“Oooobrigado, meu querido presidente, pelas águas que o senhor mandou pra gente, meu Nordeste está feliz, está contente… oooobrigado, meu querido presidente…” O refrão do xote na sanfona, puxado pelo prefeito de Jardim do Seridó (RN), José Amazan Silva (PSD), e cantado pelo público que lotava um grande galpão no município, dava o tom da festa transmitida ao vivo pela TV Brasil – a emissora oficial do governo federal – e pelos canais bolsonaristas nas mídias sociais. No palanque, abarrotado de prefeitos, deputados e vereadores, o presidente Jair Bolsonaro e alguns dos seus ministros anunciavam naquele dia, 9 de fevereiro, a entrega de mais um trecho da obra de transposição do Rio São Francisco. Entre eles o ministro do Desenvolvimento Regional, Rogério Marinho, que aproveita seus últimos dias no cargo numa frenética agenda antes de deixar o posto, agora no fim de março, para assumir a candidatura ao Senado pelo Rio Grande do Norte.
Solenidades como essa no Rio Grande do Norte, e que podem ser vistas online em todo o país, são cada vez mais frequentes na agenda do presidente Jair Bolsonaro. A piauí pediu à Secretaria de Imprensa da Presidência da República que informasse o número de viagens e inaugurações relacionadas à transposição, mas não recebeu resposta. A agenda oficial, publicada no site do Planalto, mostra que, só em fevereiro, o presidente fez um mutirão de dois dias por quatro estados (Pernambuco, Rio Grande do Norte, Ceará e Paraíba) e seis cidades nordestinas, sempre seguindo o mesmo roteiro: palanque, discursos com ataques quase sempre dirigidos ao PT, público vestido de verde e amarelo, bandeiras do Brasil, crianças e uma pose do presidente com os braços erguidos agradecendo aos céus pela água que corre pelos canais. Há pequenas variações no enredo. Em algumas visitas, o ministro do Turismo, o pernambucano Gilson Machado Neto e provável candidato a um lugar no Legislativo, assume o papel de sanfoneiro. Em outras, Bolsonaro usa um chapéu ao estilo cangaceiro.
No semiárido brasileiro estão 1.262 municípios, dos estados do Maranhão, Piauí, Ceará, Rio Grande do Norte, Paraíba, Pernambuco, Alagoas, Sergipe, Bahia e Norte de Minas Gerais. Na região do semiárido, vivem 28 milhões de pessoas, aproximadamente 12% da população, segundo o IBGE – dessas, dois terços (62%) na região urbana e um terço (38%) na região rural. Em todo o Nordeste há cerca de 40 milhões de eleitores, de acordo com o Tribunal Superior Eleitoral (TSE), o que representam 27% do eleitorado brasileiro, estimado em 150 milhões de pessoas. “Se considerarmos que a região Nordeste tem sido o epicentro da fome e do desemprego, qualquer iniciativa que torne a vida dessas pessoas menos difícil, teoricamente, pode ter um potencial eleitoral”, explica o ex-diretor geral do DataFolha Mauro Paulino, um dos maiores especialistas em pesquisas eleitorais no país.
Em 2018, o Nordeste foi a única região onde o PT se manteve no mesmo patamar das eleições anteriores. O candidato petista, o ex-ministro Fernando Haddad, recebeu mais que o dobro de votos de Bolsonaro – 20,3 milhões, contra 8,8 milhões. “A tendência crescente entre as classes mais pobres é a de votar naquele candidato que lhes dê alguma perspectiva de resolver seus problemas imediatos. É plausível que esse percentual diminua e isso apareça nas próximas pesquisas. Haverá o efeito do Auxílio Emergencial e Bolsonaro tem a caneta e a verba”, pondera Paulino.
As últimas pesquisas apontam uma diferença de oito a dez pontos percentuais entre Lula, que aparece em primeiro nas intenções de voto, e Bolsonaro, em segundo. No Nordeste, porém, essa diferença é de pelo menos o dobro – o petista oscila em torno de 60% das intenções de voto, e o presidente Bolsonaro tem em torno de 25%.
Em campanha pela reeleição praticamente desde que assumiu o mandato, em janeiro de 2019, Bolsonaro sabe que, em outubro, os votos do semiárido poderão fazer a diferença entre voltar para casa ou ganhar o direito de morar por mais quatro anos no Palácio da Alvorada. “Como Bolsonaro tem muito pouco para mostrar e a água é vital para essa população, ele segue o mesmo caminho de governantes anteriores que usaram o recurso de forma indigna”, critica o cientista político e professor do Insper Carlos Melo.
Vender a transposição como obra sua, porém, pode acabar mais atrapalhando do que ajudando Bolsonaro. O projeto é cogitado desde o Império em muitas versões que foram sendo reformuladas de acordo com o governante da vez. Foi oficialmente lançado pelo então ministro da Integração Regional, Ciro Gomes, ainda no segundo mandato do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, com o nome oficial de Projeto de Integração do Rio São Francisco com as Bacias Hidrográficas do Nordeste Setentrional. O governo de Lula começou a construção que consiste em dois grandes canais (um Eixo Norte e um Eixo Leste, em um total de 477 km), em 2007. A sucessora Dilma Rousseff fez mais alguns trechos e, por fim, Michel Temer levou a construção até o ponto em que foi encontrada por Bolsonaro. Isto é, com os canais avançados, mas com alguns trechos parados e outros esperando obras complementares (bombas, adutoras, canais e reservatórios). De acordo com o Projeto Comprova, em 2020, Bolsonaro deu início ao funcionamento de uma parte do Eixo Norte. A obra atualmente tem 97,58% concluídos. Quando Bolsonaro tomou posse, a execução física já estava acima de 90%.
“A transposição é um esforço de gerações e não um milagre feito por um mito”, afirma o professor Carlos Melo, acrescentando que a “boa política” reconheceria a participação dos governos anteriores. Com investimentos de 14,6 bilhões de reais – segundo o Ministério de Desenvolvimento Regional (MDR) – a estimativa é que mais de 90% da transposição já esteja pronta e em funcionamento até o final do governo Bolsonaro. O valor total hoje é mais do que três vezes o calculado inicialmente em 4,5 bilhões de reais. “É preciso saber se é uma obra que admite a multiparentalidade. Se admitir, haverá vários pais para a transposição do São Francisco. Se não, os eleitores terão que escolher um pai”, diz o cientista político Antonio Lavareda.
Os eixos são o ponto de partida das águas que, desviadas do “Velho Chico”, um caudal com uma bacia de 641 mil km2, correm por aproximadamente 2,8 mil km desde sua nascente no Parque Nacional da Serra da Canastra (MG), passando por seis estados e 504 municípios, até chegar à foz no Oceano Atlântico, na divisa entre Alagoas e Sergipe. A previsão, quando tudo estiver concluído, é abastecer 11,6 milhões de pessoas (4,5 milhões vão ser atendidas pelo Eixo Leste e 7,1 milhões pelo Eixo Norte), segundo o MDR.
Os movimentos sociais estão se preparando para campanhas que tentem impedir o uso da água como moeda de troca eleitoral. Com o lema “Não troque seu voto por água”, a ASA (Articulação do Semiárido Brasileiro), rede formada por mais de 3 mil organizações sociais de diferentes naturezas, iniciará a campanha que pretende lembrar à população de que ter água é um direito dos cidadãos, não um favor dos governantes. “O semiárido tem historicamente uma relação de poder com a água. Basta lembrar que os açudes sempre foram construídos nas terras dos coronéis, bem como os carros-pipa, abundantes nas campanhas eleitorais, e que sumiam depois”, observa Rafael Neves, coordenador do programa de cisternas da ASA.
Dois programas fundamentais nas regiões semiáridas, o de construção de cisternas (reservatórios de água que abastecem a comunidade em época de seca) e o dos carros-pipa, são um dos calcanhares de aquiles na narrativa que tenta destacar a preocupação de Bolsonaro com o semiárido. O programa Um milhão de Cisternas surgiu em 2003, com o nome oficial de Programa Nacional de Apoio à Captação de Água de Chuva e Outras Tecnologias, inicialmente sob o controle do extinto Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome. De acordo com a Articulação do Semiárido Brasileiro (ASA), no primeiro ano do governo Bolsonaro, 2019, os valores pagos ao programa das cisternas foram os menores desde que ele foi lançado: 13,6 milhões, o equivalente a cerca de 14,7 milhões de reais em valores atualizados. Em 2020, somente 2,6 milhões foram empenhados. “E nem esse recurso chegou às famílias porque até agora não foi pago”, diz Neves. O mesmo aconteceu com a Operação Carro-pipa. Em 2017, recebeu 1 bilhão de reais do orçamento. No ano seguinte, sofreu um corte de 25% nas verbas, e o governo destinou 793 mil reais aos caminhões. Ambos os programas estão agora sob o comando do Ministério da Cidadania.