Por Leandro Aguiar, a convite de Paulo da Costa e Silva
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Na fila para o show de encerramento da turnê de The Rise and Fall of Ziggy Stardust and the Spiders From Mars, em julho de 1973, fãs aguardavam ansiosos, alguns vestidos como David Bowie na capa do disco Aladdin Sane, na qual ele, magérrimo e ruivo, aparece com um raio vermelho pintado no rosto. Quarenta anos mais tarde, a entrada do Hammersmith Odeon, em Londres, onde aconteceu o espetáculo, poderia ser confundida com a fila de um show de Lady Gaga: roupas extravagantes, saltos plataforma e collants, homens e mulheres de aspecto andrógino num clima de fashion week, muito glamour e exuberância.
De volta a 1973: Ziggy está no camarim com um de seus maquiadores e comenta distraído algo como: “Sabe, minha mãe ainda guarda nossa primeira espaçonave…” (Dois fatores, entre muitos outros, contribuíram para a recepção de Rise and Fall of Ziggy Stardust como grande obra conceitual do rock: o empenho de Bowie em manter convincente sua persona e a farta documentação da carreira do músico – para onde ia, fazia-se acompanhar de uma reduzida equipe de filmagem.)
Já maquiado, o músico/ator começa a se vestir. A primeira peça, das muitas que desfilaria naquela noite, é um macacão esverdeado, brilhante, que sua camareira abotoa enquanto ele assobia um dos atos da Nona Sinfonia de Beethoven.
Ziggy sobe ao palco e se apresenta, introduzindo a banda, os Spiders From Mars, com as músicas Hang On To Yourself e Ziggy Stardust ao fundo. Em seguida canta Wild Eyed Boy From Freecloud, imponente balada glam, e leva os fãs ao êxtase em um dos pontos altos do show: “It’s really me / Really you and me / It’s so hard for us to really be”
Havia algo de grandioso e épico na performance de Ziggy, algo que ele trouxera de The Who, da ópera e, talvez, de Wagner. Em meados dos anos 60, os Rolling Stones e os Beatles compunham pensando em como as músicas soariam nas gravações, no produto final do LP. Bowie, por sua vez, antevia os shows lotados: o rock de arena do Queen e de Paul Mccartney, bem como o pop de Beyoncé e Madonna, devem muito a ele.
Uma vez no palco, Ziggy sabia ser circense, sedutor e vulgar como uma dançarina de cabaré, mas quando convinha cantava com a classe e o charme de um crooner – não fossem as ombreiras metálicas e as sobrancelhas raspadas, de um Frank Sinatra. Como quem troca de fantasia, ele percorria boleros, o folk psicodélico, baladas com um quê de romantismo de motel e o heavy metal.
No fim do show, Ziggy demonstrou nervosismo ante a multidão. “Esse é o último de todos os nossos shows”, declarou. E a plateia, antes aos gritos, calou-se. Ziggy então cantou seu Rock’n Roll Suicide.
“Escrever músicas como forma de arte se tornou um tanto arcaico. Apenas escrever músicas não é bom o bastante”, se explicou, meses depois, em conversa com o escritor beat William Burroughs.
As ousadias de Bowie e Ziggy conferiram ao pop um poder de que ele goza ainda hoje: o da comunicação por excelência, locus da transgressão e da libertação (da sexualidade feminina, em Madonna; do corpo e do gênero, em Lady Gaga, por exemplo). É essa a força que o mantém na vanguarda da moda; daí o esforço do pop, e da moda também, em se mostrarem tão “conceituais”, assim como o risco de soarem às vezes tão esvaziados de sentido: na ânsia de chocar, cristalizam-se num amontoado de signos que não se referem exatamente a nada – imagens fortes que na verdade são frívolas e superficiais.
Bowie destruiu e construiu ao longo da carreira, ao mesmo tempo, essa superficialidade, intercalando seus retiros ao mainstream e posteriores retornos a ele, seus discos pop e depois experimentais. Graças ao percurso sinuoso, ele ergueu em torno de si uma aura que lhe permitiu postar-se na periferia do mainstream. Sua performance e estética pop exageradas, desconcertantes, e contudo em constante referência e apego aos modelos estabelecidos, apontavam, com mais ou menos sutileza, a decadência de uma sociedade desesperadamente carente de reinvenção contínua.
Esgotado em lidar com suas múltiplas personalidades, a partir de 1974 Bowie se mudou para os Estados Unidos, na tentativa de se despir dos elementos que o constituíam como Ziggy Stardust. “Estou contente em ser eu novamente”, disse, antes do lançamento de Young Americans, metido num terno branco dois números acima do seu e com o cabelo, agora loiro platinado, penteado para trás e repleto de gel.