No final dos anos 70, morei por três meses na cidade de Berkeley, Califórnia. Berkeley é uma cidade com clima universitário, gente de toda parte do mundo, muito bacana. Eu sempre gostei de estudar, e lá me senti em casa. Uma noite, fui jantar com uns amigos num pub e me tornei, por obra deste acaso, a cantora de um grupo de americanos que tocava música brasileira. Eles não acreditaram quando me ouviram cantarolar baixinho, em português, a canção que estavam tocando. Não lembro bem, mas acho que foi Carinhoso. Animados e surpresos, vieram até a minha mesa e me convidaram para ser a cantora do grupo. Aceitei.
Mas o que aconteceu de mais importante nesta minha estadia lá foi ter conhecido a música de John Coltrane. Havia uma pequena loja de discos de jazz onde eu encontrei um tesouro: um LP, The Best of John Coltrane. Comprei o disco, fui pra casa e quando coloquei o disco na vitrola não podia acreditar no que estava ouvindo: que som era aquele?
Aquele som, o sax de Coltrane, dizia, sem dizer, da minha procura, da busca do sentido da vida. Eu tinha acabado de me formar em filosofia, cantava e não sabia direito que caminho seguir, pensava que tinha que fazer uma escolha, ou isto ou aquilo, e não isto e aquilo. Só depois fui entendendo que era possível e muito bom conciliar os dois caminhos, a música e a filosofia.
A música de Coltrane me impregnou de um sentido existencial e religioso. Ouvindo sua música, parecia que minha alma enfim conseguia se libertar e sobrevoar- a mim mesma? a cidade? Minha alma vibrava com a melodia que o sax tocava. Ora calma e iluminada, com os desenhos lindos da melodia que Coltrane fez para sua primeira mulher, Naima, um dos mais belos temas do jazz.
Ora inquieta, em ziguezague, pura vibração, sheets of sounds, blue train.
Ora trêmula diante da imensidão do cosmos e do mistério do mundo. Havia na sua música uma inquietação existencial e estética que buscava libertação. Assim eu senti.
Coltrane nasceu na Carolina do Norte em 1926 e morreu ainda moço, inesperadamente, em 1967. Até seus amigos se surpreenderam com sua morte prematura. Um gigante do jazz. No início dos anos 50 tocou com as bandas de Dizzy Gillespie e Johny Hodges. Mas a sua grande e fulminante aparição foi ao lado de Miles Davis, que em 1955 o chama para fazer parte de seu quinteto. Coltrane torna-se famoso da noite para o dia com o solo que faz em Round about Midnight. Foi durante o trabalho no quinteto de Miles Davis que desenvolveram a improvisação modal, isto é, ao invés de ficar presa às possibilidades harmônicas, a improvisação passava a ser feita com escalas, o que produzia uma nova sonoridade e dava maior liberdade ao músico.
Em 1957, Coltrane trabalha com Thelonius Monk. Sobre esta parceria, Coltrane conta: “ Às vezes ele tocava um esquema de acordes alterados diferentes do meu, sendo que nenhum dos dois tinha algo a ver com a música dada. Nós saíamos um para cada lado e quando nos encontrávamos num determinado ponto, Monk salvava a situação. Várias pessoas nos perguntavam como é que nós conseguíamos nos entender. Não havia o que discutir, selecionávamos um esquema harmônico básico e depois cada um fazia o que queria.”
Nos anos 60, Coltrane forma seu próprio quarteto, do qual fazem parte McCoy Tyner, piano, e Elvin Jones, bateria, e grava o que viria a ser seu maior sucesso com o público: a versão de My favorite things, canção de Rodgers e Hammerstein, para o musical The Sound of Music (A Noviça Rebelde). Coltrane toca esta melodia no sax soprano, imprimindo um timbre acentuadamente anasalado, o que faz lembrar o som da zoukra, um instrumento de origem árabe, espécie de oboé oriental. Na interpretação que ele faz deste tema, a repetição obsessiva das notas da melodia cria uma sonoridade oriental, própria das ragas hindus e das escalas árabes, que através da repetição das mesmas notas induz ao êxtase místico .
Em 1964, Coltrane grava com seu quarteto a peça jazzística A Love Supreme, obra mística, por muitos considerada sua obra prima.
Para Coltrane, podemos dizer que a música, como o amor e a religião é experiência mística, é elevação. Não é à toa que o nome de um de seus últimos e mais radicais trabalhos é Ascension. Se pensarmos que o espírito é o que vivifica a matéria, o que anima o corpo, o que o põe em movimento, a gente vê a íntima afinidade entre ambos. A música, como o espírito, é invisível, incorpórea e dá ânimo, co-move aquele que a escuta e aquele que a executa. Não é a toa que a música é um elemento fundamental da religião, principalmente da oriental, onde através do canto ou da dança – os sufis e seu rodopiar incessante – a pessoa atinge o êxtase religioso. Alguma coisa desta natureza nos acontece quando ouvimos sua música.
Acho que podemos ver no desenvolvimento de sua arte uma ascese mística, em que ele parte do que ainda tem estrutura em direção à ausência de limite, de definição. Sua música rompe os limites da tonalidade, melodia e ritmo se fundem e ela vai rumo ao infinito, reino do que não tem limite, do que não tem forma. Fim e início de tudo, a música, como o amor, é para ele transcendência: ouvir John Coltrane é uma espécie de iluminação.