Em 1854, aparece Do Belo Musical, livro escrito pelo crítico austríaco Eduard Hanslick. É difícil exagerar a importância que a obra teve para o futuro da música e, de modo mais amplo, para as artes em geral. Hanslick estabelece uma visão puramente formalista: música é, antes de tudo, combinação de sons. Formas musicais como os lieder, os oratórios, as cantatas, as óperas, nas quais as palavras significam, seriam formas mistas que misturam formas e sentido – não devem ser confundidas com a essência da música. Esta é tão somente arquitetura sonora, composta de “combinações e formas sonoras que não possuem outro tema que não elas próprias”. E se a música deseja respeitar sua natureza, deve permanecer alheia a qualquer esfera extramusical.
Não é possível captar a real dimensão que esse tipo de análise propiciou, sem levar em conta o caminho percorrido desde o século XVI, quando a música ainda era submetida à poesia: o libreto primava sobre a melodia. Fazendo-se porta-voz de seu tempo, o compositor e teórico Gioseffo Zarlino (1517-90) chegou a declarar que música era questão de narrativa e tema, tanto quanto de harmonia.
Não se ignorava o poder próprio do som enquanto som, considerado independentemente das significações. Mas estimar que o som puro significava não implicava pensar que a música fosse capaz de dispensar referências extramusicais: ela devia dizer alguma coisa a propósito de algo, mesmo se fizesse isso com seus meios próprios. O poder emocional dos sons era inseparável das palavras. No século XVIII, Rousseau viria a sustentar que a origem da música estaria na linguagem melodicamente modificada pelas paixões, afirmando que música autêntica é música cantada.
Como ocorria com a pintura, era impossível conceber a música sem referências externas. É o que deixa claro, por exemplo, o comentário do Abade Du Bos, ainda no século XVIII: “Toda música deve ter um sentido. O que diríamos de um pintor que se contentasse de jogar sobre a tela traços brutos e massas de cores as mais vivas, sem qualquer semelhança com um objeto conhecido?”
Nessa mesma época, figuras como Jean-Philippe Rameau questionavam esse dogma da subordinação da música ao texto. O compositor francês criava peças que não seguiam o libreto, não procuravam imitar a palavra pelo som (por exemplo, subindo a melodia toda vez que se pronunciasse a palavra “céu”, ou, inversamente, descendo a melodia sempre que aparecesse o termo “chão” ou “abismo”).
O século XIX seguiu tal trilha e foi além. Analisando a Quinta Sinfonia de Beethoven, E.T.A. Hoffmann vai louvar a música enquanto arte autônoma, “desdenhando toda ajuda e intervenção exterior”, a única arte capaz de exprimir com pureza a quintessência da própria arte. Estava estabelecido o conceito de música pura.
Quando Hanslick retoma o tema da música pura em seu livro, ele o aborda de maneira diferente. A pureza à qual se refere não deve mais ser posta na conta de um élan metafísico, de uma potência capaz de nos colocar na presença do absoluto, como acontecia no pensamento de Hoffmann – agora a pureza remetia a uma concepção puramente formal da música.
Ao sustentar que a música prescinde das palavras, e que seus poderes são bem maiores quando as descarta, o crítico austríaco instaura uma revolução, abrindo caminho para outros que aprofundarão suas intuições (Hermann von Helmholtz, por exemplo, com sua teoria fisiológica da música, ou as próprias reflexões de Stravinsky).
O mais interessante é que essa revolução no modo de pensar a música foi percebida como o modelo das revoluções formalistas que seriam realizadas no âmbito das outras artes. Livre da sujeição ao significado (no caso, livre das palavras), a música se torna a arte farol dessa modernidade formalista.
Não foi por outro motivo que artistas tão diferentes quanto Théophile Gautier e Eugène Delacroix, um pela literatura e o outro pela pintura, consideraram a música como arte absoluta. E absoluta porque rompeu a ligação com o significado, com a referência, com o símbolo, com a ideia – a música só pode transmitir uma sensação.
Mas o que poderia ser visto como fraqueza ou limitação, torna-se o signo maior de sua força: essa incapacidade é a condição de sua pureza e sinaliza a possibilidade de uma arte completamente autônoma, autossuficiente, que tem seu fim em si mesma. Eis a música realizando um dos grandes ideais da arte moderna: tornar-se um mundo à parte, um cosmos em si. Foi por isso que Walter Pater escreveu, em 1873, que “todas as artes aspiram sem cansar em alcançar a condição de música”.