Há dois anos, o jornalista venezuelano Andres Schafer, 55 anos, deixou seu país sem esperança de voltar. Bem antes disso, a distopia na qual está mergulhada a Venezuela – cujo regime voltou a ser pressionado esta semana, com cobranças de Donald Trump na ONU por mais esforço para “restabelecer a democracia” no país – já era visível e, ao que tudo indicava, irreversível. Só restava partir. No trecho abaixo, que faz parte de um livro que está sendo escrito sobre os últimos dezoito anos do chamado “populismo autoritário” ou “autoritarismo competitivo” – como gostam de dizer os acadêmicos –, Schafer conta – a partir de sua experiência pessoal com o El Comandante, que o chamava de “Flaco”, como se deu a construção do chavismo, como o fenômeno dividiu o país, levou a população à miséria, promoveu a chamada “revolução bolivariana” abrindo espaço para a eleição de mais um populista, o atual presidente Nicolás Maduro.
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Era noite de sábado, deve ter sido em outubro ou novembro de 1998, quando recebi a ligação de Rengifo, o gerente de produção da Cinesa/Bolívar Films em Caracas. Uma hora estranha para receber uma proposta de trabalho. Eu já havia trabalhado com ele como diretor em comerciais de baixo orçamento, e ele sabia que eu possuía um equipamento de som básico e que também era um sonoplasta confiável. “É confidencial. Preciso de gente em quem eu possa confiar”, disse-me. A filmagem seria no dia seguinte. Tivemos que chegar a um consenso quanto ao pagamento e sua resistência em me dizer quem era o cliente, mas finalmente entramos em um acordo. Viriam me buscar às cinco da manhã. Quando falei que poderia ir por minha conta, ele relutou antes de me dar o endereço: “Multinacional de Seguros” disse, e me fez prometer que eu não iria contar para ninguém. “Agora você sabe.”
É claro que eu sabia. A Multinacional de Seguros era a empresa de Tobías Carrero, amigo de infância do então candidato a presidente da Venezuela, o tenente-coronel Hugo Chávez. Ele também era o principal financiador daquela campanha eleitoral – a primeira das três que o firmariam no poder por longos quatorze anos. Quando percebi que iríamos filmar uma propaganda política para Chávez, eu rapidamente passei a me questionar moralmente: era certo promover a candidatura de um militar de média patente que tentou um sangrento golpe de Estado em 1992 contra um governo democrático, no qual houve quase 100 mortes, e cujos companheiros tentaram assassinar o presidente? Não. Mas também achei que independentemente do que eu fizesse seria uma ínfima parte do que outros haviam feito e ainda viriam a fazer. Não havia como parar Chávez, ele chegaria ao poder. Se eu não fizesse o som, alguém o faria. E eu precisava do dinheiro. Mas, acima de tudo, eu queria conhecer de perto um mito, que já estava em fase de formação.
Quando cheguei às seis da manhã, o céu ainda estava escuro. Os eletricistas começavam a descarregar o caminhão. Encontrei um bom lugar para estacionar, mas uma produtora me enxotou: aquele lugar estava reservado a alguém mais importante do que o “departamento” de áudio. Como o cinema é uma arte visual, a equipe de som é sempre deixada de lado. São encontrados no último canto restante do set, depois que todos os outros departamentos reclamaram para si os seus devidos territórios. “Uma imagem vale mais do que mil palavras”, é o que todo mundo diz, de forma condescendente. Mas são, na verdade, as palavras que produzem imagens na mente.
Palavras como “revolução”, por exemplo.
Entrei na cobertura da Multinacional e lá estavam eles, camaradas de tempos antigos. Tenho uma vaga lembrança de Tobías Carrero com uma camisa de alfaiataria cor-de-rosa. Ele ganharia ainda mais dinheiro nos anos seguintes, graças a apólices de seguros para funcionários públicos. Também estava lá Luis Miquilena, conhecido como “Don Luis”. Uma venerável ruína política já entrando nos seus 80 anos de idade e também um pilar financeiro do movimento chavista. Mas acima de tudo, o homem que serviu de mentor para Chávez quando ele estava na cadeia – depois da tentativa de golpe – e que o resgatou das “catacumbas do povo”, como ele próprio gostava de chamar. Don Luis iniciou sua carreira como motorista de ônibus e sindicalista pela mão do Partido Comunista. Sofreu tortura e perseguição durante a ditadura de Marcos Pérez Jiménez nos anos 50. Mas, com a democracia, tornou-se ultrapassado e passou a se dedicar aos negócios. Manteve, no entanto, a inimizade com os social-democratas da Venezuela, a principal e de longe a mais bem-sucedida força de democratização no país. Agora, estava de volta, apesar da idade: em boa saúde, magro, caminhando de jeans e sandálias, com um charuto na mão. Alguns anos mais tarde, já no governo, Don Luis cairia em desgraça após se envolver em um caso menor de corrupção: uma de suas empresas foi contratada para imprimir um milhão de cópias da nova Constituição, aprovada para garantir-lhes longo poder.
O pessoal da produtora – Rengifo e seu chefe, Bracho, – vasculhavam o guarda-roupa do estúdio para ver se Chávez havia deixado os mulambos de lado e já havia se corrompido por roupas de grife e relógios. “Sapatos Bally”, Bracho murmurou. O outro riu. Culto, versado na sétima arte, o que não se percebia pela sua atitude casca grossa, Bracho era o encarregado do networking e a promoção da firma, “o cara que sabe tudo de política”. Quando a companhia produzia peças de propaganda política para exibir em seus telejornais, era Bracho quem dava as cartas. Ele dizia quem ficava e quem ia embora. Um bom diretor era aquele que conseguia antever as vontades do chefe.
A produtora estava muito estressada. Havia se desentendido com um ajudante de El Comandante, precisamente em relação ao guarda-roupa. O estilo, ela nos disse, era asquerosamente marcial. “Gritam contigo como se você fosse um servo”, disse furiosa e com os olhos vítreos, sem perceber que tais modos se tornariam normais em pouco tempo.
O candidato chegou acompanhado de sua nova esposa Marisabel, uma loura de olhos azuis que em breve seria catapultada de jornalista de província ao posto de primeira-dama. Os dois eram amistosos. Chávez tinha fama de sociável e logo passou a ser chamado de Hugo por todo mundo, virando o centro das atenções. Contava piadas o tempo todo. Pedi para fazer uma checagem de som, pouco antes de deixar a câmera rodar. Ele limpou a garganta e disse, em voz alta e com visível prazer: “Quando eu for presidente, vou fritar a cabeça de todos os social-democratas no óleo”, citando o que se tornaria uma de suas mais famosas gafes. A equipe toda se divertiu com a piada, mas Marisabel deu-lhe um tapa na perna e o repreendeu: “Hugo, quantas vezes nós falamos para você não dizer mais isso?” Ele respondeu, malandrinho: “Droga, não deixam eu me divertir!” Parecia um esquete cômico que o casal interpretava seguidamente. Funcionava com o público.
Chávez tinha outro tique (na verdade, ele gostava dessas manias, que acabavam lhe favorecendo): golpear a mão direita com o punho esquerdo (era canhoto, coisa que tínhamos em comum). Foi um sucesso imediato e se tornou a saudação oficial entre seus seguidores. Era como se dissesse: “Sou um de vocês, gente. Compartilhamos da mesma raiva por aqueles que estão lá em cima. Vamos dar a eles o que merecem.”
Lá atrás, nas sombras, evitando a luz e com olhos verdes opacos, alguém não estava rindo; estava sempre quieto. Era o consultor de imagem de Chávez. Um homem da República Dominicana, foi a única coisa que me disseram. Não havia nome, empresa. Nada.
A filmagem em si foi tranquila. Chávez era um orador nato. Internalizando a impostação afetada de radialistas pomposos, servira até mesmo de locutor oficial nas paradas militares em feriados nacionais. Ele sentou-se diante de uma mesa, com uma estante cheia de livros atrás, como se sugerisse cultura para contradizer a sua imagem de bárbaro do interior. A propaganda começaria mostrando pessoas diferentes e comuns dizendo: “Eu só quero que os meus filhos tenham um bom ensino.” ou “Eu só quero uma aposentadoria depois de ter trabalhado tantos anos.” E nós iríamos filmar suas ideias para aqueles problemas. Ele apareceria em plano médio dizendo: “Estes são revolucionários que querem uma mudança. Vamos fazer essa mudança juntos por uma Venezuela melhor.” Tivemos que fazer várias tomadas, no entanto. O seu tom rude não poderia ficar aparente, e o diretor tentou suavizá-lo com limitado sucesso. Finalmente encerramos e foi isso. Nosso trabalho estava pronto.
Mas não o do dominicano nas sombras.
Depois de algumas semanas, Rengifo ligou novamente. A peça havia sido exibida para um grupo focal e a palavra “revolucionários” não foi bem aceita. Agora, teria que ser trocada pela palavra “venezuelanos”. Rengifo queria fazer apenas o som, para poupar dinheiro. Ele sempre tentava economizar filme 35mm quando podia. “É só uma palavra”, disse. “Venezuelanos em vez de revolucionários. Só isso.” Eu disse que não tinha como sincronizar isso, mas no outro dia estávamos lá de volta, tentando fazer Chávez dizer “venezuelanos” em vez de “revolucionários”. Ele era o mesmo cara de antes, autoritário e excessivamente informal. O diretor fazia o melhor possível para reduzir a altura da sua voz. Talvez estivesse sendo respeitoso demais. Não sei. Mas estava demorando muito e eu resolvi assumir, principalmente porque, nessa solução improvisada, eu era o único que conseguia ouvir nos fones o que o Chávez falava, tendo que reforçar constantemente o ritmo da frase para deixá-la da melhor forma possível. Depois de duas ou três tentativas, eu disse a ele: “Você fala alto demais. As pessoas não gostam. Tente falar um pouco mais baixo.” Ele riu e disse: “esse flaco (magrinho) é legal, não é? Tem um cigarro?” Agora, Chávez e eu, tínhamos que fumar. Mas algumas piadas depois, finalizamos tudo. O som estava sincronizado com a imagem. Era óbvio que ele estava falando algo diferente do que se ouvia, mas ninguém deu bola. A peça foi ao ar e foi um sucesso. E eu os ajudei.
Em pouco tempo, Don Luis, como tantos outros, cortariam relações com Chávez. Todos invariavelmente alegavam que ele os traiu, ou então os enganou. Em uma entrevista recente, Don Luis disse: “Depois de ter vendido um projeto para o país, ele (Chávez) apareceu com outro.”
Como “revolucionários” em vez de “venezuelanos”. Don Luis, é claro, não fazia ideia.
A campanha continuou e Chávez se tornou irrefreável. O status quo passou a apoiar o outro candidato, Henrique Salas Römer. O homem era mais velho, havia abandonado o Partido Democrata Cristão e pertencia a uma rica e tradicional família de Valencia, uma cidade conservadora a duas horas de Caracas. Basicamente o oposto de Chávez, à primeira vista. Salas abandonara a legenda por não ter levado as primárias do partido. Em seu lugar, seus correligionários apoiaram Irene Sáez, uma belíssima ex-Miss Universo que estava na frente das pesquisas.
Todos os três candidatos expressavam o mesmo sentimento contra a política, mas Chávez tirava proveito disso com uma velocidade espantosa. Conforme as eleições se aproximavam, os principais partidos retiraram o apoio aos seus candidatos e correram para Salas, que tinha os números menos piores. A Miss Universo teria que disputar sozinha, o que pegou mal com o público. Na Venezuela, uma semana antes do dia da votação, os partidos na disputa encerram a campanha com o maior comício possível, e o tamanho das multidões serviu como uma antecipação do resultado. Meu amigo Rafael e eu tínhamos filme 16mm. Alugamos uma câmera e fomos filmar os dois eventos. Novamente, eu faria o som.
Chegamos no final da tarde. A Avenida Bolívar, uma ampla artéria modernista que demoliu várias quadras da antiga cidade nos anos 40, estava prestes a explodir. Custamos a achar lugares livres na tribuna de imprensa. A estrutura frágil estava tomada por fãs exaltados que a escalavam. Um comentarista chavista disse mais tarde que havia 3 milhões de pessoas, ainda que não houvesse lugar para mais de 80 mil. Mas isso parecia ser irrelevante.
O palanque principal era bastante cobiçado. Os mais notórios golpistas de 1992, que bombardearam o Palácio Presidencial, estavam lá. Não houve um, mas dois golpes: Chávez e seus amigos em fevereiro e outra turma em novembro. A confraria se uniu, e a eles juntaram-se esquerdistas, vários empresários incógnitos e figuras marginais do velho sistema político. Podíamos ver as novas celebridades políticas de longe, enquanto lutavam para se aproximar do centro do poder, apenas para serem expulsas pelos seguranças. Havia aquele diretor de um filme político que denunciou execuções abraçando o almirante golpista que escreveu um poema louvando a pena de morte. Realmente, uma estranha mescla de esquerdistas e militares. E havia Vladimir, que eu conhecia dos tempos de faculdade, excelente parceiro de conversa e de bebida, animando a multidão pelo microfone. Ele, o filho de um líder sindical comunista da classe trabalhadora e de uma judia burguesa da Croácia que na infância escapou milagrosamente dos nazistas em Zagreb durante a Segunda Guerra. Ambos pais expressando com a própria vida o que a nação havia sido até o momento, tudo o que ela havia reunido, e o filho expressando em palavras o que o país logo se transformaria ao entoar: “Aí vem El Comandante!”, sem perceber o quanto “El Comandante” lembrava “Der Führer”, o título de Adolf Hitler, o homem responsável pelo assassinato de parte da família de sua mãe – para dizer o mínimo.
Tudo se resumia aos recursos visuais e as pessoas esquecem que são as palavras que importam. Dois ou três anos depois, o embaixador dos Estados Unidos John Maisto tentaria fazer pouco de Chávez, dizendo: “Não escutem o que ele diz. Vejam o que ele faz.” Ele estava errado.
Não foi apenas o uso subconsciente da linguagem de Vladimir que me deixou preocupado. A chegada de Chávez estava sendo atrasada, um estratagema tipicamente empregado pela propaganda, seja ela fascista ou socialista. Helicópteros cruzavam os céus de tempos em tempos, e toda vez a massa suspirava, achando que El Comandante estava a bordo observando a multidão, prestes a aterrissar imediatamente em um impossível local de pouso. Algumas pessoas carregavam caixões com os dizeres “políticos”, “empresários” e “sindicatos”. A três metros de distância, a mesma casta desprezível era representada num monstruoso híbrido de diferentes animais, feito em papelão, chamados TOCOCHA, “Todos contra Chávez”. Não era de forma alguma uma expressão de espontaneidade popular, mas sim parte da coreografia.
No cair do sol, a cena se tornou insólita. As pessoas começaram a ficar nervosas, num misto de frustração antecipada e grandes expectativas. Os helicópteros, que mal podiam ser vistos, continuavam voando na escuridão. A multidão estava começando a ficar cansada quando Chávez apareceu, em cima de uma caminhonete, iluminado por uma bateria de luzes cinematográficas. Ele rumou lentamente até o palanque, golpeando a mão direita com a esquerda várias vezes. A caminhonete mal conseguia se mover em meio à imensa massa de pessoas e ficou presa a cerca de vinte metros do palco. Houve um momento de hesitação, e Chávez mergulhou repentinamente na multidão, para o desespero dos seus guarda-costas. Foi carregado de mão em mão, como um Cristo de madeira em uma procissão pagã, deslizando sobre a superfície do que se tornara um gigantesco organismo. Nossa tribuna de imprensa balançava violentamente graças a um grupo que a escalava tentando alcançar um melhor lugar para avistar o ídolo. De noite, Chávez finalmente pisou no palco acompanhado por sua mulher e pelos seus seguranças visivelmente exaustos. E então, o casal pulou em um cesto, que começou a ser lentamente erguido por um braço mecânico por sobre a multidão. Atingido o ápice, um pequeno grupo na aglomeração passou a cantar o hino nacional e Chávez se intrometeu, liderando o canto desde o início com sua estrondosa voz. Não era o costume nesses comícios políticos, logo antes do dia da votação. Era uma espécie de acordo tácito de civilidade republicana: o hino pertence a todos, e cantá-lo seria uma forma de apropriação. Como se não quisesse deixar nenhuma dúvida, Chávez exclamou ao terminar: “Aqui estamos nós, os patriotas da Venezuela!”
Foi um momento telúrico. Era deles, e de Chávez, uma “força” que rondava pela pátria. No putsch de 1992, eles “tiraram da bainha a espada da dignidade. Naquele momento, em 4 de fevereiro de 1998, uma nova história da Venezuela começava a ser escrita”. Para aqueles “que nos chamam de ditadores, respondemos como Jesus de Nazaré: ‘Pai, perdoa-lhes porque não sabem o que fazem.’” Ele continuou a narrar que foram das “catacumbas do povo” às montanhas nevadas e florestas tropicais da pátria-mãe construindo um novo poder. “Eles pensam que somos uma ameaça, prestes a conquistar o poder”, disse, fez uma pausa e então se virou: “Mas não. Nós não estamos prestes a conquistar o poder. Nós já temos o poder.” E a multidão rugiu.
Agora, era a vez dos adversários: todos haviam sido reunidos no monstro TOCOCHA. Seria bom ter todos amarrados juntos para que pudessem ser destruídos de uma vez só. Na verdade – ele continuou – seriam todos misturados a uma gigantesca e fétida bola. “Vocês todos sabem de que material é feita esta bola”, disse, “mas eu não posso dizer o nome.” O público foi ao delírio. Agora havia um “nós” e um “eles” corrupto em uma bola fétida, como imagem negativa. Ele estava segregando a sociedade em duas. Deus e o Diabo na Terra da Graça.
Muitos imigrantes europeus depois da Segunda Guerra Mundial não falavam do seu passado, principalmente para os filhos. O terror havia ficado para trás e, num certo sentido, a Venezuela era um paraíso, um retorno para uma era anterior à queda de Hitler. Talvez isso tenha acontecido com Vladimir. De outra forma, não consigo entender como ele pôde não estremecer em momentos como aquele. Ou talvez sendo um comunista, e estando do lado das vítimas, ele sentiu – como geralmente sentimos – que estava em um lugar moralmente seguro, onde certas coisas simplesmente não podem nos afetar. Vai saber.
De uma forma diferente, o encerramento da campanha de Salas se valeu de uma simbologia telúrica similar. Alguém no seu grupo teve a ideia de organizar uma grande cavalgada de Valencia até Caracas com 3 mil cavalos e entrar na cidade como conquistadores. Os aliados e simpatizantes de Salas se consideravam uma alternativa “democrática” ao Chavismo. Mas a cavalaria com seus animais espalhando esterco pelas avenidas da cidade não causou essa impressão. Eles demonstravam seu comando sobre a montaria de uma forma imponente, como grandes proprietários de terras acostumados a dar ordens e a ser obedecidos por esposas, filhos e empregados. Os que não tinham esses hábitos, pareciam capatazes. Ao longo da caravana, enfileiravam-se curiosos e apoiadores, mas seguidamente alguém gritava desafiadoramente “Viva Chávez!”. A narrativa deles estava sendo destruída pelos símbolos que habitavam a mente do povo. Tinha os ecos de uma era pré-moderna, dos caudilhos e das campanhas militares, das revoluções e dos ditadores. Não havia como não ouvir a repercussão. Ainda assim, estava oculta no espetáculo visível.
O sentimento na grande maioria era contra a democracia, e o Chavismo tinha, sem sombra de dúvida, a melhor proposta. Confundindo pátria e república, o povo escolheu quem iria fazer o melhor trabalho de demolição. E que escolha fizeram.
No dia de sua posse, diante de todos os Três Poderes, dos representantes do corpo diplomático e em cadeia nacional, Chávez se recusou a fazer o juramento formal e declarou que a Constituição era moribunda. Jurou substituí-la por uma nova, o que ele fez. Uma vez no poder, a nova maioria mudou as regras do jogo, sob a orientação de Don Luis, ainda no lado certo da história. Criaram a sua nova Constituição, ampliaram o mandato presidencial para seis anos e permitiram a reeleição. “Uma vez tendo o poder, jamais deve-se abrir mão dele” parecia ser o slogan deles, e garantiram que isso estivesse sacramentado em lei. Já não era mais uma democracia, mas o poder de uma maioria. Uma nova forma de populismo autoritário, ou o que alguns acadêmicos chamam de autoritarismo competitivo.
Foi dito muitas vezes que Chávez deu um golpe de Estado em câmera lenta. Mas era mais como se o seu controle tivesse aumentado tão lentamente que só poderia ser percebido em time-lapse, como em filmes sobre fenômenos naturais. E toda vez que surgia uma nova oportunidade, vinha também uma explosão de conflito e energia repressiva que permitia a ele dar mais um salto à frente.
Durante a era Chávez, muitos de nós se recolheram à vida privada ou se valeram da profissão de jornalista para abordar a política como algo a ser informado da forma mais objetiva possível, como correspondentes em um país distante. Aqueles colegas que não se resguardaram acabaram se perdendo no caminho. Tornaram-se especialistas, formadores de opinião, mas principalmente marqueteiros.
Não adiantou. A polarização é uma guerra civil de atritos. A mente totalitária quer a sua mente. E Chávez queria que todos gostássemos dele, não importa o que acontecesse.
Minha esposa Nathalie e eu começamos a namorar nos primeiros anos desse novo amanhecer. Tínhamos passado um fim de semana romântico em uma enclave da Floresta Negra alemã situada nas íngremes e isoladas montanhas tropicais, e estávamos no caminho de volta quando o carro começou a enguiçar. Continuamos dirigindo, tentando chegar o mais perto possível de casa. Pouco antes de chegar na cidade, percebemos que havia uma comemoração do Dia das Crianças no Fuerte Tiuna, a principal instalação do exército em Caracas, com sua grande esplanada para desfiles militares. E bem em frente ao Fuerte Tiuna, o carro parou de funcionar. Nós saímos, levantamos o capô, olhamos o motor aqui e ali, os dois sem saber nada de mecânica, e ligamos para amigos que também não puderam nos ajudar. Aguardávamos o guincho, torcendo para que a massa de pessoas não decidissem passar por ali justamente naquele momento. Mas, de repente, motocicletas com guarda-costas começaram a aparecer. Pensamos: “Merda, as ‘moscas’”, era como chamávamos a guarda do presidente. “A apresentação acabou, a multidão está vindo.” Mais “moscas” surgiram do nada, e finalmente ouvimos alguém chamar: “Flaco! Flaco!” Nós nos viramos e avistamos, na outra pista, um buggy cujo motorista acenava para nós. Do seu lado, uma loura de olhos azuis. No banco de trás, uma bebezinha. E os guarda-costas enlouquecidos ao seu redor. Lá estava ele: Chávez, usando um abrigo nas cores da bandeira venezuelana, com a esposa e a filha. Ou ele me reconheceu – aquele chato do som – ou foi algo muito próximo disso. “O que aconteceu, cara? Qual o problema com o carro?” ele gritou. “Eu não sei, eu… eu… não sei nada de mecânica”, gaguejei ridiculamente. “Quer ajuda?” Eu ia dizer “n-n-não, já chamamos o guincho” mas Chávez fez um gesto desajeitado e estalou os dedos para os guarda-costas. “Vão lá ajudar o Flaco!”
“Flaco!” ele gritou mais uma vez. “Vou deixar esses caras aqui com você, até mais.” E foi embora. Os guardas vieram até mim e expliquei a situação. Eles reviraram os olhos e correram de volta ao chefe.
Eu pensei: talvez esse cara queira ser igual Napoleão que, segundo dizem, sabia o nome de cada um dos seus soldados. Realmente, um pensamento estranho: eu não sou um soldado.
Chávez deixou claro repetidas vezes que havia uma guerra entre povo e oligarquia, pobres e ricos, revolucionários e os que não eram. As cidades passaram por um processo de segregação: alguns bairros eram “revolucionários”, outros eram “esquálidos”. “Esquálido” era o apelido que Chávez inventou para seus opositores. Os espaços públicos tornaram-se propriedades de quem estava no poder: teatros, museus e parques públicos viraram arenas do partido. Setores inteiros do Centro da cidade eram ocupados por violentos partidários do governo, criando territórios hostis onde políticos da oposição, ou qualquer “esquálido” que manifestasse uma opinião diferente, eram expostos a violentos ataques. Devagar, mas consistentemente, todos nós começamos a seguir rumos distintos.
Naqueles primeiros dias, um amigo meu à época, Ariel, me mostrou com orgulho um vídeo que ele e os seus camaradas haviam produzido para contra-atacar a propaganda capitalista: mostrava o ataque a uma manifestação da direita ultracatólica contra Cuba sendo dispersada por um esquadrão da esquerda Chavista. As legendas finais diziam algo como “e então, o povo rechaçou o ataque do imperialismo aos nossos irmãos de Cuba…” Perguntei por que atacar a manifestação de um grupo com o qual você discorda totalmente. Os amigos do Ariel não eram a polícia, até onde eu sabia. E então, arrisquei balbuciar algo que já orbitava há muito tempo na minha mente. “Uma coisa”, disse, “é protestar contra a injustiça. Por exemplo, você vai para a Praça Bolívar e expõe um quadro com as fotos dos capitães da indústria que saqueiam o país, segundo você, e faz uma denúncia contra eles. Ótimo, pode ser compreensível, talvez até digno de apoio, provavelmente ilegal, mas você é quem manda. Agora, se você continua fazendo a mesma coisa depois que chega no poder, algo diferente acontece.” Ariel olhou para mim e eu continuei: “Vocês podem brigar com os manifestantes da direita se quiserem, e provavelmente vão ficar uns dias na cadeia por isso. Mas se o seu grupo tem o apoio e a proteção do governo, e talvez apoio financeiro, em resumo, se você está no poder, você deixa de ser um arruaceiro, você passa a ser um valentão. E o seu grupo é uma tropa de choque. Você virou um fascista.” Eu o convidei a refletir profundamente sobre o que estavam fazendo e a perceber que eles tinham assumido o poder, e suas implicações. Ariel agiu como se estivéssemos tendo um diálogo que era parte da autocrítica que se espera de todo bom marxista. Mas ele não parecia estar confortável. Ainda mantivemos contato durante muito tempo, o qual foi minguando ao longo dos anos. Até finalmente desaparecer.
As tropas de choque transformaram-se rapidamente no que eles chamavam de “coletivos”. Na realidade, viraram grupos paramilitares.
E então, as famílias, os amigos, os conhecidos começaram a se afastar. O presidente da rede de televisão estatal, que anos antes havia sido um inquilino confiável e honesto em nosso apartamento, acusou publicamente um amigo nosso de ser agente da CIA por conta de um artigo que ele escreveu na New Yorker – o que fez com que ele se tornasse alvo involuntário para qualquer membro maluco de um coletivo. O homem que abrigamos em casa logo depois do golpe de 2002 agora se tornara um proeminente representante da Assembleia Nacional chavista, e não hesitava em rotular qualquer divergência como traição. Em outras palavras, éramos traidores em sua visão.
Muitos amigos sofreram com os pais ou irmãos que se tornaram militantes ferrenhos de Chávez. Eles ainda acham que esses últimos dezoito anos são os melhores de suas vidas. E não importa que seus entes queridos passam fome pelo desabastecimento, se seus filhos foram forçados a emigrar, se suas vidas foram arruinadas, ou se foram presos ou até mesmo mortos pelo governo ou seus paramilitares: aquilo parecia ser mais forte do que laços de família, e uma consciência maior pareceu ter criado um sentido onde antes não havia nada. Eles não se manifestavam contra isso, para não dar argumentos ao inimigo. Diziam que o filho, a mãe, ou o amigo havia se tornado “dissociado” – outro termo para os dissidentes venezuelanos – e que não podiam mais compreender a realidade. Os mais cínicos mencionavam a “lavagem cerebral” da mídia.
Sempre me lembro da Argentina em 1987. Era um tempo de transição marcado pela incerteza e pelo medo. A Junta Militar havia recém-deixado o poder, após dez anos de terror e de assassinatos, e o governo democrático era fraco. Preparávamos um documentário e fui à Universidade de Buenos Aires, onde os estudantes protestavam contra a Lei de Obediência Devida, que livrava militares de baixas patentes de processos por violações de Direitos Humanos. Ainda lembro de um estudante, com barba no rosto e um casaco verde imundo, falando que seu pai era militar e tinha feito parte da ditadura. Ele mesmo havia sido espancado e torturado pela polícia secreta (os serviços secretos, na verdade, continuaram sendo uma força por um longo tempo após a saída dos atores principais). Mas o seu pai agora execrava o próprio filho, mesmo sabendo que ele tinha sofrido tortura. Talvez o homem tenha agido dessa forma justamente pelo mesmo motivo. Nos seus olhos, a tortura só provaria que o filho fazia parte da mesma escória desprezível com quem ele havia trabalhado anos antes.
Em regimes autoritários, tornamo-nos estranhos um com os outros até não haver mais volta. Depois de ver até onde as pessoas podem chegar e em nome do quê, uma reconciliação se torna uma ingenuidade. Não é um conflito entre duas facções: é um conflito entre seres humanos, um conflito contra humanos próximos a você. Esse é o grande dano que causam no corpo das sociedades, e é irreversível. Pode-se perdoar, começar uma nova vida na sociedade, pacificamente, o que não é pouco. Mas é só isso. É preciso uma geração ou duas para seguir adiante e deixar tudo para trás. Não espere reconciliação. Reconciliação é individual, e é uma graça.
Nossa família está há dois anos morando no exterior. Pertencemos agora aos dois milhões de venezuelanos na diáspora, número que deve crescer significativamente nos próximos meses, com o aumento da crise e o endurecimento do regime. Agora, lembro de quando Chávez era hegemônico e imbatível, quando ele e seus subordinados declararam que precisavam de uma oposição que fizesse justiça ao nome, não a oposição desleal e antipatriótica que havia na Venezuela, como se tivessem o direito de escolher uma personalizada. Até agora, a oposição venezuelana vinha sendo tolerada por não ter chances de vitória nas eleições nacionais. Nas raras ocasiões em que o Chavismo foi derrotado nas eleições locais, teve grande dificuldade de aceitar os fatos: reagiu criando instituições paralelas, ou retirando o direito de participação política dos eleitos, ou simplesmente colocando alguns na cadeia. Com a vitória arrasadora da oposição nas eleições parlamentares de 2015, a coisa ficou feia.
Nosso país está agora mais uma vez passando por uma de suas ondas de violência e repressão ao término de uma sequência de decadência em câmera lenta. Muito provavelmente será a última. A estratégia definitivamente tem sido esvaziar a representação democrática: o presidente Nicolás Maduro começou a governar por decreto, os atos e decisões da Assembleia Nacional foram declarados nulos, e o Conselho Nacional Eleitoral tirou do povo o direito constitucional de votar em um referendo para destituir (ou não) o presidente. Quando a Corte Constitucional da Venezuela transferiu atribuições legislativas a Maduro, o entendimento foi de que houve um golpe, e isso desencadeou a instabilidade que causou mais de uma centena de mortes desde abril deste ano e pôs a nação à beira de uma guerra civil.
Num lance inesperado, dando um grande salto com a convocação de uma nova Constituinte, Nicolás Maduro ultrapassou o sinal vermelho. Tomava uma decisão unilateral, em condições impostas por ele próprio, e sem ter o apoio popular das urnas. Mesmo que Chávez originalmente tenha feito algo similar, ainda assim enviou sua proposta para a aprovação prévia do eleitorado: pelo menos, ele dependia do voto dos venezuelanos. O que não ocorreu desta vez, já que o índice de aprovação de Maduro é baixo demais.
O “Socialismo do Século XXI” venezuelano vem deixando cair a máscara da democracia e do republicanismo. O que vemos agora é a careta do projeto original, que Chávez tentou empurrar com sua reforma constitucional em 2007 e não conseguiu por ter fracassado nas urnas pela primeira e única vez. Na ocasião, como teve que ceder, ficou visivelmente perturbado. Cercado de oficiais militares num cenário que tinha algo de teatro de marionetes, chamou a vitória da oposição de “uma vitória de merda”, como se parafraseasse a cena de abertura da peça absurdista de Alfred Jarry, Ubu Rei. E assim, ele finalmente pronunciou a palavra que não ousou dizer no encerramento de sua primeira campanha. O fato em si é uma metáfora de como o reino mudara durante o seu reinado. Naquele momento, ele perdeu a pose. Também perdeu vários camaradas, como meu amigo Vladimir.
Tudo tem se resumido a imagem, desde o início. “Venezuelanos” em vez de “revolucionários”. Quando o brilho some, o poder revela a sua verdadeira natureza. E endurece o comando.
Uma semana antes de Chávez morrer de câncer, em março de 2013, a imprensa internacional lotou Caracas esperando o pior em meio à total falta de brilho do governo. A Der Spiegel mandou o diretor da sucursal de Paris, Mathieu. Naquela manhã, visitamos um acampamento organizado por estudantes da oposição exigindo transparência total do governo em relação à doença do presidente. Durante meses, a única fonte de informação foram vazamentos a um único jornalista, Nelson Bocaranda. Era a única fonte confiável. Os mais jovens não sabem como é um país sem Chávez e sem a sua onipresença 24 horas por dia.
Carregávamos as baterias dos nossos celulares e assistíamos ao noticiário quando vimos na tela uma gangue de motociclistas composta por paramilitares chavistas sitiando a emissora de tevê Globovisión. Exigiam jornalismo sério e objetivo e que o canal parasse de espalhar mentiras sobre Chávez estar com uma doença terminal. “Onde é isso?” perguntou o Mathieu. “Aqui perto”, eu disse. “Vamos lá.”
Quando chegamos lá, havia uma multidão de fotojornalistas. Os chavistas nos receberam com olhares desconfiados, um tanto antipáticos, e com alguns sarcasmos. Era esse pessoal que ocupou o Centro de Caracas e o transformou em zona proibida para a oposição. Havia duas mulheres: Rosario, mais simpática e falante, e Elisabeth, escondida pelos óculos escuros, o tipo de pessoa com quem é bom não mexer. O Mathieu ficou intrigado com essas garotas duronas com consciência revolucionária, e passou boa parte do tempo tentando pressioná-las a dizer algo que valesse a pena publicar. A turma era liderada por Juancho Montoya – soube um ano depois que ele havia sido morto por homens do governo. Ele era bastante hostil sem ser agressivo. É estranho. Eu encontro esse tipo de gente e tenho a mesma sensação: por trás dessa hostilidade, há um desejo por reconhecimento. E, sendo assim, é uma mão sendo estendida, discretamente.
Juancho chamou seus amigos e disse que aquela não seria a última emissora que enfrentariam. Outras viriam na sequência e não seriam mais toleradas mentiras sobre o estado de saúde de El Comandante. Mas os camaradas não deveriam agir aleatoriamente. “Estamos aguardando instruções”, disse, em meio aos deboches dos fanfarrões. Eu estava traduzindo e com a câmera do iPhone ligada, nunca se sabe. As motocicletas estavam estacionadas do outro lado da rua, debaixo de uma árvore. Algumas pessoas escutavam um rádio de pilha. E então, veio a notícia: “Chávez morreu! Chávez morreu!”, anunciaram. Houve um suspiro duro e grave, como se tivesse saído de um único corpo golpeado na boca do estômago. Aqueles homens e mulheres, mistura de personalidades violentas, revolucionárias e limítrofes, ansiosos por redenção, tinham o rosto empapado de lágrimas. A cena correu o mundo pela imprensa.
No dia seguinte, fomos ao Fuerte Tiuna, o templo do militarismo onde o Dia das Crianças havia sido celebrado quase quinze anos atrás. Não havia mais Chávez andando de buggy. Aqui, seria realizado o seu velório, “junto com sua gente”, como gostam de dizer. Nos seus últimos meses, o que restou após sua quarta vitória seguida nas eleições presidenciais foi um homem cercado, isolado e iludido à beira da morte, obeso e inchado pelos corticoides que lhe ajudaram na mais detestável campanha da nossa história republicana. Desta vez, ele chegara aos extremos dos gastos públicos, do mal uso dos recursos estatais, do discurso de ódio e da violência, deixando um país arruinado para seus sucessores. Um homem que se recusou a prestar esclarecimentos ao povo sobre seu estado de saúde, preferindo mentir para salvar sua revolução.
Havia rostos conhecidos na multidão. Vi Marcelo, o eterno cameraman da Cinesa/Bolívar Films. Estava agora com uma câmera digital, sem filme 35mm e gerentes de produção tentando economizar película. Havia correspondentes de outros tempos retornando. E então eu percebi: as legiões de pessoas em luto, homens adultos chorando, mulheres chorando. Estavam todos vestindo camisas e boinas vermelhas, a cor da revolução. Eram vermelhos não por causa do comunismo, mas porque é a cor das tropas paraquedistas venezuelanas, o batalhão do qual Chávez fazia parte. Ele usava uma boina vermelha quando se rendeu em 1992, naquela primeira aparição na tevê pública que o lançaria na história.
Recebemos a informação de que o corpo de Chávez seria levado em procissão do hospital até Fuerte Tiuna. Pegamos um táxi. A cidade inteira estava tomada de pessoas em uma tristeza profunda e vermelha. Finalmente descobrimos o local por onde o caixão iria passar e ficamos aguardando no mar escarlate até conseguir vê-lo. O caixão levou doze horas para chegar ao destino, debaixo de um sol incandescente. Dentro dele, havia obviamente um boneco. Sua última pegadinha.
De volta a Fuerte Tiuna, pensei no lançamento da última campanha de Chávez em 2012. Eu tinha decidido há tempos evitar a constante radiação de suas permanentes transmissões televisivas, mas um amigo que estava trabalhando havia ficado impressionado com o tom religioso da coisa. Procurei na internet e lá estava ele: a voz trovejando, à beira do delírio, falando para os seus seguidores que não era um só, mas milhões, e que era invencível porque era um povo inteiro. “A vida que resta em mim pertence a vocês”, disse.
Foram palavras de despedida. Mas o país estava tão enfeitiçado por ele que ninguém percebeu o quão óbvio era aquilo. Os mais céticos sempre duvidam do próprio ceticismo, e muitos chegaram até mesmo a achar que sua doença não era nada mais do que um brilhante truque de marketing político. Mas esse foi justamente o grande truque, mostrando o poder de um maquinário de propaganda totalitária e de uma personalidade carismática. Não importa se você é um dissidente. Não há escapatória. Eles sempre irão no mínimo determinar os termos do debate. E mais uma vez, como todo bom ilusionista, Chávez falou. Eles sempre falam, é parte fundamental do efeito mágico. Mas todo mundo está assistindo e ninguém está ouvindo.
Enfim, eu percebi: esse era o segredo. Eles trabalharam duro para criar essa espécie de seita, de religião oficial. Metade do país a segue, uniformizada em vermelho. A outra metade, perplexa, assiste a tudo incrédula. Ambos completamente separados um do outro. Em uma terra árida.
Essa foi a verdadeira conquista chavista. A sua revolução. Os recursos visuais. Mas isso será apagado quando passarem duas gerações, a de Chávez e a minha. E aí, haverá graça. Finalmente.
Tradução de Hilton Lima.