Uma saída com amigos para jantar à cantonesa não se resume em marcar dia e hora. Ou de, como muitas vezes acontece no Brasil, decidir o lugar só quando o grupo já está a caminho do jantar. Aqui se leva comida tão a sério quanto na Itália e na França, só que além do melhor da culinária internacional (todos os chefes de cozinha importantes passam temporadas aqui e depois deixam seus pupilos talentosos cuidando dos restaurantes), é possível encontrar todas as especialidades das várias regiões da China. Assim como na Itália, ir a um restaurante pela decoração, pelo ambiente ou para ver e ser visto é praticamente uma anomalia. Se a intenção é comer, todos vão para comer comida boa e abundante. E nada de prato enfeitadinho.
Alguns restaurantes são famosos por certos pratos, mas isso não quer dizer que é só chegar e pedir. O encarregado de reservar a mesa para o grupo – a encarregada era uma moça de vinte e poucos anos – já monta o cardápio por telefone, no momento da reserva. É frequente até que o restaurante seja escolhido pelo tipo de especialidade, e neste caso o jantar para cinco pessoas consistiu em (tudo traduzido pelos chineses, mas a tradução não reflete a delícia dos pratos):
• Vegetais em conserva com berinjela
• Ovos mexidos com vários temperos
• Galinha assada no sal
• Lotus com hamburguinhos de carne de porco moída
• Espinafre refogado
• Lulas fritas e salteadas
• Arroz cozido e branco
• Tofu com peixe
E culminou com a especialidade da casa, em um exemplo típico de ‘as aparências enganam’: o congee com lascas de carpa.
O congee é uma sopa de arroz grossa como um mingau muito pálido. Parece mais adequado em bandeja de hospital do que como ponto alto de uma refeição. É servida acompanhada de "yu za kei" (algo como "diabos fritos"), uma massa salgada, frita, que lembra um churro duplo de casquinha bem mais crocante. Apesar da aparência triste, o congee é uma delícia inesquecível que a Cozinha Transcendental vai tentar repetir até o fechamento da edição 59, no máximo.
Curioso que um prato que em casa é geralmente feito para aproveitar sobras de arroz seja o ponto alto de um jantar. Ou talvez a graça esteja exatamente em reconhecer o valor da cozinha profissional capaz de reproduzir um prato exatamente como seria servido em casa, em toda a sua excelência caseira. Além disso, são poucos os que hoje conseguem controlar o cozimento de um prato que deve ficar em fogo baixo durante muito tempo. Como o Faggioli all’Uccelletto, o congee é uma receita para um estilo de vida em extinção.
Depois de levantar fervura, o arroz é cozido em abundante brodo (idealmente), feito em casa com restos de assado de frango, de peru, ou de carne de porco. O chineses definem o ponto de cozimento do arroz como de algodão. Bonito e muito preciso como descrição da aparência. Os outros ingredientes são: um pouco de coentro, cebolinha, gengibre, cascas de tangerina secas (??chen pi), , que talvez ainda não seja possível achar no Brasil e fatias finas da carne de peixe de rio (carpa,no caso), que são acrescentadas só no final, com o fogo desligado. Aos que se animarem a fazer a receita que está no final deste post, a recomedação é: olho na panela! Observar o andamento do cozimento e corrigir o rumo dos acontecimentos quando necessário.
Depois de forrado o estômago com esse jantar tão caseirinho e pé no chão, nada orna mais com os contrastes de Hong Kong do que pegar a balsa – o Star Ferry – e atravessar a baía para um café no alto e com vista, no Aqua. A travessia do famoso Victoria Harbour é um dos passeios mais lindos e baratos do mundo, mas a julgar pela rapidez com que a baía vem sendo engolida pelo ‘aterro do Flamengo’ que está sendo construído, não é absurdo imaginar num futuro próximo mais uma criação do pragmatismo chinês: a balsa como ponte. A travessia continuaria sendo feita de balsa, só que ao atravessar a própria balsa, a pé, o passageiro já estará do outro lado.
E com certeza aparecerão argumentos do mesmo teor dos que usados para defender a derrubada dos prédios antigos e baixos. Apesar de firmes e fortes há décadas, repentinamente são tidos como a prestes a esfarelar colocando em risco a vida os moradores. Aí, pelo bem da maioria e, principalmente, pela saúde financeira de uma minoria, os lindos prédios tradicionais são derrubados e no lugar aparecem pombais de 40 ou 50 andares. Para acabar com a balsa histórica, os argumentos serão mais para o ecológico, algo como economia de combustível e menor poluição. A ver.
Enquanto a baía não vira riacho, a viagem encurta mas continua sendo das mais agradáveis. Em capacidade de arrancar exclamações, a vista só é comparável à do Rio de Janeiro. No Rio a paisagem é extraordinária au naturel e em Hong Kong mestres da arquitetura global assinam a paisagem extraordinária.
Mas chega de enfiar nossa colher torta na especulação imobiliária dos outros e voltemos ao que nos concerne, isto é, a xeretar a cozinha alheia. Os cozinheiros e barmen do Aqua trabalham com uma vista espetacular, coisa que a Cozinha Transcendental considera característica das mais louváveis para uma cozinha.
Avaliem o que avistam por cima das woks a equipe de cozinha. A eles não coube a banda nobre da vista, que fica para o lado da ilha, mas no quesito Blade Runner a deles não é das piores:
Aqui, o lado que cabe aos clientes:
E aqui um amigável, acolhedor e delicioso prato de congee com seu pedaço de "yu za kei" (diabos fritos).
A receita do congee é dedicada a um de nossos repórteres mais esforçados, com recomendação para Beth, nossa sous chef: aproveite o atual inverno no Rio para tentar enfrentar a receita. A avaliação da redação você lerá, depois, aqui.
Receita do Congee
• 3/4 xícara de arroz (cru ou o equivalente em sobras, já cozido)
• 1 punhado de de arroz (cru)
• 1 1/2 litro de caldo feito com carcaça de galinha ou qualquer sobra de carne (porco, peru, de boi), temperado a gosto ou então 1 1/2 litro de caldo feito com cubinho ou potinho
• 4 ramos de cebolinha picados
• Alguns raminhos de coentro (facultativo) picados
• 4 ou 5 fatias finas de gengibre
• Pimenta do reino a gosto
• Sal a gosto (mas pouco)
• Alguns pingos de óleo de gergelim
• Carne de 2 carpas em lascas finas ou de qualquer outro Peixe de carne branca
O ideal é fazer esta sopa em uma panela de barro ou de cerâmica. Passe o caldo pela peneira, retire toda a carne, e pique em pedacinhos e reserve. Coloque o arroz para ferver em 1 litro de caldo. Assim que abrir fervura, abaixe o fogo ao máximo. Fique de olho na panela para garantir que o caldo não seque e o arroz não grude no fundo. Se notar que a sopa está se transformando em um mingau muito grosso, acrescente mais caldo do meio litro sobressalente.
Assim que o arroz derreter, esquente um copo do caldo sobressalente e acrescente juntamente com o punhado de arroz cru. Sempre em fogo baixo, espere que esse arroz cozinhe (ele não deve derreter, vai servir para dar uma textura ao mingau).
Assim que o segundo arroz estiver mole, desligue o fogo, corrija os temperos e acrescente a carne reservada, as fatias de gengibre, a cebolinha picada, o coentro picado e misture. Acrescente por cima as lascas de carne de peixe, tampe a panela mantendo-a sobre a boca do fogão, mas com o fogo desligado. Espere que o peixe perca a transparência, borrife as gotinhas de óleo de gergelim e sirva bem quente na panela em que a sopa foi preparada.
A receita do Yu za kei é um pouco complicada e requer ingredientes que nunca vimos no Brasil. Recomendamos servir a sopa com um pedaço de pão ou torrada.
Aqui está uma foto da sopa como foi servida com os pedacinhos de massa ao fundo, em uma panela de barro usada e até lascada:
Fundo musical sugerido para preparar o congee:
Restaurante famoso (entre os cantoneses) pelo congee caseiro:
Sang Kee Restaurant ??????
http://www.openrice.com/english/restaurant/sr2.htm?shopid=3024
2-3/F, 107-115, Hennessy Road, Wan Chai
??????107-115?2?3?
Cozinha com vista:
Aqua
penthouse, 1 Peking Rd., Tsim Sha Tsui, Kowloon
www.aqua.com.hk
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