Além de atual, o realismo dos ambientes luxuosos e da encenação acentuam o tom perturbador de . Em nenhum momento, há razão para duvidar do que ocorre, por mais espantoso que seja. O médico é o monstro, sem necessidade da poção imaginada por Robert Louis Stevenson, em O médico e o monstro, para que surja sua face sombria. Vendo o saber científico e médico a serviço do monstruoso dr. Robert Ledgard, o espectador não pode deixar de ficar inquieto.
Embora o roteiro de deixe de lado grande parte do pequeno romance no qual é inspirado – Mygale, de Thierry Jonquet, publicado na França em 1995 –, preserva justamente o que o título indica ser sua questão central, concentrando-se na transformação do jovem Vicente (Jan Cornet) em Vera (Elena Anaya). “Mygale” – tarântula ou caranguejeira, em português – é uma aranha que troca de pele durante seu crescimento. Além disso, embora de maneira simplificada, como no romance não adota narrativa cronológica. Obriga, assim, o espectador a um exercício permanente de reflexão, enquanto vê o filme, para decifrar o horror à medida que vai sendo desvendado.
Mygalle é o nome dado ao Dr Ledgard por sua vítima, Vincent Moreau. Diz o narrador do romance, dirigindo-se a Vincent: “Mygalle […] por que era exatamente como uma aranha, lento e sigiloso, cruel e feroz, obcecado mas impenetrável em seus desígnios, escondidos em algum lugar neste aposento onde ele o manteve prisioneiro por meses: esta teia de luxo, esta cela dourada onde ele era o guarda e você o prisioneiro.”
Depois do desaparecimento de Vicente, na verdade sequestrado pelo Dr Ledgard, terá sido casual a menção feita de passagem pelo personagem do delegado de polícia à pequena cidade de Finisterra? Foi no fim da Terra (Finisterra), nas pedras da encosta à beira mar, que a motorcicleta dele foi encontrada.
Ter situado em Finisterra o lugar onde a moto de Vicente foi encontrada destruída prenuncia que ele não voltará, ou melhor, não voltará o mesmo, depois de ter sido usado como cobaia e transformado em Vera à base de estrogênio e cirurgia plástica.
Vítima da vingança cruel do Dr. Ledgard, Vera acaba também se vingando dele, aproveitando-se da piedade e afeição que o cirurgião plástico vem a ter por sua criatura.
Co-autor do roteiro e diretor de , Pedro Almodóvar ocupa lugar ímpar no cinema contemporâneo, equilibrando com destreza expressão autoral e atrativos comerciais. Sua originalidade está em não fazer filmes que apaziguem. O que provocam é inquietação.
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Lançado no Brasil em 80 salas, foi visto em 10 semanas por cerca de 420 mil espectadores, um bom resultado comercial, sem ser excepcional.