Dizer que o vídeo que motivou a prisão do deputado bolsonarista Daniel Silveira (PSL-RJ) traz “ofensas” e “ameaças” ao Supremo Tribunal Federal não traduz a gravidade de seu conteúdo.
Sem dúvida ele foi ofensivo ao chamar o STF de “Supreminha” (2:31); ao dizer que Fachin é um “comunista” (4:50) que tem “bilauzinho” (3:50) e “cara de filho da puta” (5:09); ao afirmar que nenhum dos atuais ministros, com a ressalva expressa de Fux (3:30), tem “conhecimento jurídico”, “caráter”, “escrúpulo” ou “moral” (7:54) para integrar o tribunal; e ao chamá-los de uma “bosta de gangue” (6:54) repleta de “ignóbeis” (2:54).
Sem dúvida foi também ameaçador ao revelar que imagina a todo instante os ministros “levando uma surra na rua” (5:20), uma “surra bem dada” (5:59), e que torce para que os “onze vagabundos” do tribunal estejam logo na prisão, endossando a fala do ex-ministro Abraham Weintraub na reunião de 22 de abril do ano passado (que ao lado do vídeo de Silveira ficou parecendo um soneto de amor). Além de ameaçá-los pessoalmente, o deputado ameaçou também o Supremo como instituição ao defender a convocação de onze novos magistrados para o lugar dos atuais, por um processo de “limpeza” análogo àquele promovido pelo AI-5, que abriu caminho para a cassação de três ministros do tribunal em janeiro de 1969.
Mas o vídeo foi além.
Daniel Silveira imputou crimes concretos aos ministros do tribunal, projetando dúvida sobre a credibilidade da corte em geral. Ele acusou Gilmar Mendes, a quem chamou de “Gilmarzão”, de vender habeas corpus a traficantes, em ações ardilosamente usurpadas dos relatores naturais. Os “traficantes” seriam “clientes” do ministro, segundo o deputado. Também acusou Dias Toffoli de trabalhar para proteger o senador José Serra (PSDB-SP) da Polícia Federal, para evitar que crimes dos ministros do Supremo fossem revelados e eles tivessem de dividir sua “parcelinha” com delegados que estariam prestes a desmascará-los: “vocês não vão querer fazer a rachadinha de vocês, vocês querem tudo pra vocês” (12:02). (Não fica claro se o deputado percebeu que também imputava corrupção aos policiais federais neste caso.)
Silveira também sustentou tanto a inutilidade do Supremo Tribunal Federal, um bando de “onze que não servem pra porra nenhuma nesse país” (9:34), quanto uma ilegitimidade intrínseca à própria Constituição, uma “porcaria” que, diz ele, foi feita para “para colocar canalhas, sempre, na hegemonia do poder” (8:50).
Para nós do direito, qualquer deliberação é circunscrita pelos fatos que ensejam a aplicação das regras e princípios jurídicos que fundamentam a decisão. E, neste caso, os fatos não são bem descritos pela simples menção a “ameaças” e “ofensas” ao Supremo e seus ministros. A bem da verdade, o deputado federal Daniel Silveira usou seu veículo habitual de comunicação política para não apenas imputar, sem provas, crimes variados a ministros do Supremo Tribunal Federal, mas também para defender que tanto o tribunal, quanto a própria Constituição, são engrenagens ativas de um sistema de dominação política irremediavelmente corrupto, ilegítimo e usurpador da soberania popular. Esse é o pão de ló de sua conduta, sobre o qual sua linguagem chula e agressiva foi apenas a cereja.
Para chegar à decisão de que Daniel Silveira podia ser preso por usar suas plataformas políticas para pregar um expurgo de todo o Supremo Tribunal Federal e a liquidação da Constituição “porcaria” que legitima seu mandato, inclusive com as garantias e imunidades que o deputado passou a invocar tão logo a polícia apareceu em sua casa, o Supremo Tribunal Federal teve de desatar alguns nós. O primeiro está previsto no caput do artigo 53 da Constituição, que prevê imunidade a deputados e senadores por “quaisquer de suas opiniões, palavras e votos”. Como prender um deputado pelo que ele disse em vídeo se ele seria imune por quaisquer, vale frisar o qualificativo constitucional, opiniões e palavras?
Como em muitos outros temas, a jurisprudência do STF é inconsistente neste assunto. É possível encontrar decisões recentes que invocam o artigo 53 da Constituição para excluir o caráter criminoso de calúnias e injúrias praticadas por parlamentares, inclusive pela imprensa ou através de redes sociais (Pet. 8.945, de 2/10/2020, que rejeitou queixa-crime apresentada por João Doria contra um senador que o chamara de “escória”, “vazio”, “inculto” e “chumbrega”). Mas também há outras que afastam a incidência do mesmo artigo alegando que o Congresso não é um “livre mercado de ofensas” e que parlamentares devem observar “os limites da civilidade” (Pet. 7.174, de 10/3/2020, que aceitou queixa-crime contra o deputado Wladimir Costa, aquele mesmo da tatuagem “Temer”).
Essa jurisprudência sacolejante, incapaz de fornecer critérios objetivos que justifiquem decisões em temas espinhosos, faz com que a atuação do tribunal pareça arbitrária. Que o referendo unânime à decisão do ministro Alexandre de Moraes deixe a regra clara daqui em diante: a liberdade discursiva de que dispõem parlamentares para se comunicar com seus eleitores não abrange a defesa de expurgos judiciais e cassações de mandatos por atos ditatoriais, ou a conjectura explícita, literal e pública de violência física contra autoridades e cidadãos por motivações políticas. Isso porque não faz sentido invocar a imunidade parlamentar, que é condição de livre exercício de mandato político em uma democracia representativa, para proteger quem defende medidas que, se postas em prática, implicariam a destruição dessa mesma democracia. Também na interpretação da Constituição, o rabo não deve abanar o cachorro.
A superação do obstáculo do enunciado principal do artigo 53 da Constituição permite a responsabilização jurídica de um parlamentar, mas não sua prisão durante o mandato. Para que um deputado ou senador desfrute de um pernoite em uma cela, há uma segunda condição a ser preenchida, pois o parágrafo 2º do mesmo artigo estabelece que a partir da diplomação, eles não podem ser presos “salvo em flagrante de crime inafiançável”. Em outras palavras, a prisão de um parlamentar exige um certo tipo de crime (“inafiançável”) e um certo modo de descoberta desse crime (“flagrante”).
Os crimes inafiançáveis a princípio imputados pelo STF ao deputado Daniel Silveira vêm da Lei de Segurança Nacional, de 1983. Em seu voto, o ministro Alexandre de Moraes considerou que o parlamentar usou de “grave ameaça” para “tentar mudar o regime vigente” (art. 17), “tentar impedir o livre exercício” do Poder Judiciário (art. 18), “fazer, em público, propaganda de processos violentos ou ilegais para alteração da ordem política” (art. 22), incitar a “subversão social” e “animosidade entre as Forças Armadas” contra o STF (art. 23) e “caluniar ou difamar” o presidente do tribunal (art. 26). Há outros delitos a serem cogitados, como o de ameaçar as autoridades que o investigam (Código Penal, art. 344), fora, claro, a baciada de crimes contra a honra de vários ministros do STF.
Aqui, a ironia veio em mão dupla. De um lado, o deputado foi fustigado com base em um diploma concebido para atingir adversários políticos da ditadura que ele tanto festeja; de outro, o tribunal agora considerou intolerável a apologia à mesma ditadura que ele, no passado, varreu para debaixo do tapete quando validou a anistia aos militares, poupados para sempre de prestar contas à Justiça por seus crimes. (Como bônus, eles ganham de tempos em tempos a “liberdade de expressão” para zombar da dor das vítimas sobreviventes e vilipendiar a memória das que já morreram.) O STF não é a “nata da bosta”, como esbravejou o deputado no vídeo, mas contribuiu ao longo dos anos, ao lado do Congresso, com o esterco decisivo para que certa árvore frondosa, com frutos como Silveira e Bolsonaro, crescesse imponente em nosso jardim.
A maior polêmica jurídica da decisão está no conceito de “flagrante” encampado pelo tribunal, na esteira do voto do ministro Alexandre de Moraes. O flagrante, em sentido próprio, se dá quando o criminoso é pego enquanto pratica uma conduta ilegal. Para o STF, Silveira estava em flagrante porque o vídeo de conteúdo criminoso estava disponível na internet “e acessível a todos os usuários da rede mundial de computadores”. Logo, ele estava em situação de flagrância, o que permitiria sua prisão.
A prisão em flagrante é excepcional porque pode ser efetuada sem ordem judicial. A apreciação de sua legalidade é feita posteriormente, quando a prisão, já consumada, é comunicada ao Poder Judiciário. Ligando todos os pontos da decisão do STF, o guarda da esquina, de quem Pedro Aleixo tinha medo, poderá levar preso qualquer cidadão por flagrante de crime contra a segurança nacional por uma postagem de ontem, da semana passada, do mês passado ou do ano anterior que ele veja como ameaçadora, digamos, a Jair Bolsonaro. Afinal, todas seguem, como regra, acessíveis aos usuários da internet — este foi o critério de flagrância adotado pelo Supremo. Como o Direito trabalha com abstrações e categorias universais, não é possível garantir que o entendimento do STF ficará limitado a este deputado ou àquele vídeo. De agora em diante, quem tem Twitter tem medo.
Não é fácil a posição em que se encontram os ministros do STF. Não podem contar com a atuação diligente de uma Procuradoria-Geral da República combativa contra a militância bolsonarista extremada que os ataca incessantemente, incitando à violência contra membros do tribunal. A pressa com que Augusto Aras correu para apresentar denúncia contra o deputado neste caso destoa do padrão sonolento de sua atuação contra o extremismo político, e podemos especular que ela foi movida principalmente pelo desejo de cultivar boas relações com os membros do tribunal onde ele aspira uma vaga. Por isso inventaram o tal “Inquérito das Fake News”, um instrumento que pode ser defendido pragmática e politicamente, mas que não tem como ser sufragado juridicamente. É uma investigação sem objeto e sem objetivo, que confunde juiz e investigador e atropela o papel constitucional do Ministério Público, fundamentada no contorcionismo de que qualquer ato praticado através da internet equivale a um crime cometido “nas dependências do tribunal”, nos termos do dispositivo regimental que amparou sua instauração.
Uma tal coleção de máculas jurídicas é um problema grande para qualquer instituição, mas é particularmente enorme para um tribunal – cuja legitimidade vem quase que inteiramente da percepção pública da correta aplicação do Direito, sem firulas e malabarismos. E quando esse tribunal, como é o caso do STF, praticamente se confunde com a própria Constituição, não é difícil que a emenda saia pior que o soneto. É sempre bom lembrar que Ricardo Barros, líder do governo na Câmara, é entusiasta de plebiscito popular para convocação de uma constituinte e prometeu há poucos dias apresentar em breve projeto de lei nesse sentido.
Em um mundo onde as instituições estivessem funcionando de verdade, e não apenas com as portas abertas e as luzes acesas, a Câmara usaria uma rápida cassação por quebra de decoro para afirmar limites ao discurso parlamentar em face da defesa de medidas tipicamente ditatoriais contra os poderes constituídos; Jair Bolsonaro, beneficiário máximo do fanatismo fascista de Daniel Silveira, que integra sua base pessoal no Congresso, já teria repudiado suas falas; os comandos das Forças Armadas, em cuja homenagem o deputado fez o tal vídeo, repudiariam suas manifestações, reforçariam seu respeito ao tribunal e reafirmariam sua subordinação incondicional ao poder civil, seja o presidente da República alguém de direita ou de esquerda. E como não custa sonhar, até associações de policiais militares viriam a público desvincular sua imagem desse representante inglório da categoria. Quando nos damos conta do quanto esse roteiro nos parece uma ilusão distante, temos a medida do quão necrosadas já estão algumas partes importantes da nossa democracia.
A reação que virá da Câmara dos Deputados é uma incógnita. Refiro-me não apenas ao resultado da deliberação sobre a manutenção ou não de sua prisão, que estava em aberto no momento de conclusão deste texto, mas da própria evolução do conflito que pode se abrir entre a casa e o STF. Se outros deputados do bolsonarismo radical, que não são poucos, decidirem repetir a conduta do deputado Daniel Silveira e gravar seus próprios vídeos criminosos, Alexandre de Moraes está disposto a prendê-los todos? Quantos flagrantes de YouTube o Congresso estará disposto a engolir?
A renovação da querela entre militares e STF, a pretexto das rusgas renovadas entre o ministro Edson Fachin e o general Villas Bôas, parece nos ter feito dar um passo adiante rumo a um incêndio, ao qual a Câmara poderá adicionar água ou gasolina. É o primeiro grande conflito da casa sob a presidência de Arthur Lira (PP-AL), que tem interesses pessoais em jogo: réu em ações penais, não lhe interessa qualquer desgaste com ministros do tribunal; ao mesmo tempo, não pode correr o risco de passar a impressão de colocar suas conveniências particulares acima das proteções constitucionais dos mandatos de seus colegas.
Está quase invisível, se é que ela ainda existe, a linha que separa um conflito entre pessoas de uma crise aguda entre instituições. No atual cenário, é preciso defender o Supremo, mesmo reconhecendo seus defeitos e procurando corrigi-los pela crítica pública. A alternativa ao STF não é uma corte europeia centenária, repleta de magistrados impolutos e zelosos da ética judicial, mas sim um punhado de Augustos Aras, Andrés Mendonças e quem mais seja indicado pelo conluio entre Centrão e bolsonarismo, e tolerado por falanges extremadas de militares que já não se limitam à caserna – talvez aplicando a nova Constituição com a qual sonha o líder do governo Bolsonaro na Câmara dos Deputados.