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    Mauricio e o pai na última viagem que fizeram juntos, em junho de 2016, a Cascais, em Portugal - Foto: Acervo pessoal/Mauricio Zacharias

questões da velhice

A mentira

Roteirista reflete sobre a morte do pai e a ironia da doença de Alzheimer, na qual o único ileso ao sofrimento é o paciente

Mauricio Zacharias | 25 dez 2020_08h15
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Tenho o mesmo nome do meu pai, Mauricio Zacharias. Nos meus  documentos, você encontrará outros nomes no meio, mas estes servem  apenas de enfeite, porque por onde vou sou conhecido pelos dois da ponta. Quando, por alguma razão, um amigo descobre que também sou Eduardo Neves, há sempre uma surpresa, quase um susto, como se a  possibilidade de eu ser algo diferente de Mauricio Zacharias me transformasse numa outra pessoa. Aos íntimos da família sou Mauricinho, em deferência ao progenitor que me deu seu nome. Sou carioca, roteirista e vivo em Nova York há mais de vinte anos.  

No começo de março de 2020, com o mundo começando a fechar fronteiras por causa da pandemia, recebo um comunicado da American Airlines anunciando que estaria encerrando seus voos para o Brasil. Naquele momento eu não tinha planos de viagem, mas senti uma profunda ansiedade pensando no meu pai que, aos 85 anos, não andava nada bem de saúde. Na verdade, ele nem andava mais. 

Já de volta ao Rio, escrevi um relato da peripécia que foi a minha  viagem. Contei como a pandemia foi alterando meus planos dia após dia, e como as minhas decisões foram sendo manipuladas por esse vírus  misterioso, com cara de vilão extraterrestre. Apresentei o texto para a piauí, que mostrou interesse em publicá-lo. Da edição veio apenas uma sugestão: que eu esperasse o tempo de quarentena voluntária para fechar o relato com o reencontro com meu pai. Fazia sentido; o texto falava da alta ansiedade de uma nova realidade distópica, e pedia um desfecho. 

Porém meu pai estava com Alzheimer avançado; ele não me reconheceria, não conseguiria se comunicar e nem me estenderia seu braço pro nosso aperto de mão secreto, que ele chamava de “nossa oraçãozinha”. Se muito, esboçaria um sorriso vazio. O  gosto pela vida sempre fora a característica essencial do meu pai, e fechar o texto com esse reencontro me parecia desonroso. Fiquei de mãos atadas; eu precisava de um final feliz.

 

É impressionante como, mesmo sem conseguir reconhecer o próprio filho, o doente de Alzheimer mantém uma memória musical que é sua última conexão cognitiva com o mundo. Da última vez em que eu tinha estado no Rio, poucos meses antes, meu pai não sabia exatamente quem eu era, mas continuava batucando num ritmo perfeito seus sambas prediletos. Participei de algumas sessões de musicoterapia com ele e fiquei impressionado ao ver como ele ficava esperto na hora do samba; batucava no pandeiro com destreza e, como se soubesse que estava abafando, ainda abria um sorriso malandro. Foi um pouco desses momentos que usei para concluir o texto do reencontro:  

No carro com meus pais, cruzando a Mata Atlântica no alto da Serra dos  Órgãos, sou surpreendido pela voz de Beth Carvalho cantando 1.800  Colinas, um dos sambas favoritos de meu pai. Aumento o volume, e de repente estamos cantarolando, enquanto o velho batuca em ritmo perfeito na caixa de remédios no seu colo. Nesse momento, eu não poderia estar em nenhum outro lugar.  

Porém, isso não aconteceu bem assim. A cena final, na realidade, foi outra. Desde minha última visita, papai perdera também a conexão musical. Sua reação a qualquer estímulo exterior ficava cada vez mais tênue. Na viagem de carro para a casa da minha irmã em Itaipava, tentamos acordá-lo com alguns de seus sambas favoritos, mas nada. Ele mal abria os olhos. Não entendia para onde estava sendo levado, nem que o carro  era um carro. Sofria quando as curvas jogavam-no de um lado para o outro. O máximo que pudemos fazer foi tentar ajustar o travesseiro para deixá-lo um pouco mais confortável.  

Mas, roteirista calejado, alterei a realidade para dar corpo ao texto. Inventei uma cena que nunca aconteceu, e parece que funcionou. Recebi mensagens emocionadas de leitores que aplaudiam a família cantando junto com o velho no batuque, subindo a serra num dia de sol. Onde mais eu poderia estar? Acredito que a mentira bateu forte porque, mesmo parecendo uma cena clichê de cinema, o sentimento declarado era real, mesmo profético. Três semanas após aquela dramática viagem de carro, meu pai faleceria.  

Passamos os dias na casa em Itaipava, a família toda, cada um na sua atividade diária, e juntos tomando conta do meu pai. Talvez pela culpa de morar distante do sofrimento, tive prazer em participar da angústia que é cuidar de um paciente com Alzheimer avançado; o importante era estar perto do meu pai. Aquele velhinho frágil que tinha de ser levado para debaixo do chuveiro numa cadeira de rodas era o mesmo homem que tinha dado asas ao meu sonho de estudar cinema em Los Angeles.  

 

Mauricio pai veio de uma família de imigrantes sírios que se  estabeleceu em Bangu, no subúrbio do Rio de Janeiro. Depois de muito suor e sete filhos, meus avós conseguiram se mudar com a prole toda para a Zona Sul, onde abriram um armarinho na Rua Barata Ribeiro com Hilário de Gouveia. A lojinha de esquina vendia botões, tecidos, apetrechos gerais e, no carnaval, até lança-perfume. Minha avó trabalhava na máquina de costura preparando pijamas e outras peças de roupas básicas. Trabalhavam dia e noite, num ambiente onde nada se perdia. Faziam toalhas e lençóis e, se o tecido já não era suficiente, encurtavam o  último par e anunciavam “lençol para casal magro” – com um desconto, é claro. Os filhos mais velhos formaram-se em direito, medicina e odontologia. Só meu pai, o caçula, ficou trabalhando no armarinho, até  partir para o seu próprio negócio: uma loja de “modas” com o nome da  família. Casou-se, e minha mãe teve a ousadia de levá-lo pra Ipanema. O casal tinha ambição e foi subindo na vida. Quando anunciei que tinha sido aceito no mestrado em cinema da USC (University of Southern California), em Los Angeles, eles  bancaram. Seu Mauricio plantou “loxinhas” em Copacabana, e foi colher premières em Nova York.  

Agora, sem autonomia nenhuma, era cuidado como um bebê. O único lugar em que ficava confortável era em sua cama, mas mesmo assim, de noite, tinha de ser virado de três em três horas, para evitar feridas internas, as  famigeradas escaras. O resto do dia, ele cochilava intermitentemente. Na hora das refeições, era trazido pra mesa, quando lhe davam um mingau de arroz e feijão, misturado com carne moída, ou frango desfiado. Sabores já lhe escapavam, mas ainda tinha apetite. A família  em volta tentava animá-lo com berros carinhosos – uma tentativa de quebrar o sono insistente, misturada com o desespero de ver o  patriarca naquele estado. Assim fomos levando por duas semanas, até que, no domingo de Páscoa, pra nossa surpresa, ele perdeu o interesse em matar a fome. Ainda aceitou um sorvetinho à tarde, mas daí pra frente não se interessou nem mais em beber água. De acordo com tudo que tínhamos estudado sobre a doença, era o princípio do fim.  

E quem poderia culpá-lo por dizer adeus naquele momento? A família reunida à sua volta na varanda da casa de campo trocava ideias sobre o  presente apocalíptico e o futuro incerto. Para um homem que construiu  sua vida com o comércio de rua, e que viu seu mundo se expandir com viagens e amigos, aquela pandemia não fazia o menor sentido. Talvez fosse mesmo uma boa hora para, como ele mesmo dizia, tirar o time de campo.  

Descemos no dia seguinte pro Rio de Janeiro e, preocupados, ligamos pro médico dele – o camisa dez do time que agora tomava conta de sua vida. Ouvimos a ordem de levá-lo para o hospital, onde adaptariam um tubo a seu estômago para alimentá-lo forçadamente. Mas a família havia concordado que não iria recorrer a esse tipo de manutenção artificial e, mesmo angustiados, questionamos o doutor. Ouvindo nossa reticência, ele subiu o tom. Com que autoridade questionávamos sua  recomendação médica? Estávamos preparados para o horror de uma morte em  casa? A vida do meu pai não fazia mais sentido, e isso era mais que claro para todos nós – por que então prolongá-la? Havia ainda o risco de contaminação num hospital no meio de uma pandemia, principalmente para  minha mãe, que insistiria em acompanhá-lo. Conclusão: papai continuaria em casa.  

Dessa vez, ele ficou direto na cama. Nas várias tentativas de reanimá-lo, ele não mostrava interesse em nada e continuava sem querer se alimentar. Difícil deixar seu pai definhar, mas no correr dos longos dias, ele engasgava até mesmo com as poucas gotas de água com que molhávamos a sua boca. Ficava confortável apenas no seu sono. Entendemos que ele preferia que o deixássemos em paz.  

Na sexta-feira, em preparação à visita de uma médica especialista em cuidados paliativos, chego cedo pra ajudar no “banho”. Durante a semana toda, enfermeiras cuidavam da higiene do meu pai, mas hoje, com minha  participação especial, ele teve um banho de esponja caprichado. Talvez a aparência arrumada tenha lhe dado um ar mais animado e, com o céu azul brilhando lá fora, fiquei com muita vontade de levá-lo pra dar uma volta e respirar o ar puro. Hesitei ao vê-lo tão fraco e, lembrando da pandemia, resolvi que abrir um pouco mais a janela seria mais do que suficiente.  

A médica chega ao cair da noite, junto com a escuridão e, depois de uma exaustiva explicação sobre o fim da vida em casa, ela entra sozinha no quarto para examinar o doente. Minha mãe, irmã e eu ficamos na sala digerindo, assustados, a descrição da morte por sufocamento, frequente nessas situações, e a menção da necessidade de morfina, que dificilmente poderia ser  administrada fora de um hospital. Ainda discutimos sobre como seria  complicado montar o esquema de home care que ela recomendara, no auge da pandemia. Nós tínhamos esperado que aquela visita nos trouxesse, além de um parecer experiente, um consolo, um alívio à nossa ansiedade mas, ao contrário, a tensão só aumentara. Minutos depois, a médica vem  esclarecer a situação: papai estava calmo, quieto e em paz. Não demoraria muito para partir.  

Já no meu apartamento, exausto pela tensão do dia, sonhando com o  descanso da noite, sento para tomar uma sopa. O telefone toca. É meu sobrinho, que ficara em casa para jantar com minha mãe. Basta ouvir seu choro do outro lado da linha para perceber que teríamos uma longa noite…  

Não me lembro de ouvir meu pai reclamar da vida. Ele tinha uma  capacidade fora do normal de tomar conta de toda família, e de tudo em volta, sem demonstrar qualquer esforço. Problemas eram para serem resolvidos discretamente, com bom humor e certeza de vitória.  

A ironia é que, nos últimos anos, ele desenvolveu uma doença na qual o único ileso ao sofrimento era o paciente. Foi perdendo a capacidade cognitiva até não encontrar mais o seu banheiro no apartamento onde viveu mais de trinta anos. A família, antes protegida, agora torna-se protetora, uma transformação muito mais dolorosa do que sugere a simples inversão dos adjetivos. Se soubesse desse final, meu pai diria que estava tudo errado. A vida era pra ser levada no batuque. Se fosse diferente, aí sim era mentira.

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