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Agonia da Cinemateca Brasileira

Desgoverno atual da República não nos anima a ter esperanças

Eduardo Escorel | 12 ago 2020_09h07
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Ultrapassamos 100 mil vítimas da Covid-19 e mais de 3 milhões de pessoas já foram contaminadas pelo novo coronavírus. Enquanto isso, a agonia da Cinemateca Brasileira prossegue, e setores da cultura brasileira dependentes do Estado vão sendo massacrados pelo governo federal. Diante de tamanho desprezo pela vida e tão violento ímpeto destrutivo de valores essenciais ao ser humano, o que podemos esperar no futuro próximo, a não ser novas perdas e extermínios?

É difícil acreditar que a Secretaria Especial da Cultura e a Secretaria do Audiovisual (SAv) sejam capazes de tomar medidas efetivas para recuperar a vitalidade da Cinemateca. Não se trata apenas de cumprir obrigações básicas como as publicadas há dias (7/8) no Diário Oficial – contratação emergencial de fornecimento de energia elétrica, sistemas de climatização, prevenção e combate a incêndio, e controle de pragas urbanas. Sim, esses são serviços indispensáveis. Mas, além de assegurar recursos orçamentários que livrem a instituição de sobressaltos periódicos e a tornem capaz de retomar sua atividade plena, é imprescindível atender às pendências relativas aos funcionários contratados que estão sem receber seus salários desde abril. É imperativo, em suma, respeitar a história da Cinemateca, suas realizações, seus trabalhadores contratados e o lugar de destaque que conquistou entre as entidades culturais do país.

O que se viu na manhã de sexta-feira passada (7/8), porém, foi um ato de violência em sentido contrário – o advogado e secretário do audiovisual substituto, Hélio Ferraz de Oliveira, chegou à Cinemateca escoltado pela Polícia Federal armada com metralhadoras. A singela missão de Oliveira era receber da Acerp – Associação de Comunicação Educativa Roquette Pinto, organização social (OS) que administrava a Cinemateca desde 2018, as chaves de acesso à sede. Depois desse início pouco auspicioso, segundo relato de Roberto Gervitz, representante, junto com Francisco (Kiko) Martins, da Associação Paulista de Cineastas – Apaci, Oliveira afirmou que o governo estava agindo para garantir a segurança do acervo e que no prazo de três meses uma nova OS estará contratada para gerir a Cinemateca. Declarou ainda que as salvaguardas contidas no termo de transferência da Cinemateca para a União, em 1984, inclusive a participação ativa do Conselho Consultivo, farão parte do contrato a ser assinado com os novos gestores.

Francisco Campera, presidente da Acerp (à esquerda), e Hélio Ferraz Oliveira, secretário substituto do Audiovisual (à direita), reunidos na Cinemateca Brasileira, na sexta-feira, 7 de agosto / Foto: Acervo pessoal do colunista

 

Quanto à situação dos funcionários, com quem se reuniu à parte, Oliveira disse não ser simples resolver a pendência salarial existente por terem sido contratados pela OS cujo contrato de gestão não foi renovado em dezembro de 2019.

Será preciso aguardar e conferir se as afirmações de Oliveira não foram novas palavras vãs e se a SAv será capaz de transformá-las em ações concretas a curto prazo. Nesse sentido, os termos do edital, a ser publicado esta semana segundo ele, serão fundamentais para assegurar que a OS, uma vez contratada, tenha, de fato, a qualificação necessária para administrar uma instituição complexa que requer conhecimento especializado nas suas várias áreas de atuação. Por enquanto, Oliveira responde pela Cinematecas sem ter apresentado um plano para retomada de suas atividades e apenas a equipe de segurança e os brigadistas têm acesso à sede – quadro preocupante, caso se prolongue.

O desgoverno da República não anima a ter esperança de que a agonia da Cinemateca Brasileira possa ser revertida a tempo. Seria paradoxal que a Secretaria Especial da Cultura, em vez de continuar a demolição, passasse a reconstruir o que está sendo destruído. Os perfis dos recém- nomeados secretários nacionais de Fomento e Incentivo à Cultura e de Desenvolvimento Cultural, conforme descritos no Segundo Caderno do jornal O Globo (8/8), são eloquentes nesse aspecto – um é capitão da Polícia Militar da Bahia. Escreveu que “lockdown é uma neurose de um monomaníaco” e fez elogios à proposta do presidente de armar a população; o outro se apresenta, entre outras facetas, como “Conservador, Bolsonarista. Cronista de absurdos tragicômicos cotidianos. Cristão”, e diz não tolerar traíras.

Como se esse nível de despreparo não fosse o suficiente, tivemos na véspera (6/8) de Oliveira ir à Cinemateca a transmissão ao vivo usual das quintas-feiras do presidente da República. É possível esperar algo positivo de um governo chefiado por alguém tão baixo quanto o capitão da reserva que ocupa a Presidência? Custo um pouco a encontrar o substantivo preciso para descrever a atitude de Ele. Seria desdém? Sim, creio que sim, em certa medida ao menos. Mas há também nuances que não devem ser esquecidas – a indiferença, negligência, grosseria e desprezo contidos no modo de Ele se dirigir aos seus seguidores por meio da rede social. Um presidente com longa lista de barbaridades ditas e cometidas no currículo poderá se tornar o redentor da Cinemateca? É improvável.

O trecho de apenas 1’59” (versão publicada em UOL Notícias) dos 50’48” totais da live, na qual o presidente da República tem ao lado o ministro interino da Saúde, general da ativa Eduardo Pazuello, foi o que causou, com razão, maior escândalo. Extraído dos 5’44” que têm início aos 40’49”, o acúmulo de impropriedades por segundo relegou outros aspectos das declarações a segundo plano ou a ficarem sem ser comentados de todo.

O capitão da reserva trata o general da ativa com informalidade, chamando-o de “gordinho”. Segue-se breve polêmica sobre a pronúncia correta da palavra Oxford, em que Pazuello admite não falar inglês. Apenas “arranha”, ele declara.

Conhece Bagé, Pazuello? ”

“Conheço”, responde o general.

“Tem alguma saudade por lá?”

“Eu estou tentando novamente me reorganizar.”

Boa parte do tempo da transmissão é dedicada a fazer propaganda de cloroquina. Uma caixa do remédio está sobre a mesa. No seu caso, Ele diz ter dado certo, assim como no de alguns de seus ministros.

Para Ele, “esse efeito colateral, a recessão [econômica], é mais grave que o próprio vírus…[e a] responsabilidade do desemprego é das medidas de isolamento”.

Algumas respostas de Pazuello aos jornalistas do programa Os Pingos nos is que participam da transmissão são longas, confusas e parecem irritar o capitão da reserva ao seu lado. Na tentativa de esclarecer o que o general da ativa disse, Ele abre o bico e emite termos e frases inadmissíveis. Enquanto Ele fala, o general da ativa mantém expressão contrafeita e olhar perdido; concorda com uma ou outra afirmação balançando a cabeça; abaixa o olhar longamente; faz expressão de quem ignora o que Ele está dizendo; indica concordar quando Ele diz que tá chegando a 100 mil… e intervém poucas vezes:

Tem menos gente, né?, morrendo de determinada doença que morria o ano passado. Bem menos! E isso vai sendo creditado pro Covid. O elemento tem três, quatro, cinco comorbidade [sic], é idoso. A gente lamenta. A pessoa tá, realmente, em situação bastante complicada. E vem a falecer. O pessoal mete Covid. Não é uma regra, isso. Mas em alguns casos, alguns casos, o médico poupa uma autópsia. Bota Covid, em alguns casos. Tem chegado ao conhecimento da gente. Não vou dizer que são fontes confiáveis, mas chega essas informações pra gente, que se poupa uma autópsia. Tá certo? Então, há uma diferença, já vi você [referindo-se ao general da ativa] discutindo esse assunto aí na Jovem Pan, nos Pingos nos is, a condição de morrer com o, o Covid, quer dizer, mais uma comorbidade, somada às vezes à idade, e de, de Covid. Eu vi publicado no Diário Oficial da União, do estado, cuja responsabilidade é do governador do estado de São Paulo, ééééé…, dizendo claramente ali, traduzindo, naquela complicação, que o médico ao constatar, não puder constatar na prática se é de Covid ou não, é pra botar Covid. Então, o número sobe. Alguns ali, não sei com que interesse que alguns governadores de estado têm em encaminhar nesse sentido as coisas. Levar mais pânico à população? Que tá matando? Que tá morrendo mais gente? E o que nós podemos fazer nessa questão? Não tem remédio. Não tem vacina. Então, lamentavelmente, as pessoas que não se isolarem, até chegar a vacina, uma vez contraindo o vírus, vai ter uma chance grande de se complicar e até mesmo entrar em óbito. A gente lamenta todas as mortes. Já tá chegando a 100 mil…

[O general assente com a cabeça].

Talvez hoje, não é isso?

Essa semana. Essa semana provavelmente chegará. Provavelmente chegará a cem mil, diz o general.

Nós vamos tocar a vida. Tocar a vida e buscar uma maneira de se safar desse problema, Ele conclui.

Vamos tocar a vida e buscar uma maneira de se safar desse problema – esse é o lema da vida do presidente, do seu clã de zeros e do seu desgoverno. Essa será a divisa dessa Presidência que entrará para a história como aquela em que mais de 100 mil brasileiras e brasileiros morreram vítimas da Covid-19.

Pode-se esperar medidas que salvem e devolvam a vitalidade perdida à Cinemateca Brasileira de quem é capaz de tamanhos disparates?

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A Trilogia do Futebol, de Lucho Pérez Fernández que se apresenta como “assistente de mágico e fabulador de verdades inventadas”, está em https://vimeo.com/440045735. A Copa dos Refugiados, Os Boias-Frias do Futebol e Boca de Fogo, três documentários de curta-metragem, estão acessíveis em programa único de 37 min, e permanecerão online até 20/9. O diretor é ex-aluno do curso Cinema Documentário da Fundação Getulio Vargas.

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Na próxima terça-feira, 18/8, às 11h, Kenya Zanatta e Mauricio Dias conversam com Piero Sbragia, Juca Badaró e comigo sobre notícias falsas e outros aspectos do documentário Operação Pedro Pan (2020), baseado em argumento de Fernando Morais. Acesso através do link https://youtu.be/dmtrpjPY0us

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A Cinemateca do MAM Rio oferece programação on-line gratuita no site, acessível por meio do link www.vimeo.com/mamrio. Até amanhã, 13/8, pode ser visto Uma Questão de Fé (2020), de Elber Xavier; de 14 a 20 de agosto, Animal Indireto (2019), de Daniel Lentini e Edna (2018), de Edna Toledo. A programação completa da Cinemateca para este mês pode ser consultada através do link  http://www.mam.rio/cinemateca/agenda/este-mes/.

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