O mesmo governo que condena o globalismo e denuncia supostas tentativas de internacionalização da Amazônia fechou um acordo de livre-comércio entre o Mercosul e a União Europeia no qual ambientalistas brasileiros enxergam uma chance para implementar no país controles e padrões de fiscalização tão rigorosos quanto os aplicados na Europa. Ativistas europeus vinham se mobilizando contra o acordo com o Brasil – por causa dos retrocessos na política de preservação ambiental – durante o governo Bolsonaro. Especialistas ouvidos pela piauí veem no acordo, entretanto, uma oportunidade para reverter esse processo.
“Os europeus viram não só avalistas, mas cúmplices. Se eles começarem a comprar coisas que levem ao desmatamento da Amazônia, eles também são culpados. Avalistas e cúmplices. O que a gente espera é uma ação afirmativa, positiva, de como eles vão operacionalizar isso”, analisa Ana Toni, diretora executiva do Instituto Clima e Sociedade. Para ela, essa possibilidade de endurecer os controles ambientais no Brasil é um dos pontos mais positivos do acordo. O ponto mais negativo é o timing, em pleno governo Bolsonaro, que tem se dito refratário à agenda ambientalista. Dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) mostram que o desmatamento na Amazônia aumentou 60% em junho de 2019, em comparação com o mesmo mês do ano passado.
Pelo texto negociado até agora, estão previstas restrições a carne e soja produzidas em áreas desmatadas. O propósito é que haja desmatamento zero em toda a cadeia de produção desses itens. O acordo também se compromete a manter a chamada moratória da soja, negociação firmada entre governo brasileiro e produtores para que não se compre soja plantada em regiões desmatadas da Amazônia. Mas o texto final tem de ser aprovado pelo Parlamento europeu e pelas casas legislativas de cada um dos países-membros da União Europeia e do Mercosul.
“Vejo o acordo como positivo, porque sobe a régua, a baliza, sabe? Traz padrões mais rigorosos. Por isso vejo um campo promissor”, afirma Beto Veríssimo, pesquisador associado e cofundador do Imazon, instituto de pesquisa voltado para o desenvolvimento sustentável da Amazônia.
Ana Toni e Veríssimo destacam ainda, como outros pontos positivos, a preocupação com a transparência do processo e a abertura para participação da sociedade civil. Toni sugeriu a criação de um observatório para que as organizações possam fiscalizar de que forma o acordo será implementado.
A reação dos ambientalistas brasileiros é diferente da observada na Europa, em especial na França. Deputados do Parlamento europeu fizeram objeções a um acordo com o Mercosul citando o governo Bolsonaro como motivo de desconfiança. O governo francês disse, por meio de sua porta-voz, que o país “não está pronto, no momento, para ratificar” o acordo. É uma resposta à pressão de seu setor agrícola, que teme perder espaço com a entrada de produtos sul-americanos no mercado europeu. Mas também fruto das regras mais rigorosas para uso de hormônios, pesticidas, agrotóxicos, entre outras.
Tais declarações evidenciam as dificuldades que o acordo enfrentará ao longo do caminho até ser implementado – possivelmente três anos ou mais, nas contas do governo e de especialistas. Primeiro, haverá um período de meses de finalização dos pontos técnicos. Depois, a transcrição de todo o trabalho, que será submetida a aprovação final. Só então o texto vai para votação nos parlamentos. As casas legislativas dos países-membros da União Europeia e do Mercosul podem vetar ou ratificar as cláusulas rígidas do tratado, que traçam seus parâmetros e estrutura. Apenas as cláusulas discricionárias podem ser alteradas nessa fase do processo – ainda não está claro para os deputados o que estará passível de mudança.
Para o Greenpeace, será fundamental que eventuais modificações preservem as salvaguardas previstas no texto tornado público depois do fechamento do acordo. Esse dispositivo permitirá aos europeus cancelar a entrada de produtos sul-americanos que apresentarem problemas na origem – como, por exemplo, soja e carne oriundos de áreas desmatadas.
“Um tratado sem essas condicionantes seria muito esquisito porque a França e a Alemanha, dois países-chave da União Europeia, cobraram do Brasil explicitamente e do presidente Jair Bolsonaro seu compromisso com o Acordo de Paris. Se não tiver travas, a Europa não terá as garantias de que Acordo de Paris vai ser cumprido”, afirmou Marcio Astrini, coordenador de políticas públicas do Greenpeace no Brasil. “O texto final precisa manter, de forma dura, essas condicionantes de que o acordo só se dá para produtos que não tenham trabalho escravo, desmatamento, trabalho infantil [entre outras salvaguardas]. Se não tiver de forma clara e explícita como trava do acordo, aí não terá serventia”, concluiu.
Para Astrini, as declarações de Bolsonaro e do ministro Augusto Heleno, do Gabinete de Segurança Institucional, rebatendo críticas europeias à política ambiental do governo brasileiro reforçam a necessidade das salvaguardas. “É quase uma confissão de culpa. O governo está dizendo que não quer salvaguardas ambientais porque tem o propósito de incentivar o desmatamento”, afirmou o representante do Greenpeace. O chanceler Ernesto Araújo, em entrevista à revista Época nesta terça-feira, 2, afirmou que a pauta ambiental não é exclusivamente europeia. “Geralmente, esse tema se coloca como de interesse europeu, mas é de interesse nosso. Lembrando que muitos países europeus têm um uso de agrotóxicos por hectares maior do que o do Brasil”, disse.