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anais da política

A neutralidade impossível

Estudo inédito mostra que republicanos são mais tolerantes com falhas do governo Trump – uma revolta seletiva também existente no Brasil

Cláudio Couto | 26 abr 2018_15h00
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No Brasil, as panelas não bateram contra a corrupção de todos os políticos supostamente corruptos. Da mesma forma, diferentes juízes não são percebidos como heróis ou vilões igualmente, entre cidadãos de diferentes matizes ideológicos e preferências partidárias. Assim como achar se foi impeachment ou golpe, depende muito das convicções prévias de cada um. Cada pessoa, a depender do âmbito do espectro político em que se situa, tem um corrupto para malhar ou chamar de seu, ou uma régua diferente para medir como anda nossa democracia.

Não se trata, porém, de uma peculiaridade brasileira. É um fenômeno ubíquo e recorrente que os cidadãos julguem o mundo, ou especialmente seu país, de acordo com suas preferências ideológicas e partidárias. Isso é demonstrado cabalmente no mais recente levantamento do Pew Research Center sobre a opinião dos norte-americanos sobre sua esfera pública, valores cívicos e instituições do sistema político e da democracia de seu país, divulgado nesta quinta-feira, 26 de abril. O Pew não é o que se convencionou chamar de think-tank, instituições com orientação política clara e voltadas à proposição de políticas públicas de determinado corte; ele se autodefine como um fact tank voltado à pesquisa em ciências sociais embasada em dados. Seu relatório revela um quadro interessante das opiniões políticas dos americanos, com especial atenção a como elas se dividem de acordo com os alinhamentos partidários.

Um dos fatos relevantes do levantamento é o de que cidadãos democratas são claramente mais críticos a seu país e às instituições de seu sistema político do que os republicanos. E se tornaram ainda mais críticos após a posse de Donald Trump, enquanto seus compatriotas republicanos se tornaram mais condescendentes. Isso vale para quase tudo: sistema político, economia, padrão de vida, militares, avanços científicos, serviços de saúde, lideranças empresariais, proteção às minorias, representatividade dos governantes, entre outros itens. Há um único caso, contudo, em que o sinal se inverte de forma clara: a mídia jornalística. Enquanto democratas tendem a ver a imprensa de forma positiva e independente dos partidos e do governo, republicanos enxergam exatamente o oposto.

Não surpreende que esses cidadãos sintam-se representados por Donald Trump, pois, assim como o presidente, a maioria dos norte-americanos identificados como republicanos (ou, ao menos, simpáticos ao partido) concordam com a ideia de que a grande imprensa é parcial a favor de posições liberais (no sentido americano do termo) e, portanto, enviesadas em prol do Partido Democrata. Os frequentes ataques de Trump à imprensa, portanto, fazem sentido para esse segmento do eleitorado – que é o seu.

Enquanto isso, no Brasil, a grande imprensa é achincalhada igualmente por aqueles que pedem “Lula Livre” e pelos que veem em Bolsonaro um mito; enquanto para muitos dos primeiros a grande mídia é responsável pelo golpe e pela perseguição ao PT, para os segundos ela está repleta de comunistas ou, o que daria no mesmo, “esquerdopatas”. Se, nos Estados Unidos a grande imprensa leva pancadas da direita, no Brasil ela apanha tanto da esquerda como da extrema direita.

Partidários altamente engajados discordam sobre a independência da mídia nos EUA

% de membros de cada partido a dizer que essas frases descrevem bem o país, divididos por nível de engajamento político

Republicanos Democratas

Organizações de mídia são independentes do Governo

Organizações de mídia não favorecem partidos

Políticas do Governo refletem a visão da maioria dos americanos

Ideias daqueles que não fazem parte da maioria são respeitadas

FONTE: PEW RESEARCH CENTER

Curiosamente, contudo, cidadãos democratas e republicanos são bastante concordes com relação a valores fundamentais da democracia americana: uma maioria dos dois lados do espectro é favorável a dezesseis noções básicas de um regime democrático, como a ideia de que deve haver liberdade para protestar, que os militares não devem interferir em política, que os poderes de Estado devem estar equilibrados, que os juízes não devem ser partidários e assim por diante. Dentre esses dezesseis temas, democratas e republicanos estão virtualmente empatados em oito; em outros cinco a diferença entre eles é de menos de 10%; e em apenas três assuntos a distância de preferências é igual ou maior que 10%.

Ocorre que o apoio a valores ou consignas em abstrato não é algo tão difícil; o mais complicado é lidar com tais princípios na prática. Por isso, é na avaliação de problemas concretos – como o desempenho do governo e da mídia, ou (sobretudo) a concretização de direitos e a implementação de políticas públicas – que as diferenças aparecem mais claramente. Por exemplo, 81% dos republicanos e 86% dos democratas acham muito importante que os “direitos e liberdades de todas as pessoas sejam respeitados”; porém, ao mesmo tempo, entre a parcela politicamente mais ativa, apenas 34% dos republicanos, contra 85% dos democratas (50% de diferença) acham que pessoas que não deveriam votar acabam votando. Do que se trata aqui? Do fato de que enquanto muitos republicanos acreditam que imigrantes, bem como seus descendentes, além de negros e hispânicos (sobretudo no sul dos Estados Unidos) não deveriam votar, mas votam, os democratas em sua grande maioria não consideram que qualquer problema ocorra aí. Mais do que isso, muitos democratas talvez considerem que as restrições ao voto dessas minorias ainda existem e são inadmissíveis. Isto é, haveria gente de menos a votar, não gente a mais.

Em suma, é na implementação das práticas políticas (por meio das ações e decisões de agentes públicos) que os valores de uma sociedade realmente contam. É para aí que se deve olhar caso se deseje entender como um sistema político efetivamente funciona, inclusive no que concerne às opiniões de seus cidadãos. Isso vale lá nos Estados Unidos e aqui também.

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