Pedro Inada estava no banho quando veio a ideia: e se criasse uma empresa para ajudar motoristas de Uber no dia a dia? O ano era 2017, e o transporte por aplicativos estava em franco crescimento no Brasil. Fazia tempo que Inada, um jovem executivo do mercado financeiro, na época com 35 anos, sonhava ser dono do próprio negócio. Já tentara a sorte criando uma startup de tecnologia, mas a ideia não prosperou. Essa talvez fosse a oportunidade pela qual tanto aguardava.
O jovem carioca contou a ideia para Luiz Neves, amigo de infância com quem compartilhava o gosto pelo Flamengo, pelo Maracanã e pelo empreendedorismo. O amigo achou que ela fazia sentido. Os dois ponderavam que, com milhares de motoristas nas ruas todos os dias, provavelmente havia demanda por um espaço que os acolhesse, oferecendo banheiro e alimentação durante a jornada de trabalho.
Para confirmar essa hipótese, os amigos se dividiram e fizeram cem viagens de Uber pelo Rio de Janeiro. No trajeto, sacavam um questionário com perguntas sobre o dia a dia dos motoristas. Queriam saber suas maiores necessidades. “Nós imaginávamos que os caras iam dizer que ficavam muito tempo sem lanchar, mas eles nos pegaram de surpresa falando do quanto se sentiam sozinhos e com medo no volante”, lembra Inada. Os dois amigos terminaram a maratona confiantes no novo negócio.
Assim surgiu o StopClub. Com capital social de 10 milhões de reais, obtidos depois de uma rodada com investidores, a startup foi instalada num estacionamento vazio do Humaitá, bairro da Zona Sul do Rio, e passou a funcionar como um pit-stop para motoristas de Uber. Eles se reuniam ali entre turnos de trabalho para lavar o carro, lanchar, cortar o cabelo, papear. Foram instalados doze pontos como aquele em diferentes cidades do Brasil, mas então veio a pandemia e todos tiveram de ser fechados, inviabilizando as atividades. Para não deixar o negócio morrer, a operação foi transferida para um aplicativo, com outros recursos, como chat com troca de dicas sobre corridas e ferramenta de gravação em vídeo das viagens, como medida de segurança. Assim, o StopClub se abriu para venda de publicidade e de seguros para carros.
O pulo do gato ainda estaria por vir. “Com o tempo, os próprios motoristas passaram a sugerir a criação de uma ferramenta para calcular os ganhos das corridas”, diz Inada. Em março deste ano, lançou os recursos que se transformariam no grande ativo da empresa, ao mostrar dados que não estão na interface da Uber quando uma nova corrida é oferecida: o destino final da viagem e um cálculo dos ganhos reais do trajeto (o aplicativo da big tech traz apenas o valor bruto, sem explicitar o tamanho da mordida). Com esses dados na mão, quem está no volante tem mais elementos para decidir se aceita ou rejeita aquele chamado. E é possível que o app faça a recusa automaticamente, a partir dos cálculos da margem de rentabilidade.
O sucesso entre os motoristas foi imediato. Em fevereiro, o StopClub tinha 87 mil usuários ativos; hoje, passa dos 530 mil, dos quais 54% são da região Sudeste. Inada ficou exultante com os resultados do negócio. Estava todo mundo feliz – menos, é claro, a Uber.
Em julho, enquanto ainda celebrava os bons números, o StopClub recebeu uma intimação judicial. Os advogados da Uber partiram para o ataque. Abriram um processo no Tribunal de Justiça de São Paulo acusando o StopClub de induzir os motoristas a praticar “ato ilícito e abusivo”. Alegavam que a empresa interferia no funcionamento regular do aplicativo Uber e acessava ilegalmente as informações privadas dos seus usuários.
O StopClub afirma que suas ferramentas estão baseadas em código-aberto – elas interagem com dados da Uber que já são públicos, não violando, assim, nenhum dado sensível da empresa nem dos usuários.
Na ação, a Uber pediu que a recusa automática de corridas, justamente a ferramenta que viralizou entre os motoristas, fosse desativada imediatamente, sob pena diária de 50 mil reais caso a decisão não fosse cumprida. Pediram também 100 mil reais de indenização por danos morais, “em vista do abalo à honra da Uber causado pelos atos ilícitos”.
“Entendo que, para o motorista, recusar corridas automaticamente é ótimo. Mas, para um serviço como o nosso, isso é degradante”, diz André Monteiro, assessor de imprensa da Uber. O que motivou a empresa a mover o processo, explica ele, é o risco de a plataforma ser tomada por robôs. “Daqui a pouco, até os passageiros vão criar um bot para escolher as corridas por ele. Isso não seria bom para ninguém.”
Luiz Neves, cofundador do StopClub, rebate nos seguintes termos: “A lógica da Uber é manter sempre a tarifa baixa para o passageiro e aumentar os custos para o motorista. A recusa automática se mostrou fundamental para os nossos clientes”, conclui.
No dia 4 de agosto, a Justiça concedeu uma liminar favorável à Uber. Na decisão, o juiz Eduardo Palma Pellegrinelli afirmou não entender como funciona a interface do StopClub, mas argumentou que os serviços do aplicativo poderiam estar aumentando a insatisfação dos passageiros com a Uber. Determinou, por isso, que os recursos “cálculo de ganhos” e “recusa automática” fossem tirados do ar imediatamente. A multa, caso a exigência não fosse cumprida, seria de 500 mil reais por dia – dez vezes o valor estipulado pela própria Uber, na petição inicial.
Naquela sexta-feira, Neves decidiu se manifestar em nome da startup pela primeira vez. Vestindo uma camisa azul marinho com o logotipo do StopClub, o empresário se postou diante do celular e gravou, em vídeo, um discurso em tom sindical. “Vocês não têm que pagar para trabalhar, vocês não têm que aceitar corrida ruim, vocês não têm que pegar e tirar dinheiro do seu bolso, que você vai levar pra casa e aceitar uma corrida que você vai levar prejuízo só porque é assim que a dona Uber quer”, disse o empresário, exaltado. “Isso é um absurdo.”
Neves ressaltou que o processo da Uber cita possíveis prejuízos ao passageiro, mas não demonstra preocupação com os trabalhadores. “Os preços têm que ser mais justos para os motoristas aceitarem as corridas. E, se isso implica o passageiro pagar mais caro, é porque a dona Uber não quer diminuir a participação dela [no lucro]. Esse processo não é contra o StopClub, esse processo é contra o seu direito de escolher que corrida vale a pena você aceitar ou não. E a gente não vai parar”, prometeu Neves. “Vamos apresentar todos os recursos que tiver e ir até o fim, pelos seus direitos.”
A Uber foi criada nos Estados Unidos em 2009 e hoje atua em setenta países. No primeiro trimestre do ano, faturou 8,8 bilhões de dólares, tanto quanto a Vale, mas, com uma política mais que agressiva de crescimento e eliminação da concorrência, só em agosto deste ano divulgou seu primeiro lucro operacional. No Brasil, a Uber opera desde a Copa do Mundo de 2014. Conta, hoje, com 1 milhão de motoristas cadastrados e 30 milhões de passageiros no país. Foi o primeiro aplicativo de transporte a bombar com o público brasileiro e tornou-se sinônimo de uma transformação na relação entre empregadores e empregados: a “uberização”. O termo se refere a uma tendência, na economia contemporânea, de tornar mais informais – ou, em geral, precárias – as relações de trabalho. Embora seja fonte de renda para milhões de brasileiros, a Uber não se reconhece como empregadora dessas pessoas e, portanto, não oferece benefícios como férias ou licença-maternidade. Também não oferece as ferramentas de trabalho: o carro é propriedade do motorista e, caso ele se acidente, terá de arcar com o prejuízo. No meio tempo, se ficar sem trabalhar, também ficará sem receber.
À Uber, seguiram-se outras empresas que disputam o mesmo mercado, como 99 e InDrive. Atuam, em geral, seguindo os mesmos princípios, mas variam na margem de lucro que tiram por corrida. Na Uber, as taxas oscilam, mas a empresa pode ficar com até 40% do valor da viagem, uma fatia considerada excessiva por muitos motoristas, que, além de se expor a riscos em longas jornadas de trabalho, arcam com a manutenção do carro e com o preço do combustível – que, na pandemia, subiu de maneira impressionante. Em maio, trabalhadores de aplicativo fizeram protestos em várias cidades do país pedindo melhor remuneração.
Dados do Ipea mostram que no primeiro trimestre de 2022 o rendimento médio de motoristas de aplicativo e taxistas foi de 1,9 mil reais, abaixo da média dos brasileiros, de 2,5 mil. Por outro lado, os motoristas e taxistas fizeram jornadas de trabalho três horas mais longas, em média, que os demais brasileiros. “Os motoristas investem na locação ou no financiamento do veículo, em combustível e manutenção, e ainda têm que colocar comida dentro de casa. Mas os valores da corrida são irrisórios. No final do mês, a conta não fecha”, diz Eduardo Lima de Souza, presidente da Associação de Motoristas de Aplicativo de São Paulo (Amasp). “Se não usar as ferramentas do StopClub, por exemplo, o motorista vai trabalhar uma semana atrás da outra só para enriquecer uma empresa que já fatura nas alturas.”
Motorista do aplicativo há sete anos e dono de um canal de YouTube onde documenta sua rotina de trabalho, o paulistano Marcelo Tavares concorda com o colega. “A empresa não quer mostrar a verdade dos ganhos antes de o motorista aceitar a corrida”, reclama. Ele diz que as ferramentas de recusa automática e cálculo de lucro por corrida “abrem nossos olhos” – e, “por isso, a Uber se incomodou a ponto de proibir o seu uso pela Justiça.”
O StopClub recorreu da decisão da Justiça em 9 de agosto. Argumentou que não pode ser responsabilizado pela insatisfação dos passageiros da Uber, já que muitos deles reclamavam da dificuldade de obter corridas antes mesmo de o StopClub lançar a ferramenta de recusa automática. Tratava-se, portanto, de um problema antigo. Os advogados alegaram que o juiz foi “induzido ao erro pela Uber” e que sua decisão não se baseou em parecer técnico. A tese do StopClub, em suma, leva a discussão para o terreno da luta de classes: afirma que a Uber quer evitar que os motoristas “se organizem para pleitear melhores condições de trabalho”.
De acordo com advogados consultados pela piauí, não há ainda uma jurisprudência bem estabelecida para casos como esse. Trata-se de um terreno novo para a Justiça. É ilegal um aplicativo (StopClub) lucrar às custas de outro (Uber), mesmo que não interfira diretamente nele? Ou isso pode ser entendido como livre uso do aplicativo? Ao se defender na Justiça, o StopClub alegou que “não interfere, altera ou extrai dados do código-fonte dos aplicativos de compartilhamento de viagens”, e que sua função é “analisar e interpretar as informações que já estão visíveis ao usuário.”
No último dia 22, o Tribunal de Justiça de São Paulo suspendeu a liminar que interrompia as funcionalidades no aplicativo do StopClub. O juiz entendeu que não há provas substanciais no pedido da Uber. Os motoristas voltaram a usar as ferramentas e fizeram festa nas redes sociais. “Parabéns, vcs são muito feras! A Uber está batendo record [sic] de lucro às custas dos ‘motoristas parceiros’”, escreveu um usuário, na página do StopClub. “ABAIXO A ESCRAVIDÃO!”, proclamou outro.
Neves e Inada, dois jovens oriundos da classe média alta carioca, nunca imaginaram se tornar heróis do proletariado. “Cobrar que a Uber ofereça melhores condições aos trabalhadores é uma questão básica de justiça”, diz Neves. Inada não se conforma: “A Uber está obrigando o prestador de serviço a atuar dentro das condições dela para continuar lucrando, enquanto o motorista sai no prejuízo.”
A disputa judicial, no entanto, não deve terminar tão cedo. “Nós vamos recorrer, gerar provas que sustentem o posicionamento da Uber”, promete André Monteiro, o assessor da empresa. “Não entramos nessa à toa. Temos convicção dos nossos argumentos. Se o StopClub quer ajudar os motoristas, é melhor que crie um aplicativo de mobilidade próprio e deixe de tentar ditar as regras do nosso.”