Crédito da imagem: colagem “Amor-um produto confiança” (1974), de Arrigo Barnabé
O instrumento que eu mais gostava, quando criança, antes de começar a estudar música, era o acordeon. Queria aprender a tocar esse instrumento, queria mesmo. Gostava tanto de seu som, do timbre, que parecia evocar lembranças de afeto e ternura, mas que já vinham impregnadas pela melancolia da separação, perceptível por qualquer criança ao ver o sol morrer. Havia tristeza em seu som, era tocante.
Para mim, parece impossível não associá-lo ao órgão da sensibilidade (segundo os chineses), o pulmão. O acordeon depende do ar, comprimido por um fole, para suprir centenas de palhetas, colocadas, qual alvéolos, em blocos de madeira, que são conectados ao teclado por um lado, e ao painel de botões pelo outro. O fole, unindo os dois, é o que dá a sensação quase animalesca a esse instrumento, criando a impressão de coisa orgânica, quando se movimenta e arfa como um bicho, abraçado ao peito de seu executante.
Sempre me imaginei aprendendo acordeon, tocando sanfona! Um dia, porém, tia Amélia, viúva, que morava com meus avós maternos, nos chamou, dizendo ter uma surpresa. Ao final da tarde fomos a casa de meus avós.
Na casa, de madeira sem pintura, havia um portão pequeno, sombreado por um caramanchão, com o pé de primavera mais bonito que eu já vi em toda minha vida. Suas flores de cor roxa quase púrpura, provocavam em mim uma mistura de emoções. Como se a glória de poder contemplar coisa tão bela, não fosse contaminada pela angústia de uma sensibilidade quase delirante, nem pela tristeza inerente a tudo que existe, ao drama solar, que tudo perpassa. Enfim, avançando por baixo do caramanchão, em direção a porta de entrada da casa, havia uma pequena calçada, quase uma passarela. Estávamos ali, nessa tarde, esperando a surpresa de tia Amélia.
De repente sai, pela porta da casa, meu primo Felipe, portando um pequeno acordeon azul! Era quase um teatro aquilo, ele sai pela porta, como se entrasse num palco, consciente de seu passos, consciente de seus gestos!
Ali, com as flores roxas quase púrpura resplandecendo atrás de mim, o silêncio é cortado pelo som do seu acordeonzinho azul. E ele toca, ele já sabe tocar, abre e fecha o fole, dedilha o “Castelo Azul”. Que som lindo!
Meu Deus, ele estivera secretamente estudando o instrumento, que surpresa muito surpresa mesmo!!
Pra mim, uma surpresa triste, triste… afinal, em nossa família, entre as crianças, cada um tinha sua preferência como uma marca de identidade. Quase como uma afirmação de virilidade. Era assim com os refrigerantes, as cores, os times de futebol, os animais, os instrumentos musicais, tudo que oferecesse opção de escolha.
Enfim meu instrumento não seria mais o acordeon. Tive que ir pro piano, um instrumento que eu achava muito sem sem graça.
Talvez uma das razões (ou a principal razão) para que eu gostasse tanto do acordeon em minha infância, tenha sido o baião “Assum Preto”, de Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira. Sempre digo que é a minha primeira memória musical intacta. Lembro do dia, do fim de tarde, até da luz que fazia nesse dia eu lembro. Meu pai chegou do trabalho com o disco de Luiz Gonzaga embaixo do braço, era o fim da tarde, perto das 18:00 hs. Ele entrou e colocou o disco na vitrola. Eu estava do lado de fora da casa, e acompanhava sua ação pela janela, que era baixa e clara. Aí começa a tocar “Assum Preto”, falando de furar os olhos do pássaro, aquelas metáforas todas do Humberto Teixeira, de cortar o coração até de um adulto, quanto mais de uma criança…
Tentei me controlar, mas aos poucos fui caindo no choro, que foi aumentando até se tornar convulsivo, como costuma acontecer com as crianças quando tocadas por uma emoção poderosa. Meu pai então veio me ver, e perguntou se eu estava chorando por causa da música ou porque o Santos havia perdido para o Taubaté. (Nesse mesmo dia, o Santos havia perdido para o Taubaté, por 3×2, e eu havia começado a torcer pelo Santos fazia pouco tempo). O que é que eu ia dizer? Falar que estava chorando por causa de uma música? Imagina!
– Estou chorando porque o Santos perdeu papai!! (Embora tivesse peso, o Santos perder para o Taubaté era mais uma humilhação, um motivo de vergonha, do que razão para chorar)
Nunca esqueci dessa mentira, nem da comoção causada pela voz pungente de Luiz Gonzaga. E essa lembrança é tão potente, que, assistindo ao show do Chico Buarque, apesar de muito me controlar, acabei por derramar algumas lágrimas furtivas, ao ouvir “Sinhá”, sua parceria com João Bosco, espécie de versão adulta de “Assum Preto”.
Pesquisando na internet, descobri que a origem do acordeon é um instrumento chinês, o Sheng. Aqui está o link para vocês conhecerem: é um solo de Sheng, acompanhado por 4 alaúdes chineses. Esse video é muito legal mesmo. O sistema de palhetas do Sheng, é a origem do acordeon.
Processo de fabricação de um acordeon, muito interessante.
“Sinhá”, com Chico Buarque acompanhado por João Bosco