Acontece uma coisa curiosa com o meio musical do Rio: não há mais espaço para a crítica nele (e aqui eu me refiro à crítica capaz de trazer elementos “negativos”, que indagam a obra, que a questionam de modo sincero sobre sua relevância). Só o elogio é válido. Se você frequentar, mesmo que de leve, os nichos da “cena independente”, onde habita uma música com pretensões “artísticas”, “autorais”, “vanguardistas”, etc…, notará nas pessoas (público) um pudor desmesurado em tecer qualquer comentário que não seja lisonjeiro. Qualquer problematização é sutilmente abafada, ou mesmo abertamente reprimida; comentários críticos, se não servirem de confirmação e incentivo, são recebidos com mal estar e irritação.
Para a música do , a crítica há muito se tornou irrelevante. O que importa é vender, arranjar patrocínio, lotar os shows, fazer girar a roda dos lucros. As apreciações são todas de ordem quantitativa: qual é a sua fan base?, pergunta o empreendedor cultural. Para a lógica puramente econômica do a crítica só importa na medida em que pode contribuir para alavancar as vendas. A dissociação entre crítica e mercado aparece em artistas que mesmo com aval crítico não conseguem ter público; e também naqueles que, mesmo ignorados ou repudiados pela crítica, seguem lotando casas de show.
Os tropicalistas denunciaram e problematizaram o que havia de “colonizado”, de “arrogante”, de “preconceito de classe” na base dos juízos da crítica especializada. Tomaram o partido do “gosto de massa”, na fé de que “o Brasil tem ouvido musical”, revelando a grandeza de artistas muito populares que não eram contemplados pela “sofisticação” esnobe de meia dúzia de jornalistas “boçais” – e os esporros públicos de Caetano sempre deixaram claro que, para ele, nossa música popular não tinha críticos à altura. O gesto liberador do tropicalismo (que buscava uma apreciação crítica mais ampla e flexível, menos condicionada por preconceitos e modelos gastos) deveria ter sido um “chacoalhão” no campo crítico, obrigando-o a se refazer a partir de uma cuidadosa autocrítica. Não foi exatamente o que aconteceu. Antes (e por uma série de motivos que vão além do “chacoalhão” tropicalista), a crítica foi desqualificada e tornou-se rala, quase irrelevante.
Mais: é possível que a herança tropicalista tenha se diluído em certo “populismo estético”, boa parte da energia crítica tendo sido redirecionada para a legitimação dos “sucessos populares” – ou seja, do que dava certo no mercado de massas. Há décadas os críticos vêm se insurgindo contra o que consideram, na esteira tropicalista, o “bom gostismo de classe média”; há décadas batem nele como quem chuta um cachorro morto. Antes revolucionário, o gesto hoje é apenas um clichê. Basta aparecer um novo blockbuster musical e logo vem um letrado dizendo que há ali muito mais do que supõe nossa vã filosofia, que o sucesso tem seus motivos e méritos (por trás dele quase escuto a voz de Caetano repetindo “vocês não estão entendendo nada, nada…”). O argumento quase sempre tende ao sociologismo. Mas Valeska Popozuda, MC Guimê, Sandy e Mister Catra não precisam ser incensados pelo elitismo crítico; faz tempo que o jogo se inverteu: eles é que definem a nova fisionomia cultural da classe média urbana; eles é que são o establishment, e deles deriva a noção de “bom gosto” – ou seja, “gosto médio”. Sobretudo, eles é que vendem e que ocupam a maior parte do espaço na grande mídia.
Lutando contra as “quimeras da MPB”, às vezes parece que os críticos que reproduzem o gesto tropicalista não perceberam que não estamos mais nos anos 1970; que o mercado não é um canal neutro, limpidamente democrático, das aspirações mais profundas da “alma brasileira” (que devem, portanto, ser afirmadas a qualquer custo). Contra esse estado, o tropicalismo oferece poucos recursos. Seu alcance crítico (que vasculhou as áreas mais insuspeitas da vida brasileira) não chegou a contemplar os próprios mecanismos do mercado – e, num sentido ainda mais amplo, do capitalismo.
Quanto ao papel da crítica, o que restou foi certa indiferença e, mais ainda, certa desconfiança em relação a ele. Se para o ela já não faz muita diferença, tampouco nos circuitos alternativos é bem-vinda. Mas talvez por outros motivos. É possível que a falência da crítica tenha sido muito mais cruel para o meio musical independente. Exilado do mercado, este passou cada vez mais a se subdividir em pequenas comunidades (ou famílias) de “artistas sem público”. Foi uma forma de se proteger da pulverização, da competição daninha, e de uma pressão pela pasteurização artística imposta pelo grande circuito. Cria-se um compromisso de ajuda recíproca, de incentivo compartilhado: uma vez que o cenário é um tanto desolador (quase não há demanda, quase não há casas de show de pequeno e médio porte, quase não há apoio institucional, quase não há mecenas nem dinheiro, e uma série de outros “quases”), cabe a essas “comunidades” forjar um circuito que inexiste. Em outras palavras, as comunidades se tornam microcosmos sociais, fechados, ensimesmados: nelas estão contidos os artistas e o próprio público deles. São muitas vezes a projeção de um “mundo-de-faz-de-conta”.
Uma vez que praticamente não há legitimadores externos (um público maior, uma crítica com algum impacto no meio, agentes culturais de maior influência), as reputações são em geral construídas nos limites desse microcosmo. São os pares da comunidade que devem dizer se “fulano é foda”, se “beltrano é o tal”, se “sicrano participa conosco do novo edital ou não”. O resultado é que o posicionamento do artista no grupo ao qual pertence tende a se tornar muito mais importante do que o apelo estético de sua obra. A proximidade excessiva abafa a voz da obra. Nesse sentido, criticar, apontar algum aspecto que desagrada no trabalho de alguém, pode custar uma antipatia que desfavorece o posicionamento daquele que critica dentro da comunidade. E uma antipatia não apenas do artista criticado, mas do grupo inteiro: afinal, quem critica também quebra o decoro do incentivo compartilhado, do apoio recíproco. O elogio incondicional, ainda que vazio, é o que resta. Cria-se, desse modo, a “sociedade do elogio mútuo”: um narcisismo grupal que defende muitos artistas iniciantes do brutal sentimento de irrelevância diante de um ambiente cultural que, de fato, os tornou irrelevantes. O “meus amigos são fodas”, “estamos fazendo a melhor música de hoje, sem dúvida”, etc, etc, são formas de afirmar: “tenho valor”, num mundo onde as instâncias de reconhecimento se restringiram quase que exclusivamente à esfera do mercado. E aqui, uma esfera crítica com prestígio, reconhecida e respeitada – mesmo que seja humana e falível, sujeita aos inescapáveis equívocos – definitivamente faz falta.
Alguns pontos merecem ser destacados. Primeiro, e mais óbvio, é que o bloqueio da crítica negativa com embasamento (uma crítica qualificada) desfavorece um ambiente que seja efetivamente capaz de impulsionar o crescimento artístico. Ainda que possa irritar, a crítica é um elemento vital para quem concebe a arte como um processo de superação contínua, de melhoramento virtualmente infinito (antes que digam que isso é uma concepção estritamente moderna, é bom lembrar que as sociedades ditas “primitivas” também trabalham com critérios muito precisos da expertise e do valor artísticos). A meu ver, o artista precisa ser “incomodado”, precisa ser constantemente “desafiado” a ser maior do que é. O que se exige da crítica é que ela desperte o sentido de superação dos artistas. As coisas podem ir mais longe; é preciso acreditar nisso. Com sua bajulação interminável, sua descarga de positividade irrestrita, mais preocupada em colher os louros da simpatia imediata, do capital social miúdo, a “sociedade do elogio mútuo” tende à confirmação complacente, à benevolência laudatória (como num texto de release). Pior ainda: os artistas podem literalmente desaprender a lidar com a crítica. Artistas fracos e mimados, que não conseguem lidar com qualquer objeção aos seus trabalhos. Estamos no Brasil, o país onde tudo é levado para o lado pessoal: escrever criticamente sobre o disco de alguém é quase a mesma coisa que falar mal da pessoa.
Outro ponto é que tudo o que escrevi a respeito da música parece se encaixar em outros campos artísticos. Seria, portanto, a tendência de uma época na qual o “capital social” do artista suplantou em importância a “experiência da obra” – e alguns teóricos sugeriram que o campo da arte seria melhor desvendado pelas ferramentas da sociologia do que a partir de análises estéticas. Ao que parece, vêm daí algumas tendências sintomáticas da atualidade; por exemplo: artistas que investem muito mais tempo (e dinheiro) na divulgação (um mercado novo que se formou) do que na confecção da obra – um pouco como acontece em vários outros casos, o marketing se tornando mais importante do que o produto. Outro exemplo: a proliferação de “filhos de”: filhos de pessoas famosas que tentam carreiras artísticas e, no limite, midiáticas – e, se a avaliação da obra conta menos do que a posição do artista no contexto social, “filhos de” já partem de um ponto privilegiado, pois acumulam o capital social do sobrenome, e com isso ganham capas de jornais e revistas, aparições em programas de TV, etc…
Mas talvez o ponto mais crucial da “sociedade do elogio mútuo” seja o risco de desaparecimento da sinceridade sob a máscara da lisonja fácil. O artista terá que desenvolver um faro específico para perceber que nem todos os “likes” são iguais. Terá também que preservar canais especiais (e raros) de diálogo sincero, que talvez seja possível apenas fora do microcosmo comunal. Terá de acolher com receptividade e carinho críticas que tenham agudeza e profundidade. A “sociedade do elogio mútuo” é também uma sociedade niveladora (por baixo), que não permite que nada se diferencie muito. Uma sociedade que não lida muito bem com o fato de que algumas pessoas são especiais, melhores. Com sua aparente bonomia, é isso que os elogios abusivos tendem a mascarar.