No lançamento de , de Paulo Antonio Paranaguá, em 9 de agosto, houve um debate na sede do Instituto Moreira Salles, no Rio. Paranaguá apresentou o livro, e reiterou seu direito à “reinvenção”.
Vai transcrita a seguir, minha apreciação do ensaio feita nessa conversa de amigos.
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A invenção do cinema brasileiro, de Paulo Antonio Paranaguá, tem como subtítulo Modernismo em três tempos*. É um livro panorâmico, compacto, do qual gostaria de ter podido fazer leitura mais atenta antes desta conversa.
Feita essa ressalva, diria inicialmente que o livro me parece abrangente demais, às vezes dispersivo, e não trata de algumas questões que considero relevantes. Além disso, tenta contestar o que a meu ver é incontestável e se permite certas liberdades, do meu ponto de vista, injustificadas.
Ao propor que “[…] a relação entre Modernismo e cinema no Brasil deve ser encarada no quadro mais abrangente da modernidade” (p.27), não devendo ficar “restrita aos integrantes do movimento modernista na sua fase de fundação”, proposta da qual ninguém discordará, creio que Paulo Antonio caiu na sua própria armadilha, pois a relação do cinema no Brasil com a modernidade é um tema vasto já fartamente estudado. Acrescentar algo a assunto tão conhecido acaba se revelando, a meu ver, um desafio que A invenção do cinema brasileiro não consegue vencer.
Na tentativa de desmentir a suposta indiferença dos modernistas em relação ao cinema, o autor escreve que “o Modernismo conseguiu se afirmar graças a escândalos como o que aconteceu durante a apresentação de Menotti,” (p.22) referindo-se à conferência feita por Menotti del Picchia no segundo dia da Semana, em fevereiro de 1922. Ora, é notório que não foi graças a nenhum escândalo que o Modernismo conseguiu se afirmar. Muito menos provocado por Menotti del Picchia.
Se ainda fosse preciso, bastaria lembrar as obras de Mário e Oswald de Andrade, sem esquecer as de Manuel Bandeira, Sérgio Buarque de Holanda, Tarsila do Amaral, Di Cavalcanti, Victor Brecheret, Heitor Villa-Lobos, Carlos Drummond de Andrade etc., todas autênticas afirmações do Modernismo.
Menotti del Picchia não tem lugar nessa lista. Ele foi, mais do que tudo, um propagandista da Semana, através dos seus artigos no Correio Paulistano. Sequer era levado a sério pelos demais participantes e nunca produziu obra modernista de relevo. Assim como Graça Aranha, Menotti participou da Semana mas não era modernista.
As duas explicações plausíveis que encontro para Paulo Antonio ter destacado um personagem secundário como Menotti são, por um lado, a tentativa de valorizar a “atividade” cinematográfica dele, da qual só restam vestígios tênues, para demonstrar o que é conhecido – os modernistas não eram indiferentes à então chamada sétima arte.
A outra razão possível para dar relevo a Menotti seria fundamentar o primeiro capítulo de A invenção do cinema brasileiro (p.14-20), no qual o autor “inventa” o que Menotti teria pensando enquanto ouvia, em fevereiro de 1922, a conferência inaugural da Semana, proferida por Graça Aranha. “Invenção” só esclarecida, em uma nota, 50 páginas depois.
Eu mesmo tomei, inicialmente, o texto como autêntico, talvez por estar entre aspas, e apesar de ter estranhado a falta de indicação da fonte, imaginei que Paulo Antonio tivesse feito descoberta valiosa – uma reflexão inédita de Menotti sobre cinema. Advertido por ele mesmo que não se tratava de “achado” e sim de “invenção” me senti logrado, como acredito acontecerá com qualquer leitor menos malicioso.
Pior do que ludibriar os leitores, porém, é o passe de mágica feito ao transformar Menotti “em personagem de ficção”, transpondo para o pensamento dele no primeiro dia da Semana de Arte Moderna, informações diversas, algumas colhidas em depoimento que ele deu quarenta anos depois a Maria Rita Elieser Galvão (Crônica do Cinema Paulistano. São Paulo: Editora Ática, 1975. pp.248-257). Liberdade que o autor volta a tomar quando se baseia em declarações publicadas de Humberto Mauro (p.66-72) e, sem a menor cerimônia, imagina uma situação durante o Festival de Veneza de 1938, na qual atribui depoimentos de diversas épocas ao pensamento de Mauro em uma tarde de chuva.
Fora do âmbito da prosa ficcional, nem a defesa da “invenção” como arma para a ação ou o conhecimento, feita por Paulo Emílio na epígrafe de A invenção do cinema brasileiro, nem a advertência do personagem de Deus e o diabo na terra do sol citado de que “é tudo verdade ou imaginação”, nem uma nem outra justificam infiltrar personagens, situações e pensamentos “inventados” em texto que trata de fatos históricos e de pessoas cuja obra e biografia são conhecidas e documentadas, especialmente sem que o leitor conheça o código no qual o texto opera.
O mais curioso é a absoluta desnecessidade da “invenção” do personagem de ficção Menotti del Picchia e de seus pensamentos para comprovar que os modernistas não eram indiferentes à sétima arte. Entre inúmeras referências documentais possíveis, bastariam as páginas dos jornais de fevereiro de 1922, nas quais os anúncios da Semana de Arte Moderna aparecem lado a lado com os dos filmes em exibição em São Paulo. Entre os atraentes títulos disponíveis naqueles dias, disputando a atenção dos paulistanos e dos modernistas, estavam: Os pecados de Santo Antônio, A canalha de Pariz, Almas errantes, Sorrindo à morte, Mea culpa, Se eu fôra rei etc., nenhum dos quais sugere qualquer propósito de renovação estética.
Outra opção, ainda mais esclarecedora, para mostrar o lugar que o cinema ocupava nos corações e nas mentes dos modernistas, seria citar o artigo “O triunfo de uma revolução”, de Oswald de Andrade, publicado 5 dias antes da abertura da Semana, no qual ele escreve: “O século contemporâneo do cinema, do telégrafo sem fio, das travessias aéreas intercontinentais, exige uma maneira nova de expressão estética – talvez ainda eivada de absurdos aparentes, chocantes, rascante, brutal portadora de germens esplêndidos para uma primavera.” (Jornal do Commercio, São Paulo, 8 de feveriero de 1922, p.2. Reproduzido em 22 por 22 – A Semana de Arte Moderna vista pelos seus contemporâneos, Maria Eugênia Boaventura, org.. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2000. p.51)
Ao resgatar Menotti do esquecimento como “homem de cinema” (p.22) apenas por ele ter exercido atividade “moderna na essência” (p.23) e ao propor, conforme mencionado, que “a relação entre Modernismo e cinema no Brasil […] não deve ficar restrita aos integrantes do movimento modernista na sua fase de fundação” (p.27), Paulo Antonio abre o flanco para que se pergunte qual é o motivo que o leva a destacar a atuação pioneira de um cineasta eventual e “positivamente contra a vontade” como Menotti, segundo a observação de Maria Rita Eliezer Galvão no seu livro já citado, que ao pensar em adaptar um romance para o cinema escolheu Lucíola, obra exemplar do Romantismo, enquanto ignora o Major Luiz Thomaz Reis que, entre 1914 e 1930, a serviço da Comissão Rondon, fez o primeiro grande registro filmado e fotografado das nações indígenas, do sertão e das florestas brasileiras. Caso o Major tivesse merecido a atenção devida, o autor poderia ter registrado que em 1918, quarenta e quatro anos antes do show da Bossa Nova no Carneggie Hall de Nova Iorque, o então jovem capitão Thomaz Reis supostamente exibiu na mesmo local o filme Wilderness (De Santa Cruz), acompanhando uma palestra do ex-presidente Theodore Roosevelt.
Em matéria de “atividade” moderna, o Major não só precedeu como foi muito além de Menotti, participando à sua maneira do projeto modernista de descobrimento do Brasil, do qual fazem parte as viagens de Mário de Andrade à Amazônia e ao Nordeste, assim como a extensa filmagem, que A invenção do cinema brasileiro também negligencia, realizada pela Missão de Pesquisas Folclóricas, em 1938, fruto da iniciativa de Mário de Andrade quando ainda estava à frente do Departamento Municipal de Cultura. Caso tivesse dado atenção a esses viajantes modernos, o autor poderia ter situado melhor a importância do que menciona de passagem como sendo a “notável série de documentários produzidos por Thomaz Farkas” (p.127), idealizada, diga-se, por Geraldo Sarno em 1968/69.
Paulo Antonio escreve que a interpretação de Paulo Emílio e Ismail Xavier, segundo a qual o cinema brasileiro foi ignorado pelos modernistas, virou “uma doxa [ou seja, um lugar comum] da historiografia do cinema brasileiro. Talvez porque os comentaristas adotaram inconscientemente como marco zero da modernidade o Cinema Novo […] Essa versão do desencontro está a serviço de uma dramaturgia com final feliz na década de 1960.” (p.42)
Nesse trecho, Paulo Antonio volta a oscilar entre menções aos “modernistas” e à “modernidade”, embaralhando os dois termos que se referem, o primeiro, aos participantes de um movimento, e o segundo a um período histórico. Situar o marco zero da “modernidade” no época do Cinema Novo não faria o menor sentido, o que não impede os “modernistas” de terem desconhecido, de fato, o cinema brasileiro, com exceção de Mario de Andrade que, segundo o depoimento de Rubens Borba de Morais, era “alvo de grandes caçoadas de seus amigos” por assistir com “o maior interesse aos filmes nacionais”.
Quanto ao suposto “final feliz” que teria unido o Modernismo e o Cinema Novo na década de 1960, a esta altura dos acontecimentos talvez fosse mais adequado considerá-lo apenas como um flerte.
Outro engano que, a meu ver, A invenção do cinema brasileiro comete é atribuir ao Cinema Novo um “viés anti-hollywoodiano herdado do Partido Comunista” (p.34).
Embora alguns dos diretores do Cinema Novo tenham mantidos vínculos, formais ou informais, com o PC, a influência do Partido não só era menor do que se supõe, como nunca afetou a admiração dos jovens realizadores por John Ford, os musicais da Metro, em geral, e Gene Kelly, em particular, Chaplin etc. A oposição a Hollywood era essencialmente econômica, com desdobramentos políticos, e não estética.
Afirmar, como Paulo Antonio insiste em fazer, que “o encontro entre os modernistas e o cinema foi intenso, deslumbrante e prolongado” (p.43) só pode ser entendido retirando o cinema brasileiro da equação. O encontro entre “os modernistas e o cinema” ao qual ele se refere ficou restrito ao “gosto” e à “apreciação” do cinema, assim como à absorção da nova linguagem ao estilo poético e literário de algumas obras.
A inegável fascinação dos modernistas pelo cinema em vez de desmentir apenas reitera o desencontro deles com o cinema feito no Brasil.
Apesar de fundamentar sua visão, em grande parte, no pensamento de Paulo Emílio, em especial no artigo “Cinema: trajetória no subdesenvolvimento”, publicado no primeiro número da revista Argumento, em 1973, Paulo Antonio toma posição que me parece contraditória quando postula a necessidade de não reduzir “a história [das cinematografias] à esfera da produção, devendo-se “articulá-la com a evolução da distribuição e da exibição, com o mercado e o público, esse grande desconhecido dos historiadores do cinema.” (p.165)
Contraditória porque parece admitir a existência de cinema em países que não produzem filmes, o que talvez possa ser entendido como parti pris de crítico, pesquisador e historiador, além de viciado em jornalismo.
Para chegar a ponto de falar em “divórcio” entre o Modernismo e o cinema brasileiro (p. 12 e 31), o que segundo Paulo Antonio “a voz dominante na bibliografia”, no Brasil, insiste em fazer, creio que para não contrariar a lógica teria sido preciso que tivesse havido antes, em algum momento, uma união entre eles. Como isso não ocorreu até o surgimento do Cinema Novo o que se deve admitir é que houve apenas algumas manifestações isoladas da modernidade, sem vínculo com o Modernismo, em filmes como São Paulo, a symphonia da metrópole, de 1929, e Limite, exibido pela primeira vez em 1931.
No caso de Limite, de Mario Peixoto, embora constitua um marco da modernização do cinema brasileiro, como não foi exibido comercialmente (p.65) deixou de se integrar propriamente à modernidade.
Não há malabarismo intelectual que Paulo Antonio possa fazer para alterar certos fatos: (1º) Não houve participação do cinema na Semana de Arte Moderna; (2º) Não há referências de que os participantes da Semana, salvo Mário de Andrade e Menotti del Picchia, tenham tomado conhecimento da existência do cinema brasileiro. Padrão que se repetiria com a que A invenção do cinema brasileiro chama de “segunda geração modernista’, agrupada na revista Clima, entre 1941 e 1944. Ela tampouco tomou conhecimento da existência do cinema brasileiro, como o autor admite (p.98), a não ser alguns anos depois quando alguns deles acolheram com simpatia os filmes produzidos pela Vera Cruz, onde trabalharam diretores e técnicos europeus, não norte-americanos, e cujos filmes mais uma vez não guardam vínculo com o Modernismo.
Mesmo Paulo Emílio, um dos integrantes do grupo de Clima a quem Paulo Antonio dedica boa parte da segunda metade de A invenção do cinema brasileiro, levou 20 anos para descobrir o cinema brasileiro e a se tornar um dos seus mais dogmáticos defensores.
Antes disso, porém, Paulo Emílio elevou a crítica cinematográfica a um patamar inédito na cultura brasileira, dando contribuição decisiva, como Paulo Antonio bem diz, para “a criação de um novo público, de uma plateia mais exigente, de um espectador mais participante, uma das condições para o surgimento de uma nova maneira de fazer cinema no Brasil, para o Cinema Novo.”(p.107)
No período anterior à proliferação de cursos de cinema na universidade, Paulo Emílio foi, de fato, um dos grandes mestres da primeira geração do Cinema Novo e, depois dele ter se tornado professor, da geração seguinte.
Ainda assim, só forçando a mão, é possível dizer, como faz Paulo Antonio, que “Paulo Emílio é o elo perdido entre o Modernismo e o cinema brasileiro” (p.109). Se alguém merece esse título, não hesitaria em dizer que é, em primeiro lugar, Joaquim Pedro de Andrade e também, em certa medida, Glauber Rocha.
Glauber, por seus dois primeiros curta-metragens, Pátio e o inacabado Cruz na praça, que não são mencionados, além dos três primeiros longa-metragens, Barravento (1962), Deus e o diabo na terra do so (1964) e Terra em transe (1967), sem esquecer Di (1977) e também a ortografia de uso pessoal que criou.
Joaquim Pedro, de maneira mais direta, é claro, por ter sido herdeiro de uma linhagem iniciada em Mário de Andrade, e que passa por seu pai, Dr. Rodrigo Mello Franco de Andrade, seu padrinho, Manuel Bandeira, seu professor, Plínio Sussekind Rocha, e o leva a começar a carreira fazendo documentários sobre Manuel Bandeira e Gilberto Freire, seguir adaptando um poema de Carlos Drummond de Andrade e Macunaíma, a rapsódia de Mário de Andrade.
O caso de Joaquim Pedro é particularmente emblemático por ele ter se voltado contra essa tradição ao retratar Oswald de Andrade em seu último filme, O homem do páu brasil, que mereceria análise menos complacente do que a feita em A invenção do cinema brasileiro.
Embora de vida breve, tendo durado cerca de 8 anos, de 1962 a 1969, o Cinema Novo foi mais uma tentativa, provisória e parcialmente bem sucedida, de superar a divisão desigual da cinematografia mundial, assegurando ao Brasil um lugar entre o “pequeno número de (países) produtores”, livrando-o da fatalidade de ser mais um entre o “enorme número de (países) consumidores” (p.165). Por alguns anos, o Cinema Novo contribuiu, dessa maneira, para a modernização do Brasil.
Depois de um capítulo sobre o Tropicalismo cuja razão de ser é misteriosa, uma vez que o movimento guarda relação distante do cinema brasileiro, Paulo Antonio conclui A invenção do cinema brasileiro constatando que foi a TV Globo “quem acabou realizando e deformando o sonho de unir a consciência dos brasileiros numa comunhão cultural ou imagética” e não “os modernistas nem os cinemanovistas”. (p.170).
O que se pode deduzir, em chave um tanto melancólica, é que o encontro do cinema brasileiro com o Modernismo demorou a acontecer, e quando finalmente ocorreu acabou sendo fugaz.
Nas linhas finais de A invenção do cinema brasileiro, Paulo Antonio afirma que ao “escrever sobre Modernismo e cinema brasileiro” mergulhou “nesse mundo de luzes e sombras, cheio de fantasmas, com a ingenuidade do protagonista de Nosferatu do Murnau”, filme lançado no mesmo ano da Semana de Arte Moderna. (p.173)
Quero crer na sinceridade dessa confissão, embora o próprio texto não a confirme. No lugar de ingenuidade, o que ressalta em A invenção do cinema brasileiro é gosto pela polêmica, vontade de reescrever a história, e um certo viés irônico.
*Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2014.