Muitos colecionadores reconhecem que o desejo de possuir uma carta ou um manuscrito de uma grande figura do passado tem algum ingrediente de fetichismo. É claro que obter numa folha de papel, um pequeno fragmento da vida de alguém que se admira é uma maneira de tornar-se um pouco mais próximo da figura admirada. Segurar um mesmo objeto que ela tocou, ainda que fugazmente, é talvez a relação mais íntima que se possa estabelecer com uma pessoa que morreu muito antes de nosso nascimento. Este sentimento é comum, em maior ou menor grau, a todos os colecionadores de manuscritos, e parte da emoção de ter em mãos um original certamente reside nessa cumplicidade compartilhada por alguns momentos.
A partir da Idade Média, a Igreja Católica encorajou intensamente a identificação e preservação das relíquias dos santos. Crânios, tíbias, costelas ou simples fragmentos de ossos dos heróis da igreja ? reconhecidos por sua santidade e canonizados oficialmente pelos Papas ?, eram venerados como objetos de culto e muitas vezes conservados em relicários de ouro e prata adornados com pedras preciosas. Com isso, multiplicaram-se, naturalmente, as relíquias falsas. Se os pequenos fragmentos de madeira, – então identificados como pedaços da cruz de Cristo ?, disseminados pela Europa na Idade Média fossem juntados todos, serviriam para constituir as muitas vigas de um imenso palácio, muito além de uma modesta cruz… Mas era impossível comprovar se aquele osso era de fato uma falange de Santa Catarina de Siena ou de São Tomás de Aquino.
No século XVII, alguns membros da hierarquia eclesiástica resolveram considerar que fragmentos da escrita dos santos poderiam também constituir relíquias, mais críveis e comprovadas que pedaços de tecido, madeira ou ossos.
É neste contexto que se inscreve a raríssima peça reproduzida nesta página. Trata-se de um manuscrito teológico de São Francisco de Sales, bispo de Genebra, um dos santos mais famosos do mundo católico, falecido em 1622 e canonizado em 1655, apenas 33 anos após sua morte. Ignora-se quantas páginas tinha originalmente este texto, escrito por São Francisco numa letra minúscula. O fato é que, 22 anos após sua canonização, clérigos italianos recortaram o manuscrito em pedaços e os colaram a certificados de autenticidade, que não apenas reconheciam o pequeno papel na sua qualidade de autógrafo do santo, como também lhe conferiam um status de relíquia.
A nova modalidade não parece ter feito muito sucesso, pois sobreviveram pouquíssimos desses fragmentos manuscritos de santos colados a seus certificados, (às vezes, como aqui, bem maiores que a própria relíquia) e o culto aos autógrafos de pessoas canonizadas pela igreja católica parece ter sido bastante limitado. Nos últimos 50 anos, surgiram no mercado apenas um singelo relicário de madeira com um fragmento manuscrito de Santa Teresa de Ávila e algumas cartas ou manuscritos de santos posteriores autenticados no próprio papel por um clérigo. Mas este certificado, que reconhece ao manuscrito do santo a sua natureza de relíquia, é o único conhecido no seu gênero fora dos arquivos do Vaticano.