Em setembro deste ano o nome do biólogo Felipe Yamashita, de 33 anos, ganhou os holofotes. Sua pesquisa de doutorado iniciada em 2019, na Alemanha, sobre uma trepadeira nativa da selva valdiviana, entre o Chile e a Argentina, chamada Boquila trifoliolata, havia sido escolhida para levar o IgNobel 2024 na categoria botânica. Assim como outras contribuições científicas laureadas em outras áreas na cerimônia, o estudo sobre a planta conduzido por Yamashita na Universidade de Bonn trazia uma constatação peculiar – a trepadeira chilena, conhecida por mudar a forma visual de suas folhas para ficar parecida com outras espécies vizinhas em uma floresta, tinha repetido o mesmo processo com plantas de plástico. Como se não bastasse, a pesquisa do brasileiro, registrada em um artigo em parceria com o botânico amador norte-americano Jacob White, trazia ainda a hipótese de que Boquila seria capaz de enxergar o seu entorno utilizando um tipo primitivo de visão.
A edição deste ano do IgNobel foi a primeira desde a pandemia em que a celebração, famosa por reconhecer as descobertas científicas mais inusitadas do mundo, aconteceu de forma presencial. Na sede do prestigiado Massachusetts Institute of Technology (MIT), nos Estados Unidos, Felipe recebeu o prêmio, uma nota de 10 trilhões de dólares zimbabuanos, o equivalente a cerca de 2,18 reais. O estudo seguiu à risca o lema do Ignobel: “primeiro fazer rir, para depois fazer pensar.” No caso da Boquila estudada por Yamashita, ele apontou para a neurobiologia das plantas, vertente que considera a hipótese de que espécies vegetais sejam capazes não só de enxergar, mas também de ouvir, se comunicar e sentir. Um dos expoentes dessa ideia, que em resumo prega a existência de uma consciência vegetal, é o eslovaco Frantisek Baluska, orientador de doutorado do brasileiro em Bonn e que viu na trepadeira chilena uma das mais sólidas pistas para confirmar a teoria.
A propriedade camaleônica da Boquila trifoliolata apareceu pela primeira vez para o mundo científico em 2014, por meio do biólogo peruano Ernesto Gianoli, da Universidade de La Serena. Enquanto fazia uma investigação de campo na selva valdiviana, floresta de clima temperado localizada na costa do Chile e na Argentina, o pesquisador percebeu folhas similares na forma mas que eram, na verdade, de duas plantas distintas, uma delas a Boquila. Ao caminhar pela região, encontrou outras variações, sempre de acordo com a espécie hospedeira – se a folha era triangular, redonda ou alongada, a trepadeira Boquila conseguia mimetizá-la para, segundo a hipótese do peruano publicada num artigo daquele ano, evitar ser comida por herbívoros.
Já era sabido que vegetais podiam copiar a forma de outras espécies próximas para a sobrevivência. Um desses casos, abordados num capítulo dedicado à Boquila do livro Devoradoras de luz, da jornalista Zoë Schlanger, é o do centeio, considerado uma espécie de erva-daninha nos campos de colheita. No entanto, segundo um processo chamado “mimetismo vavloviano”, o centeio, ao ser cultivado perto do trigo, foi se adaptando por gerações até ficar parecido com o grão, na forma e nas propriedades, de maneira a garantir a sua perpetuação e manejo – tornou-se algo como o primo pobre do trigo. Mas o que foi observado a princípio na Boquila trifoliolata era diferente, pois as folhas de um exemplar mudavam a forma em poucas semanas e de acordo com as hospedeiras, quaisquer que fossem elas.
A primeira hipótese de Gianoli para as mudanças radicais nas folhas da trepadeira considerava que sinais químicos, ou substâncias voláteis, como o aroma, presentes nas hospedeiras e disparadas no meio ambiente, eram percebidas pela Boquila que, assim, desenvolvia suas folhas de acordo com o formato. Outra possibilidade, também aventada pelo peruano mais recentemente, é a de que haveria uma transferência genética entre as plantas, causada possivelmente por micro-organismos aéreos presentes entre as diferentes espécies – ele deve publicar os resultados da pesquisa no início do ano que vem. Mas as suposições não convenceram Baluska. “Para mim, era um pouco estranho porque a Boquila estava mimetizando várias propriedades das folhas hospedeiras. Transmitir tanta informação por meio de substâncias voláteis não me parecia o bastante”, afirma à piauí o pesquisador eslovaco. Porém, sempre foi um desafio estudar a trepadeira. Por causa das condições específicas da selva valdiviana, a planta quase não se desenvolve em outros ambientes.
Foi quando entrou em cena Jacob White. No fim de 2019, o norte-americano de Utah, um hobbista da jardinagem, tinha conseguido cultivar quatro espécies da trepadeira chilena e escreveu para Baluska. “Propus que ele comprasse plantas de plástico e colocasse-as perto da Boquila para ver o que acontecia”, lembra ele.
White instalou os quatro vasos com a espécie viva de frente para uma janela, sob duas prateleiras em alturas diferentes e com estacas ultrapassando-as, para que a trepadeira pudesse se enroscar. Embaixo da primeira barreira, só havia a Boquila. Já as espécies de mentirinha, com folhas de característica longitudinal, estavam nos dois outros andares da prateleira, possibilitando um “contato visual” com os exemplares “de verdade”. Baluska queria provar que a planta enxergava.
O experimento durou cerca de quatro anos. Como Jacob não tinha um microscópio para verificar as mudanças de forma mais aprofundada, mandou alguns ramos da trepadeira para análise no laboratório da Universidade de Bonn. Yamashita, graduado em ciências biológicas na Unesp de Botucatu, tinha estudado no mestrado, na mesma instituição paulista, a comunicação entre plantas por meio de um composto volátil, o metil jasmonato, que é liberado no ambiente para alertar ataques.
Ao analisar as amostras de Boquila e da planta artificial enviadas por White, Yamashita observou que a trepadeira copiava, sim, as folhas de plástico que estavam no seu “campo de visão” – por exemplo, a aparência arredondada da folha, que difere da Boquila original, mais triangular.
Os achados obtidos na pesquisa foram publicados pela primeira vez em 2022 na Plant Signaling and Behavior, uma revista mais circunscrita às pesquisas da neurobiologia vegetal, de relevância moderada, segundo o site Research.com, e que tem Baluska entre seus editores. O estudo circulou por algum tempo entre os interessados por botânica até chamar a atenção do comitê do IgNobel, que tem entre os membros a brasileira Mercedes Okumura, docente do Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo (USP). “Sabemos que as plantas se comunicam de algum jeito, geralmente mediadas pelas raízes. Que elas conseguem detectar a presença de outras plantas ao redor. Mas sempre se pensa nessa comunicação como um diálogo entre duas plantas vivas. Agora, uma planta de plástico e uma planta viva se comunicando? Era muito esquisito. Então achamos que era perfeito”, diz Okumura.
A hipótese de que plantas sejam dotadas de um mecanismo similar ao da visão animal não é nova. A primeira teoria sobre um componente similar ao olho em vegetais, chamado de ocelo, foi proposta em 1905 pelo botânico austríaco Gottlieb Haberlandt e, pouco depois, por Frank Darwin, filho de Charles Darwin. É como se as células das partes superiores das plantas, geralmente nas folhas, fizessem o papel de lentes, algo próximo a uma retina.
A pesquisa de Yamashita ainda não encontrou uma resposta que possa explicar em definitivo como a Boquila consegue mimetizar outras plantas, reais ou não. A tese dos ocelos, apesar de endossada pelo pesquisador brasileiro e seu orientador em um artigo publicado em 2022 na revista científica Plants, pode não ser a única causa. Outra hipótese aventada por eles é que o mimetismo aconteça por meio de um hormônio chamado auxina, que influencia na morfologia das plantas – em linhas gerais, é responsável pelo crescimento e forma. Ele argumenta que poderia haver uma comunicação entre os ocelos, que “enxergam” a chegada do raio de luz com a informação da aparência da planta vizinha, e as auxinas, o que levaria a Boquila ao processo de cópia. Assim como seu orientador, Yamashita não está convencido de que mimetização seja feita por sinais químicos despejados no ar ou transferência genética, como defende Gianoli.
A disputa para decifrar os mistérios da Boquila tem causado alvoroço entre biólogos. Os estudos publicados pelo brasileiro e seu orientador foram criticados pelo peruano Gianoli. Segundo ele, o artigo publicado na Plant Signaling & Behavior é repleto de equívocos e não tem dados confiáveis, além de apresentar um conflito de interesse por ter, entre os editores, um pesquisador diretamente envolvido no experimento, o próprio Baluska – Yamashita disse que seu orientador não escreveu ou coletou dados no experimento. Além disso, Gianoli afirmou que o experimento com plantas de plástico está cheio de incoerências e a mudança ocorrida nas folhas da Boquila pode ser explicada por outros motivos, como a falta de iluminação e a disposição dos vasos diante da janela. Ele acrescenta que uma avaliação rigorosa do manuscrito teria necessariamente levado à sua rejeição. Em resposta, Baluska ressaltou que todos os oito revisores da publicação concordaram com a validade científica do artigo.
Gianoli não descarta totalmente a teoria do ocelo vegetal, mas diz que, além de não haver dados que a comprovem, também não explicaria, por si, o mimetismo. “Por exemplo, todos os moluscos têm olhos, todos podem ver, mas somente certas espécies de polvo são capazes de mimetizar o que há atrás deles.”
A resposta para esses questionamentos pode estar na próxima descoberta de Yamashita, que deve ser publicada em breve. A duras penas, o brasileiro e seu orientador conseguiram reproduzir cerca de 120 exemplares da Boquila em uma estufa na Universidade de Bonn. Dessa vez, no lugar das plantas de plástico, colocaram a Boquila em contato com fotografias de espécies asiáticas, com as quais ela nunca teve contato.
Isolaram a trepadeira chilena em caixas de madeira, num ambiente sem outros vegetais, e expuseram as fotos nas paredes das caixas. A intenção era investigar se era possível também mimetizar formatos em dimensões diferentes, sem contato direto, “apenas olhando”. “E ela [Boquila] copiou as folhas”, conta Yamashita, que acredita que o estudo em fase de manuscrito causará ainda mais frenesi.
Gianoli, mesmo discordando dos resultados obtidos pelos pesquisadores em Bonn – o que ele vê como uma tentativa de queimar etapas para se chegar a uma conclusão –, acredita que a ideia de que o mimetismo das folhas da Boquila seja influenciado pela percepção de sinais de luz não pode ser totalmente descartada. “Até agora, não há evidências de que esse seja o caso, mas devemos estar abertos a surpresas. O mimetismo foliar único da Boquila é, muito provavelmente, um fenômeno complexo e de múltiplas camadas. Aliás, acredito que desvendar o código da Boquila nos levará imediatamente a desvendar um código geral das plantas. Entendê-la implicará em uma nova compreensão das plantas.”
O Ig Nobel é realizado anualmente desde 1991 e foi criado pelo norte-americano Marc Abrahams, matemático e editor da revista Annals of Improbable Research. Apesar do tom jocoso, alguns dos seus vencedores conseguiram galgar prêmios relevantes. O russo Andre Geim, que venceu a honraria em 2000, na categoria Física, por fazer um sapo flutuar no ar utilizando o magnetismo interno do organismo do próprio animal, conquistou o Nobel da mesma categoria dez anos depois – em parceria com outro russo, Konstantin Novoselov – por seus estudos com grafeno. Há quatro anos, cientistas chineses utilizaram os estudos de Geim com sapos flutuantes para construírem uma lua artificial com o objetivo de simular cenários de baixa gravidade. Ou seja: ninguém sabe o que o futuro reserva para o brasileiro Yamashita e sua Boquila.