Logo depois do golpe militar de 1964, no dia 1º de abril, ainda investido do mandato, o deputado Rubens Paiva fez um discurso na Rádio Nacional conclamando a população a resistir ao golpe militar. Sua cassação não demorou: veio na primeira leva de políticos perseguidos, junto com mais quarenta deputados, no dia 10 de abril de 1964.
Ao ser cassado, Rubens Paiva decidiu fugir de Brasília num pequeno avião que chegou a decolar de uma pista de pouso pouco conhecida, feita durante a construção da cidade. No ar, o piloto recebeu a ordem da torre de controle para retornar, caso contrário a aeronave seria abatida por caças. Retornaram, e quando o avião parou na cabeceira da pista, Rubens Paiva saiu correndo em zigue-zague em direção ao Fusca que havia lhe levado até lá, sob tiros de soldados.
É possível imaginar a tentação de Murilo Hauser e Heitor Lorega, que acabam de vencer o Prêmio de Melhor Roteiro no Festival Internacional de Cinema de Veneza, para incluir essa passagem, entre outras, repletas de aventura e heroísmo, na trama do filme Ainda estou aqui. Nenhuma delas aparece no filme de Walter Salles, com Selton Mello no papel de Rubens Paiva, e Fernanda Torres no de Eunice Paiva, a mulher do deputado.
Para quem leu o livro do mesmo nome de Marcelo Paiva, filho do político, trata-se de uma opção radical. E que parece ter sido muito refletida pelo diretor e sua equipe, analisa Fernando de Barros e Silva, na edição deste mês da piauí.
A figura de Rubens Paiva – que foi torturado até a morte em 1971 e cujo corpo nunca foi encontrado – é desinvestida da condição de herói. Quase nada ficamos sabendo de sua trajetória política em Ainda estou aqui. Boa parte do filme se concentra nas semanas que antecedem e sucedem o desaparecimento de Rubens Paiva, em 20 de janeiro de 1971.
“No país da telenovela, Ainda estou aqui evitou a estereotipia e os exageros dramáticos, mas evitou também certos clichês que costumam aparecer em filmes sobre a ditadura – não há a figura do rebelde romantizado; não há preocupação didática ou empenho militante, em arte quase sempre infantilizantes; não há cenas excruciantes de tortura; não há truculência exacerbada, pelo menos não nos termos que estamos acostumados a ver retratadas no cinema”, escreve.
Barros e Silva acrescenta: “O filme nos coloca na condição de testemunhas de algo como uma cerimônia fúnebre, ou da celebração de um corpo que está (eu já ia dizendo estava) desaparecido há mais de 53 anos. Poucas vezes as ideias da arte como reparação e do cinema com resgate da memória se materializaram com tanta propriedade entre nós. É incômodo, ao mesmo tempo, constatar que o filme realiza simbolicamente aquilo que a democracia brasileira não foi capaz de cumprir.”
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