE). Ou seja, metade das mulheres não contribui, e a contribuição da outra metade é inferior à dos homens. Apesar dessa evidência, o Chile não conta com um sistema de subsídio que compense a disparidade entre gêneros.
“Faz muitos anos que estamos denunciamos essa situação. Não só por causa da aposentadoria das mulheres, mas por todo mundo, porque o problema é transversal e urgente. Mas de nada adianta”, diz Cristina Tapia, presidente da Associação de Pensionistas do sistema de AFPs (Anacpen).
Cristina esteve recentemente no Congresso brasileiro para falar da experiência chilena e detalhou a miséria em que vivem os aposentados do sistema de AFPs. Quando voltou, parlamentares locais também a convidaram para expor seu relato, pois atualmente se discute um projeto de lei do governo Sebastián Piñera que procura reformar o sistema previdenciário chileno, mergulhado numa crise reconhecida até pelo próprio sindicato que congrega as AFPs.
“Nosso tempo está acabando”, diz Cristina. “Já nos aposentamos e vemos passar projetos e mais projetos de lei pelo Congresso. E é sempre a mesma coisa: eles nos chamam, nós falamos, e continuamos com as mesmas aposentadorias miseráveis. Esse sistema é poderoso demais.”
Tradução: Rubia Goldoni e Sérgio Molina