Embargos de declaração são o primo pobre dos recursos no direito processual. Não têm o sangue azul dos habeas corpus, que nasceram no direito medieval inglês para restaurar a liberdade de súditos ameaçados por prisões arbitrárias; não têm a força de uma apelação, que dão aos juízes de segunda instância o poder de reavaliar provas e transformar inocentes em culpados e culpados em inocentes. Embargos de declaração servem apenas para esclarecer omissões, contradições e obscuridades em uma decisão judicial, nada mais.
A surpresa com a decisão do ministro Edson Fachin, que anulou por inteiro todas as quatro ações penais a que o ex-presidente Lula respondeu perante a 13ª Vara Federal de Curitiba, começa justamente pelo caminho processual que levou a elas: um habeas corpus concedido de ofício, monocraticamente, em uma decisão de embargos de declaração, um tipo de recurso ao qual o Judiciário responde quase sempre de modo protocolar e entediante.
É raro que embargos de declaração resultem em modificação da decisão; é raríssimo que levem à concessão de ofício de um habeas corpus; e é absolutamente único que restaurem a plenitude dos direitos políticos do candidato que só não disputou o segundo turno em 2018 porque foi condenado por um juiz cuja parcialidade é hoje indiscutível — e que talvez seja poupado de tê-la reconhecida pela incomum decisão do ministro Fachin. Mas qualquer surpresa jurídica é apenas relativa no mundo processual da Operação Lava Jato, um edifício que se construiu à base de interpretações extravagantes de diversos institutos processuais. Ao contrário do aconselhamento processual de Sergio Moro a Deltan Dallagnol, a decisão do ministro Fachin, embora incomum, é perfeitamente legal.
Duas grandes dúvidas existem a partir da decisão. A primeira: por que só agora? O embasamento da decisão do ministro Fachin foi a incompetência jurisdicional da 13ª Vara Federal de Curitiba para conhecer os casos anulados: triplex do Guarujá, sítio de Atibaia, sede do Instituto Lula e doações ao mesmo instituto. O argumento de que esses assuntos escapavam à alçada de Moro é dos primeiros formulados não apenas por seus advogados, mas por diversos outros réus que protestavam contra a amplitude da jurisdição que a Lava Jato deu para si, alcançando não apenas doleiros paranaenses e diretores da Petrobras, mas outros atos nos quatro cantos do Brasil.
O ministro Edson Fachin gastou metade de sua decisão explicando o porquê de essa questão ter ficado madura para julgamento, a seu ver, apenas agora. Fachin reconstruiu detalhadamente o histórico de decisões do STF sobre a competência da Lava Jato, desde quando a relatoria dos casos sobre a operação estava com o ministro Teori Zavascki, para afirmar três coisas.
Primeiro, ressaltou que está consolidada no tribunal a interpretação de que a competência da operação limita-se às ações que se originam de desvios na Petrobras. Essa interpretação começou a se desenhar ainda em 2014, ano em que estourou a Lava Jato, em habeas corpus impetrado por Paulo Roberto Costa, e afirmou-se em outras tantas ações ajuizadas tanto contra atos 13ª Vara de Curitiba quanto contra julgamentos do Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF-4), que sempre convalidou as teses lavajatistas quanto à competência de Moro.
Segundo, Fachin foi explícito em reiterar, por diversas vezes, que esse entendimento é anterior à sua relatoria nos casos da Lava Jato. A tese de que a relação com a Petrobras é que traça a risca no chão para demarcar o que está dentro e o que está fora da competência curitibana veio da pena de Teori Zavascki, e não da sua. Em um tribunal marcado pelo voluntarismo personalista, e em processos com muitos interesses políticos em jogo, este argumento é um ativo reluzente.
Terceiro, o ministro salientou, e demonstrou, que a tese da incompetência da 13ª Vara Federal de Curitiba, embora fosse velha nos escaninhos dos demais tribunais, era nova para o Supremo. Segundo Fachin, se é verdade que o argumento já havia sido levado à consideração dos ministros em outras oportunidades, é preciso reconhecer que o STF nunca havia aceitado enfrentá-lo, esperando que ele esgotasse a via completa das instâncias inferiores, inclusive do Superior Tribunal de Justiça. Só agora, disse Fachin, que o STJ havia finalmente enfrentado a questão, chegou a vez de o Supremo fazer o espetáculo de encerramento, decidindo a polêmica de vez.
Tribunais superiores não gostam mesmo de queimar a largada e se antecipar às decisões de instâncias inferiores, mas o argumento do ministro Fachin contrasta com a própria via pela qual ele anulou todas as ações contra Lula – um habeas corpus de ofício, reconhecendo nulidade absoluta. Se a ilegalidade que ele agora enxergou é tão gritante a ponto de obrigá-lo à anulação sumária e monocrática de diversas ações penais, com base em uma tese que já estava bem encaminhada desde os tempos do ministro Zavascki, nada impediria que essa providência tivesse sido tomada antes. Ao contrário: não há razão jurídica que justifique a manutenção de ações penais contra um réu uma vez que está claro que elas são absolutamente nulas por incompetência do juízo. É como perceber que o primeiro botão da camisa está na casa errada, e ainda assim se dar ao trabalho de continuá-la abotoando até o colarinho, para então ter de desfazer tudo recomeçar desde o princípio.
Mas como o STF se transformou em uma corte de enxadristas, onde os ministros formam times e jogam uns contra os outros, a pergunta do “por que bem agora?” deve contemplar também uma hipótese de comportamento estratégico. Não há absurdo em imaginá-lo em relação ao ministro Fachin, que faz uso frequente do dispositivo regimental que dá aos relatores o poder de tirar casos de sua turma — no caso de Fachin, a Segunda Turma, onde ele e Cármen Lúcia se opõem a Gilmar Mendes, Ricardo Lewandowski e Kassio Nunes nos julgamentos da Lava Jato – para levá-los ao Plenário, onde o placar é mais disputado.
Por essa dimensão estratégica, é possível casar a decisão de agora com o aumento da pressão pelo reconhecimento da imparcialidade de Sergio Moro. Uma vez que a defesa de Lula conseguiu acesso às mensagens da Operação Spoofing por ato do ministro Lewandowski, em uma decisão que deixou Fachin nitidamente contrariado, até as vidraças do Palácio STF sabem que o reconhecimento da quebra de imparcialidade de Sergio Moro seria imperativo.
A confirmação, pelo STF, de que havia relação espúria entre Moro e os procuradores arriscaria jogar todos os processos da Lava Jato na lata do lixo. Se o magistrado e os procuradores tinham pleno acesso uns aos outros, e se dispunham a utilizar essa via de comunicação ilegal para se consultar e se ajudar reciprocamente, não há razão para acreditar que isso foi feito apenas no processo de Lula. Mesmo porque, como bem lembra o célebre powerpoint de Deltan Dallagnol, a acusação contra Lula se alimentava das demais, e não haveria condenação contra o ex-presidente se a existência do esquema não fosse chancelada nas demais ações penais. Isso para não mencionar outras práticas questionáveis dos procuradores, como o acesso informal a autoridades estrangeiras, também atestado nos vazamentos.
Ao fazer desaparecer todas as ações penais contra Lula, a decisão de Fachin implicou a perda do objeto de todas as contestações movidas por sua defesa contra as condutas dos procuradores, de Moro, dos desembargadores do TRF-4 e dos ministros do STJ. A não ser que a Procuradoria-Geral da República consiga reverter a decisão em recurso aos órgãos colegiados do Supremo, Lula está completamente livre e desimpedido. Em consequência, os quinze habeas corpus que ele ajuizou no STF, contra atos de diversas autoridades das instâncias inferiores, perdem razão de ser se a decisão de Fachin for mantida. Serão arquivados, sem julgamento — inclusive o HC 164.493, onde a suspeição de Moro foi arguida.
Com isso, a não ser que as defesas de outros atingidos pela Lava Jato consigam arguir a suspeição de Moro com a mesma força que Lula conseguiria fazer, é possível que o ex-juiz escape de ter sua parcialidade reconhecida pelo tribunal, por dois fatores. Primeiro, porque a disposição que Moro demonstrou para abusar dos poderes de seu cargo em prejuízo pessoal do réu são mais explícitas em relação a Lula do que a qualquer outro acusado. Basta lembrar da divulgação dos áudios entre Lula e Dilma, um ato executado às pressas para gerar comoção política que prejudicasse a posse do ex-presidente na Casa Civil; ou da divulgação da delação de Palocci pouco antes do primeiro turno das eleições presidenciais de 2018. Segundo, porque só a defesa de Lula conseguiu até aqui acessar o material da Operação Spoofing, que contém as mais flagrantes evidências das parcialidade de Sergio Moro.
Dessa forma, ao eliminar a variável “Lula” da paisagem da Lava Jato no STF, o ministro Fachin pode ter objetivado salvar o restante da operação, preservando os resultados dos demais processos que foram conduzidos por Sergio Moro. A dúvida, neste caso, será saber como reagirão os demais ministros, alguns dos quais, a exemplo de Gilmar Mendes, não escondem seu desprezo pela chamada República de Curitiba. Só as moscas do tribunal sabem dizer se houve algum tipo de ajuste de bastidores, ao menos entre ministros suficientes para garantir uma vitória por maioria, do estilo “vão-se os anéis, mas ficam os dedos”. Seria o mais irônico desfecho possível para a Lava Jato: salva, embora apenas nas suas partes menos reluzentes, por um acordão com o Supremo, com tudo.
A segunda grande dúvida é para o futuro: o que acontece agora? A decisão de Fachin foi explícita em anular todos os “atos decisórios”, o primeiro dos quais é o recebimento da denúncia. Ou seja, tem que recomeçar tudo de novo, mas dessa vez em Brasília, foro competente no local onde foram praticados os atos pelos quais Lula deve responder novamente. Até que sobrevenha decisão condenatória em segunda instância, Lula está livre para a prática de quaisquer atos permitidos a um brasileiro de sua idade, inclusive concorrer a cargo eletivo nas próximas eleições.
Duas grandes dúvidas jurídicas existem para os eventuais futuros processos que ele responderá. A primeira é saber se os atos realizados durante o processo, como as audiências para oitiva de testemunhas, poderão ser aproveitadas ou não. O ministro Fachin deixou esse ponto em aberto ao dizer que caberá ao novo juiz da causa decidir sobre a “convalidação dos atos instrutórios”. Se esses atos forem aproveitados, o tempo do processo de primeiro grau deve diminuir. Ao mesmo tempo, tendo em vista o fato óbvio, embora não enfrentado por Fachin, de que Moro e os procuradores concorriam para a condenação de Lula, aproveitar qualquer ato presidido pelo ex-juiz de Curitiba aumentará as chances de reconhecimento de novas nulidades. O mais seguro – e o mais demorado – é que o novo juízo refaça tudo.
Mas talvez essa discussão sequer tenha lugar, pois a segunda grande dúvida jurídica diz respeito à prescrição. Os atos pelos quais o ex-presidente é acusado foram todos cometidos há mais de dez anos, e o prazo prescricional para réus de mais de 70 anos de idade é cortado pela metade. Tudo cheira a prescrição, portanto.
Se a nova procuradoria que receber o caso estiver convencida de que Lula deve ser denunciado, ela terá de sustentar que as decisões de Moro devem subsistir só para fins de interromper o lapso da prescrição em cada ação, fugindo à regra de que, no processo penal, atos praticados por juízo incompetente são nulos e não produzem efeitos – ainda mais quando o magistrado em questão atuava em prejuízo inegável ao réu, como mostram as mensagens da Vaza Jato. Seria um malabarismo jurídico de largada, que arriscaria a levar os novos processos a desfechos semelhantes ao que vimos hoje.