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    FOTO: PMDB Nacional

questões da política

A ratoeira de Cunha

Eduardo Cunha escapou ileso de diversas armadilhas durante sua vida política. Menos a que preparou para si

Carol Pires | 06 maio 2016_20h21
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Ex-presidente regional do Partido da Reconstrução Nacional (PRN), o pastor Sá Freire, da Igreja do Evangelho Quadrangular, tem duas lembranças da primeira vez em que esteve com Eduardo Cunha: ele tinha o raciocínio rápido e os sapatos furados. “Vi, quando ele cruzou as pernas, que o sapato estava furado”, disse o pastor, repousando um dos pés sobre o joelho contrário e apontando para a sola do próprio sapato. Naquela época, meados de 1989, Cunha tinha 31 anos, mas já sabia duas grandes lições da política: ter senso de oportunidade e se fazer necessário.

Àquela altura, Fernando Collor já liderava a corrida presidencial pelo nanico PRN. Viu ali uma oportunidade de entrar na política pelo andar de cima e pediu para ajudar na campanha. Não só foi aceito, como se tornou indispensável. Viajava o país com o presidente da legenda, Daniel Tourinho, em jatinhos emprestados por empresários. Reportagens da época o apontavam como um dos arrecadadores de dinheiro da campanha, o que não ficou provado e ele sempre negou.

Não tardou a ganhar um apelido do tesoureiro da campanha, Paulo César Farias: “Papabiru: mistura de papagaio – por causa do napa – com gabiru, um tipo de rato mais liso e mais esperto do que qualquer ratoeira.” Por indicação de PC, Cunha começou na vida pública como presidente da Telerj. Pelos vinte e seis anos seguintes, fez jus ao apelido que ganhou do tesoureiro de Collor. Me atenho a apenas dois casos.

 

Ao pastor Sá Freire, Eduardo Cunha se apresentara como representante da Câmara de Comércio Brasil e República Democrática do Zaire (renomeado Congo com o fim da ditadura de Mobutu Sese Seko). Cunha trabalhava para o fundador da Câmara, Josefino Hernani de Freitas Viegas, um empresário já falecido que chegou a ser investigado pela Interpol por falsificação de dinheiro do Bahrein e do Zaire. Cunha e Viegas também eram sócios na empresa HLB Comércio Exterior. E cheques dessa empresa foram parar no esquema PC Farias.

No inquérito que investigou os doleiros Henrique José Chueke e Jorge Luis Conceição, operadores do esquema PC Farias, Cunha aparece na ponta final da engrenagem. PC Farias cobrava dinheiro de empresários (no início para eleger Collor; depois para pagar deputados da base ou para facilitar contratos com o governo) e o usava para custear campanhas eleitorais, além das despesas do presidente e sua família. Para movimentar esse dinheiro, o tesoureiro usava cheques de contas registradas em nomes de laranjas ou nomes falsos. Pelo menos nove desses cheques foram lavados na conta da empresa HLB Comércio Exterior, de Cunha e Viegas.

Nenhum dos dois respondeu processo porque conseguiram o trancamento da ação por decisão da 1ª Turma do Tribunal Regional Federal da 2ª Região. Quem assina o pedido de habeas corpus dos dois é o advogado carioca Nélio Roberto Seidl Machado, que até antes da delação também advogou para o principal operador do PMDB nos desvios da Petrobras, Fernando Soares, o Baiano.

Collor caiu e Cunha passou incólume. Tentou voltar à Telerj no governo de Itamar Franco, mas não conseguiu a indicação. Foi nomeado presidente da Companhia Estadual de Habitação do Rio de Janeiro (Cehab), durante o governo do seu ex-aliado, hoje inimigo, Anthony Garotinho. Também na Cehab escaparia de umas quantas ratoeiras.

 

Na Cehab, Cunha cuidava do programa habitacional de construção de casas populares, projeto vitrine do governo Garotinho. Mas foi denunciado por ter direcionado as licitações para que uma empresa paranaense, a Grande Piso, ganhasse quatro contratos que somavam 34 milhões de reais. Cunha foi absolvido, mas logo processado outra vez: os documentos que apresentou à Justiça para embasar sua absolvição haviam sido falsificados.

Segundo exames grafotécnicos, pareceres recomendando o arquivamento do processo foram falsificados pelo 2º subprocurador-geral Elio Gitelman Fischberg, que também trabalhava como consultor do escritório de advocacia de Jaime Samuel Cukier, advogado de Cunha no caso.

Fischberg, inicialmente, declarou à Justiça “assumir, pessoalmente, e em caráter de exclusividade, toda a responsabilidade penal, administrativa e civil pela falta de veracidade da documentação”. Disse que Cunha “não teve conhecimento de tal falsidade até que foi levada a público.” Antes de o caso chegar ao STF, porém, Fischberg deu outra versão em depoimento. Disse ter falsificado os documentos “mediante chantagem moral”. Uma pessoa de sua família, disse, “sofreria mal injusto” caso ele não os assinasse.

Esse depoimento está anexado ao processo que Cunha respondeu no STF. Fischberg foi expulso do Ministério Público e prestou serviços comunitários como pena. A Justiça ordenou ainda que pagasse multa de 300 mil reais ao Instituto Nacional do Câncer. Cunha, apesar de ter sido o único beneficiado com a falsificação, foi absolvido por falta de provas em outubro de 2014. Poucos meses antes de se eleger presidente da Câmara, escapou de outra ratoeira.

 

Certa vez, Garotinho me disse que sua relação com Eduardo Cunha começou a degringolar quando ele estava na Cehab. Disse que não demitiu Cunha do cargo até que as denúncias se transformassem numa crise de governo porque o padrinho político de Cunha, Francisco Silva, havia lhe pedido para manter o afilhado. “O Chico Silva me dizia: o Eduardo me ajudou muito, vai segurando as pontas aí.”

Em uma entrevista à revista Veja, Francisco Silva contou que Cunha o ajudou a renegociar uma dívida de 16 milhões de reais de uma de suas rádios com o INSS. A conta saiu por 20% do valor original. Cunha se fazia necessário. “Fiquei tão grato que falei pra ele: Você quer ser deputado? Vou te eleger”, contou Silva, que introduziu Cunha e Garotinho no mundo evangélico, dando espaço para ambos na sua rádio, a Melodia, a mais popular do Rio. Foi no eleitorado evangélico que Cunha firmou a base eleitoral que já o elegeu três vezes para deputado federal.

 

Eduardo Cunha foi eleito deputado com a ajuda de Silva e Garotinho, mas depois decolou em voo solo. Com influência limitada no PMDB, passou a angariar apoio entre outros partidos. Em 2013, quando a base aliada estava insatisfeita com o governo de Dilma Rousseff, cobrando mais cargos e liberação de emendas, Cunha se firmou como chefe do blocão, nome dado a um grupo de deputados de nove partidos, muitos da base, que passaram a impor derrotas ao governo em plenário. Soube antever a oportunidade no desleixo do governo com a base.

Foi com o apoio do baixo clero e do sentimento antipetista que já rondava a Casa que se elegeu presidente da Câmara no começo de 2015. Enquanto esteve com o pedido de impeachment da presidente na gaveta, foi o todo-poderoso da República. Como publiquei num post aqui, muitos deputados queriam de Cunha uma troca: se ele deflagrasse o impeachment da presidente Dilma Rousseff, poderia ser salvo no Conselho de Ética, onde passou a responder processo por quebra de decoro. Cunha viu aí uma oportunidade de salvar seu mandato.

Nos dias seguintes à votação do impeachment, se acumularam na imprensa as avaliações de que a permanência de Cunha na presidência da Câmara era um elemento que prejudicava, já na largada, um eventual governo de Michel Temer. O silêncio de seu partido depois da decisão de ontem do Supremo Tribunal Federal de afastá-lo do cargo de deputado, e assim da presidência da Câmara, mostra, acima de tudo, que Cunha deixou de prever que armava uma ratoeira para si próprio: passado o impeachment, deixou de ser necessário.

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