Em exibição há sete semanas no Brasil, após estrear em 1º de dezembro do ano passado, Aftersun, escrito e dirigido por Charlotte Wells, iniciou em maio de 2022 sua laureada carreira, participando da Semana da Crítica do Festival de Cannes. Na ocasião, recebeu o Prix French Touch du Jury (Prêmio Toque Francês do Júri), atribuído, pela primeira vez, para “laurear a audácia e a criatividade de um ou uma cineasta por uma de suas primeiras obras cinematográficas”. Além da honraria, o Prix French Touch inclui 8 mil euros (cerca de 44 mil reais) para o diretor ou diretora do filme escolhido.
Audácia e criatividade são de fato dois, entre inúmeros, atributos notáveis de Aftersun, aos quais se poderia acrescentar a sutil contraposição feita entre, de um lado, o dia a dia tranquilo das férias de Calum (Paul Mescal) e Sophie (Frankie Corio) – pai e filha –, na Turquia, no final da década de 1990, e, de outro, a discreta, mas crescente tensão entre os dois que parece estar sempre à beira de eclodir. Outros traços identitários marcantes desse filme raro são o visível e o invisível, o dito e o não dito, o passado e o presente, a elegância da narrativa visual elíptica e dos movimentos suaves da câmera, o peso da memória, sem esquecer a excelência das interpretações de Mescal e Corio, ela menina estreante nascida em 2010.
No início de novembro do ano passado, o júri da 46ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, formado por Lina Chamie, André Novais e Rodrigo Areias, deu sua contribuição aos louvores generalizados feitos a Aftersun. Atribuiu o troféu Bandeira Paulista, principal prêmio do evento, ao filme, escolhido entre os favoritos indicados pelo público.
No final de dezembro, foi a vez de o jornal The Guardian celebrar Aftersun, escolhido como melhor filme do ano. Em entrevista ao jornal (23/12/2022), Wells afirmou: “…eu não estava pensando quanto à forma em conformidade necessariamente com nada além de seguir filmes que me interessam. Portanto, ter resultado tão acessível foi uma surpresa muito boa. Eu quero fazer filmes sempre dessa maneira. Acho que você deve perseguir o que te interessa. Não penso em fazer filmes para outras pessoas. O que não quer dizer que não considere o público, mas tentar conscientemente atender a requisitos alheios enquanto se usa o cinema como um meio de autoexpressão parece um caminho perigoso a seguir.”
Aniversários podem ser datas traumáticas, conforme Aftersun reitera. O diálogo de Calum e Sophie no prólogo, retomado e desenvolvido na metade do filme, gira em torno dessas datas que demarcam a passagem do tempo e expectativas frustradas nessas celebrações.
A primeira imagem de Aftersun é instável – está sendo gravada em MiniDV por Sophie e a câmera balança. O pai faz gaiatices:
Sophie: “Meu Deus! O que é isso?”
Calum: “São meus movimentos.”
Sophie: “Pare. Isso é tão constrangedor.”
Calum: “Não é nada constrangedor.”
O pai vira de costas.
Sophie: “Ei, eu ia te entrevistar.”
Calum: “Ia? O que você ia perguntar?”
Sophie: “Não sei. Bem, acabei de completar 11 anos. E você tem 130 e vai completar 131 em dois dias…”
Sophie vira a câmera para si mesma e a vemos pela primeira vez, sorrindo. Gira a câmera de volta para seu pai.
Sophie: “…então, quando tinha 11, o que você achava que estaria fazendo agora?”
Parado diante da câmera, o pai fica sem responder de imediato. Transcorreram apenas cerca de dois minutos do filme, incluindo os créditos iniciais. A gravação de Sophie então parece estar sendo rebobinada em alta velocidade e é seguida de flashes de pessoas dançando em uma boate sem que se consiga distinguir quem são, cena que irá pontuar todo o filme.
A resposta do pai vem cerca de 45 minutos depois, na continuação da sequência de abertura. Após interromper a gravação que Sophie estava fazendo, o pai conta o que aconteceu quando ele fez 11 anos – um fato entre outros que, como fica claro, deixou uma cicatriz nele para sempre.
Pouco depois, outro diálogo marcante entre pai e filha, depois de jogarem xadrez, lida com a falta de sensação de pertencimento a um lugar e a possibilidade de romper laços com o passado.
Sophie: “Você acha que vai voltar para a Escócia um dia?”
Calum: “Não.”
Sophie: “Por quê?”
Calum: “Não tem sol suficiente.”
Sophie: “Engraçadinho.”
Calum: “É tudo passado, para mim. É só isso. E há essa sensação de que uma vez que você deixou o lugar onde cresceu, você não pertence mais àquele lugar por completo. Não de verdade. Mas em Edimburgo nunca senti que pertencesse de fato lá…”
O diálogo prossegue. Quando termina, a câmera recua diante da porta do quarto no corredor do hotel. E após novos flashes de pessoas dançando, Calum está em pé na grade do terraço do quarto, na luz do amanhecer, com os braços abertos, como se fosse saltar. Em seguida, já de dia, em céu azul, sem nuvens, turistas voam de parapente, outra cena que pontua toda a narrativa.
Em um cartão postal está escrito o que Calum talvez não soubesse dizer à filha: “Sophie, eu te amo muito. Nunca esqueça disso. Papai.” Talvez se possa dizer que o foco de Aftersun é esse bloqueio.
Na entrevista ao The Guardian citada acima, Wells afirmou ainda: “A emoção do filme e a dor manifestada são minhas. E isso é algo muito fácil de admitir porque, como eu disse, isso para mim era uma forma de expressão e era disso que, em última análise, eu estava querendo tratar.
Mas em termos de: isso aconteceu ou eu estava nessas férias? A resposta é não. Comecei a me opor cada vez mais à autobiografia, quanto mais vejo as pessoas inclinadas a traçar uma relação direta entre mim e o filme. É difícil. Eu também tenho esse impulso. Quando você assiste a algo, você imediatamente indaga: este é o criador? Mas agora tenho uma visão muito diferente desse impulso. Há muito trabalho dedicado a esse filme e esse trabalho é frequentemente descartado ao dizer: ‘isto é apenas o que aconteceu’… Estou interessada em coisas contraditórias: pessoas e emoções. Acho que há algo no cinema que permite usar todas essas camadas e ferramentas à sua disposição para expressar algo um pouco mais complexo.”
Disponível na plataforma de streaming Mubi e sendo exibido em 23 cinemas, Aftersun estava em décimo primeiro lugar na lista das vinte maiores bilheterias do fim de semana de 12 a 15 de janeiro, já tendo sido visto por 41.755 espectadores e tido queda de renda em relação ao fim de semana anterior de 26% (Dados do Filme B Box Office).
Para A.O. Scott, em The New York Times (20/10/2022), o poder do “sensível e devastador Aftersun vem de acolher o fato básico e universal da perda… [O filme] é sobre uma experiência na maior parte feliz… que termina em lágrimas. As suas lágrimas.”
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Destaque (XXV): “Seria essencial refundarmos nosso país e concebermos, por aqui também, a ideia de um Estado plurinacional, porque esse nosso velho Estado colonial tem um DNA de pirata, de bandeirante: existe para comer os outros. Eu fico admirado que a maior parte das lideranças políticas, não só do Brasil, mas de grande parte do planeta, são tão alienadas que não se tocam que se não nos abrirmos a essa matriz cultural ampla, vamos apenas aprofundar o desastre em que estamos metidos – inclusive do ponto de vista ambiental… os povos originários têm outras contribuições ao debate, tanto sobre a pólis quanto sobre as ideias de natureza, ecologia e cultura. Se formos capazes de nos abrir a toda essa riqueza, a atividade política será mais uma dimensão da existência, e não uma ocupação predatória, como tem sido para muitos políticos do século XXI, o século do neoliberalismo, cuja invenção só tem servido para aparelhar corpos e constituir servidão…”. Ailton Krenak, Futuro ancestral. Companhia das Letras, 2022. p.88-90