Minha mãe não tinha paciência com televisão. Era raro vê-la entretida com novela ou enlatado, aos risos com programa humorístico ou atenta a telejornais. Entretanto, lembro de três ou quatro situações em que, passando em frente à tevê, minha mãe resmungava: “Mas ele já não disse, não sei quantas vezes, que ia se aposentar?”
O em questão era Sílvio Caldas, o Caboclinho Querido, eterno intérprete de Chão de Estrelas e outros clássicos do cancioneiro brasileiro, e que certamente se sentiria mais à vontade no sofisticado blog vizinho Questões Musicais, escrito por Paulo da Costa e Silva, do que aqui nesse espaço com pinta de conversa de botequim. Ao que consta, e o Paulo pode confirmar ou corrigir, Sílvio Caldas teve enorme dificuldade em pendurar o microfone, e fez o tal anúncio que aborrecia minha mãe em quase meia dúzia de ocasiões.
Chega a ser desumano obrigar alguém a parar de trabalhar. E só quem pode decidir se chegou ou não a hora de se aposentar é o próprio. Por outro lado, no caso de artistas, esportistas e o que se convencionou chamar de “pessoas públicas”, ninguém gosta de ouvir ou ler seguidos anúncios não confirmados de aposentadoria, que soam como se o cara estivesse desesperado por coros de fica, fica, fica.
Já escrevi aqui, mas creio que o momento suporta a repetição, que Rogério Ceni é o único jogador do futebol brasileiro idolatrado por 100% dos torcedores de seu clube e odiado por 100% dos demais. E não me parece tão simples entender por quê.
Lá no Rio de Janeiro, onde aprendi a gostar de futebol, não me recordo de nada parecido. Mesmo os torcedores adversários tiravam o chapéu para Gérson, Jairzinho, Zico, Júnior, Pintinho, Assis, Roberto Dinamite, Edmundo. Se perguntados, todos gostariam de tê-los em seus clubes. Com Rogério a história é outra. (Um amigo que não posso dizer o nome, sob pena de colocar o emprego dele em risco já que seu chefe é são-paulino doente, defende uma tese bem-humorada: Rogério Ceni jogou a vida inteira no São Paulo porque nenhum outro clube jamais se interessou por ele. Pura provocação.)
A sensação que tenho, e peço aos leitores são-paulinos que não desejem a morte deste humilde blogueiro, é que isso ocorre por Ceni ser visto, fora do Morumbi, muito mais como um ídolo fabricado do que um talento de verdade. Diferente, portanto, dos que citei acima. Diferente de Pita, Careca, Raí, Rivaldo, Djalminha e Alex – que no início do ano prometeu parar de jogar no final da temporada, cumpriu e se aposentou, de um jeito simples e com todas as merecidas homenagens.
É difícil explicar Rogério Ceni, tanto para o bem quanto para o mal.
É muito bom goleiro, mas nunca foi titular da seleção brasileira – o que talvez tivesse acontecido se Muricy assumisse o cargo de treinador quando convidado por Ricardo Teixeira, depois da Copa de 2010. Na condição de dono inconteste da camisa 1 do São Paulo, Rogério ganhou três campeonatos brasileiros e uma Libertadores. Nada mau, mas menos, por exemplo, do que Raul, que levantou três brasileiros, duas Libertadores e ficou longe de virar mito. Nos últimos seis anos, Ceni disputou seis campeonatos brasileiros, três Libertadores, três copas do Brasil e seis campeonatos estaduais. Dezoito competições, zero título. Conquistou a vagabundérrima Copa Sul-Americana, mas isso eu me recuso a contabilizar. Portanto, não é a quantidade de taças o que explica Rogério Ceni.
Sem querer diminuir a genialidade de Pelé, meu pai costumava dizer que, na incomparável dupla Pelé e Coutinho, tudo o que dava certo era atribuído a Pelé e tudo o que dava errado ia para a conta de Coutinho. Isso é comum em nosso futebol e em nossa imprensa especializada. Na hora da cobrança do primeiro pênalti do Atlético Nacional, na recente semifinal da Copa Sul-Americana, o narrador Cléber Machado se referiu a Rogério como “pegador de pênaltis”. Fato: nas três últimas disputas de pênaltis em que o São Paulo se envolveu – contra Corinthians, Penapolense e Atlético Nacional –, foram catorze cobranças e nenhuma defesa. Não há demérito algum nisso, mas por que então o epíteto “pegador de pênaltis”? Ajuda a criar o mito.
Tem também o lado épico, quando se tenta fazer do goleiro uma espécie de Henrique V do Morumbi. Na fase de grupos da Libertadores 2013, o São Paulo só garantiu a vaga na última rodada, ao derrotar em casa o Atlético Mineiro. Virou hit no YouTube, com centenas de milhares de likes, o inflamado discurso que Ceni fez no vestiário, pouco antes do time entrar em campo. Na fase seguinte, enfrentando novamente o Atlético, o São Paulo perdeu os dois jogos, foi eliminado e ninguém postou discurso algum. Como provavelmente diria Neném Prancha, sábio e saudoso treinador da Praia de Botafogo, se discurso ganhasse jogo o time de Fidel Castro não perdia pra ninguém. Mais alimento para engordar o mito.
Torcedor de futebol é bicho doido. Além de Rogério, os são-paulinos também veneram Luís Fabiano, atacante bom de bola mas que, em oito temporadas no clube, conquistou apenas a tal da Copa Sul-Americana, numa campanha em que mais atrapalhou do que ajudou e acabou sendo menos importante do que Willian José. Mas torcedores são assim mesmo, e não apenas os do São Paulo: ano passado os flamenguistas estiveram perto de transformar Hernane Brocador em ídolo. Fazer o quê?
O que parece ser decisivo, e justo, para a idolatria que a torcida do São Paulo nutre por seu goleiro é o tempo de casa – o que, para os modernos padrões do futebol brasileiro é muito mais do que louvável –, além dos indiscutíveis amor à camisa e profissionalismo.Pra mim, que não torço por São Paulo, Santos, Palmeiras ou Corinthians e não tenho motivos para endeusá-lo ou detestá-lo, há muito de exagero tanto no culto a Rogério Ceni por parte dos tricolores quanto no ódio unânime a ele dedicado pelos torcedores dos demais clubes paulistas.
Quanto à aposentadoria: interromper a carreira ou seguir jogando é uma decisão que cabe exclusivamente a Rogério. O que incomoda é o esforço midiático, a tentativa de criar um clima e produzir um drama. Quer parar, para, quer jogar, joga, e ninguém tem nada com isso. Mas não fica fazendo doce, porque aí é feio, chato e bobo.