Durante quase quarenta anos, Felícia Nardini de Oliveira esperou por notícias. Não sobre a vida, mas acerca da morte de sua filha Isis Dias de Oliveira. Estudante de ciências sociais na USP (Universidade de São Paulo) na década de 1960, ela entrou para a ALN (Ação Libertadora Nacional), um dos grupos que lutavam contra a ditadura militar brasileira de 1964. Em 1970, ela trocou São Paulo pelo Rio de Janeiro e, em 30 de janeiro de 1972, foi sequestrada e levada para o DOI-CODI (Destacamento de Operações de Informações – Centro de Operações de Defesa Interna) carioca. A data do sequestro, a mesma que consta no atestado de óbito, é praticamente tudo o que a família sabe sobre seus últimos dias de vida. “Até hoje não sabemos o que aconteceu. Nunca recebemos o corpo da tia Isis”, reclama à piauí sua sobrinha, a socióloga Adriana Dias de Oliveira. Em quatro décadas, a família foi de informações falsas sobre o seu paradeiro, que incluíram pistas no Brasil, na França e em Cuba. “Em 1979 um general reconheceu a morte dela”, conta Oliveira, sem revelar o nome do oficial.
Enquanto esteve viva, Nardini, que morreu em 2010, não mediu esforços para conseguir informações a respeito da filha, que na época tinha 30 anos. Esteve com o jurista Heráclito Fontoura Sobral Pinto, conhecido defensor dos direitos dos presos políticos, integrou a Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos e participou da fundação do grupo Tortura Nunca Mais. Ainda assim, nunca teve a oportunidade de enterrar ou compreender com exatidão como foram os últimos dias de vida da filha. “Ela (Isis) não era da elite intelectual, mas de uma família de classe média, que escolheu participar da luta armada e ser guerrilheira”, afirma Oliveira. “Nós precisamos saber o que aconteceu com ela e queremos a devolução dos corpos de todos os desaparecidos políticos. É uma obrigação do Estado.” Isis Dias de Oliveira foi homenageada pelos alunos da USP, que deram o seu nome ao centro acadêmico de ciências sociais. Uma praça no Alto da Lapa, bairro onde viveu em São Paulo, além de duas ruas, uma no Rio de Janeiro e outra em Recife, também levam o seu nome.
Aluno de história, Luiz Eduardo da Rocha Merlino conheceu Angela Mendes de Almeida, do curso de ciências sociais, nos anos 1960, na USP. Ambos participavam do movimento estudantil e eram integrantes do POC, o Partido Operário Comunista. “Eu já estava concluindo o meu curso quando ele entrou na universidade. Militamos juntos durante cinco anos”, lembra Almeida à piauí. Em 1971 viajaram para a França em nome do partido, para entrar em contato com a Quarta Internacional, organização comunista composta por seguidores do intelectual marxista Leon Trótski. Enquanto Merlino ainda não estava sob os olhares dos militares, Almeida vivia sob os efeitos da clandestinidade – saiu do Brasil com nome falso e precisou fazer escalas na Argentina e no Chile.
A estadia na França durou seis meses e Merlino retornou ao país em julho, mas as coisas não saíram como previsto. “Por um azar terrível, ele foi visitar sua família em Santos sem saber que a polícia já estava à sua procura. Foi preso e levado para o DOI-CODI, em São Paulo”, explica Almeida. Lá, foi torturado, jogado em uma solitária e abandonado. Uma ferida em sua perna decorrente das torturas gangrenou. Quando abriram a cela, ele estava à beira da morte. “Depois, soubemos por companheiros que o corpo dele foi jogado em um porta-malas. A polícia não deu mais nenhuma informação.” Seu corpo foi encontrado no Instituto Médico Legal pelo marido de sua irmã, delegado da polícia civil, e entregue em um caixão lacrado para a família. Almeida não voltou ao Brasil. Viveu no Chile, na Argentina, na França e em Portugal. Após a anistia, em 1979, ela retornou ao Brasil e teve um filho, Nicolau, nome de guerra usado por Luiz Merlino. Na USP, outra homenagem: o centro acadêmico da história leva o nome de Luiz Eduardo Merlino.
Isis Dias de Oliveira e Luiz Eduardo da Rocha Merlino integram o grupo de quinze estudantes da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP mortos pelo regime militar que receberão diplomas póstumos em cerimônia a ser realizada nesta segunda-feira (26), às 15 horas. Além deles, serão homenageados Antonio Benetazzo, Carlos Eduardo Pires Fleury, Catarina Helena Abi-Eçab, Fernando Borges de Paula Ferreira, Francisco José de Oliveira, Helenira Resende de Souza Nazareth, Jane Vanini, João Antônio Santos Abi-Eçab, Maria Regina Marcondes Pinto, Ruy Carlos Vieira Berbert, Sérgio Roberto Corrêa, Suely Yumiko Kanayama e Tito de Alencar Lima. A solenidade terá transmissão ao vivo.
Na quarta-feira (28) serão concedidos os diplomas póstumos aos estudantes da medicina: Antônio Carlos Nogueira Cabral e Gelson Reicher. E até o final do ano, os cursos de direito, psicologia, engenharia, física, pedagogia, comunicação e artes e geologia vão organizar suas respectivas cerimônias aos seguintes alunos: Alexander José Ibsen Voeroes, Arno Preis, Aurora Maria Nascimento Furtado, Jeová Assis Gomes, João Leonardo da Silva Rocha, José Roberto Arantes de Almeida, Juan Antônio Carrasco Forrastal, Lauriberto José Reyes, Luiz Fogaça Balboni, Ligia Maria Salgado Nóbrega, Manuel José Nunes Mendes de Abreu, Nelson de Souza Kohl, Olavo Hansen, Sidney Fix Marques dos Santos.
As homenagens fazem parte do Projeto Diplomação da Resistência da USP, que visa reparar injustiças, honrar a memória e conceder diplomas honoríficos aos 33 alunos mortos durante a ditadura militar. Os primeiros a receber o diploma foram Alexandre Vannucchi Leme e Ronaldo Mouth Queiroz, ambos da geologia, no ano passado. Queiroz e Leme foram presidentes do DCE (Diretório Central dos Estudantes) da USP e integrantes da ALN. Leme entrou na USP em 1970 e em 16 de março de 1973 foi preso por agentes do DOI-CODI. Torturado até o dia seguinte, ele não resistiu e morreu. Queiroz começou a estudar na USP no final dos anos 1960 e foi morto a tiros no dia 6 de abril de 1973, fuzilado à queima-roupa por agentes do Estado em um ponto de ônibus na Avenida Angélica, em Higienópolis. “Esse diploma foi uma medida de reparação importante para a memória do Alexandre, para não deixar a vida dele cair no esquecimento, além de revelar para os mais jovens as atrocidades praticadas durante a ditadura militar no Brasil”, comenta Beatriz Vannucchi Leme, a irmã mais nova de Alexandre.
Essa série de diplomações póstumas teve início a partir da Lei 12.528, de 2011, que instituiu a Comissão Nacional da Verdade no início do primeiro mandato de Dilma Rousseff (PT), para investigar as violações cometidas pelo Estado entre 1946 e 1988, especialmente a partir do golpe de 1964. A partir daí a USP – e várias outras instituições do país – decidiu criar sua Comissão da Verdade para esclarecer e examinar graves violações aos direitos humanos praticadas por agentes do Estado durante a ditadura contra docentes, alunos e funcionários da instituição.
De acordo com o relatório final da CV da USP, entregue em 2018, 47 pessoas foram mortas no período pelo Estado, entre estudantes que não concluíram os cursos, alunos que se formaram, professores e funcionários. O relatório também trouxe catorze recomendações. Uma delas menciona a diplomação póstuma. Em 2023, um esforço conjunto deu viabilidade à proposta. Camilo Vannuchi procurou o Instituto de Geociência sugerindo a titulação de seu primo de segundo grau, Alexandre Leme, e do amigo Queiroz.
Nas ciências sociais, Julia Naomi Panisi Toko, integrante do coletivo de alunos Vermelhecer, ligado ao PT, se interessou pela diplomação póstuma durante o debate que houve após a exibição do filme O Pastor e o Guerrilheiro, dirigido por José Eduardo Belmonte, sobre a história de um guerrilheiro e um pastor na prisão, e da filha de um coronel que descobre que seu pai foi um torturador durante a ditadura. O debate teve como convidados Adriano Diogo, ex-vereador e ex-deputado estadual, e José Genoino, ex-deputado federal, ambos torturados na ditadura. Pouco tempo depois, ao se tornar estagiária no gabinete da vereadora Luna Zarattini (PT), Toko apresentou a proposta para a parlamentar, que decidiu encampar a ideia. Ao assumir a presidência da Comissão dos Direitos Humanos, em abril, ela começou a articular alguns encontros na USP sobre o tema. “Essa iniciativa significa uma instituição do Estado reconhecendo a violência política do Estado. No passado a universidade alegava abandono. Mas esses alunos não deixaram de completar a graduação porque abandonaram os estudos, eles foram mortos”, explica Zarattini à piauí.
Renato Cymbalista, professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP e diretor de Direitos Humanos e Políticas de Reparação, Memória e Justiça da Prip (Pró-Reitoria de Inclusão e Pertencimento), criada em maio de 2022, também acabou se envolvendo com as homenagens aos estudantes mortos pela ditadura. Dado o seu gigantismo – são quase 100 mil estudantes, mais de cinco mil professores e 12 mil funcionários distribuídos em oito cidades, com 183 cursos de graduação e 264 programas de pós-graduação – na USP as diplomações póstumas precisavam ser requeridas em cada um dos cursos. O ineditismo da proposta também gerou alguma burocracia ao sistematizar demandas e decisões. A tarefa coube a Cymbalista, que criou uma série de procedimentos administrativos. “Esse diploma é um registro universitário acadêmico, não apenas um papel impresso”, ele resume.
Cada titulação requerida precisa passar pela comissão de graduação da sua unidade. De lá, segue para o conselho da graduação, que reconhece a validade do diploma. Só depois de todo esse trâmite ele pode ser impresso e entregue. Embora a USP esteja se organizando para realizar a diplomação de todos os seus estudantes mortos durante a ditadura até o final do ano, ela não foi a primeira nem a única universidade a tratar do tema, com iniciativas em instituições Brasil afora.
Em setembro de 2017, na semana em que completava quarenta anos da invasão das suas dependências por tropas da polícia militar durante a o regime militar, a Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) organizou uma cerimônia no Tucarena, teatro localizado no campus, em Perdizes, para diplomar postumamente alguns dos seus estudantes, baseado no relatório da Comissão da Verdade que a instituição havia produzido desde 2013. Foram homenageados cinco alunos desaparecidos: Maria Augusta Thomaz, Carlos Eduardo Pires Fleury, Cilon Cunha Brum, José Wilson Lessa Sabbag e Luiz Almeida Araújo. Em 2019, foi a vez de João Maria Ximenes de Andrade, outro aluno perseguido pelos militares. Para a professora Rosalina Santa Cruz, que fez parte da CV da PUC-SP, a reparação foi importante. “Nós achamos que essas pessoas poderiam ter concluído o curso se não tivessem sido arbitrariamente mortas”, explica. Além dela, integraram a comissão Heloísa de Faria Cruz, Leslie Denise Beloque, Marijane Vieira Lisboa, Salma Tannus Muchail, Ana Paula de Albuquerque Grillo e o Padre João Edênio Reis Valle (membro honorário).
Assim como nas universidades de São Paulo, outras instituições Brasil afora estão replicando a iniciativa. Em fevereiro passado, Betty Almeida, professora de química aposentada pela Universidade Federal da Paraíba, e Paulo Parucker, consultor legislativo da Câmara Legislativa do Distrito Federal e integrante da Comissão Anísio Teixeira de Memória e Verdade da Universidade de Brasília, instalada em 2012, procuraram Welitom Borges, diretor do instituto de geologia, e Márcia Abrahão, reitora da UnB, com a proposta dos diplomas póstumos. Eles concordaram. “Os trâmites burocráticos demoraram menos de quatro meses, foi tudo bem rápido”, lembra Almeida, que entre 1967 e 1968 estudou química na UnB, foi colega de Guimarães e sobre ele escreveu o livro Paixão de Honestino, publicado em 2016 pela própria universidade.
A comissão descobriu três ex-estudantes da universidade mortos pela ditadura. Dois deles, Ieda Santos Delgado e Paulo de Tarso Celestino, concluíram a graduação em direito, mas Honestino Monteiro Guimarães, morto aos 26 anos, não conseguiu se formar em geologia. Ele nasceu em Itaberaí, em Goiás, e se mudou para Brasília com sua família na adolescência. Já no ensino médio se insurgiu contra a ditadura, depois foi presidente da Federação dos Estudantes da UnB e acabou expulso. Seguiu, então, para São Paulo, onde presidiu a União Nacional dos Estudantes. Obrigado a entrar para a clandestinidade, se mudou para o Rio de Janeiro, onde foi preso e levado ao Centro de Informações da Marinha. Foi morto em outubro de 1973 e seu corpo permanece desaparecido.
No dia 26 de julho, o auditório da Associação dos Docentes da UnB recebeu mais de quinhentos convidados para a homenagem a Honestino Guimarães, que foi diplomado 51 anos após a sua morte. Entre os presentes estavam Shoshana Furtado, sua companheira na época do desaparecimento, e Isaura Botelho, com quem ele tinha sido casado, mãe de sua única filha, além de amigos, autoridades, professores e estudantes. “Foi uma bela e merecida homenagem. Vejo Honestino como um símbolo da luta contra a ditadura e a favor da construção de uma sociedade socialista sem injustiça social, em que os trabalhadores pudessem usufruir do produto do seu trabalho”, lembra Betty Almeida.
O líder estudantil já havia sido homenageado pela UnB. Em 2013, quando foi oficialmente declarado anistiado político, a universidade realizou uma cerimônia para revogar a sua expulsão e lhe fazer um pedido oficial de desculpas. Outra honraria lhe foi oferecida por seu amigo, o artista plástico Henrique Goulart Gonzaga Júnior, mais conhecido por Henrique GouGon: trata-se de uma imagem de Guimarães na forma de um mosaico, instalado em frente ao restaurante universitário. Recentemente os nomes de Ieda Santos Delgado e de Paulo de Tarso Celestino da Silva foram acrescentados à obra.
No Rio de Janeiro, por iniciativa do diretório estudantil, da Associação dos Trabalhadores em Educação e da Associação dos Docentes da UNIRIO (Universidade Federal do Estado de Rio de Janeiro), a instituição aprovou em abril, em regime de urgência, a criação de uma Comissão da Verdade para investigar os efeitos da ditadura militar dentro da instituição. Em paralelo, foi aprovada a diplomação póstuma de três estudantes de medicina: Lúcia Maria de Souza, Elmo Corrêa e Luiz Renê Silveira e Silva. Os diplomas foram entregues aos seus familiares no mesmo mês, em uma solenidade no auditório. “Ao realizar essa cerimônia tentamos trazer alguma reparação para essas famílias”, diz Bruna Nascimento, vice-reitora da universidade.
Lúcia Maria de Souza estava no quarto ano da faculdade e estagiava no Hospital Universitário Pedro Ernesto, na Vila Isabel – hoje o DCE da UNIRIO leva o seu nome. Elmo Corrêa era aluno do terceiro ano e Luiz Renê estava no segundo. Militantes do Partido Comunista do Brasil, eles participaram da guerrilha do Araguaia, no Sul do Pará. Foram mortos e seus corpos seguem desaparecidos.
Em Natal, mais dois estudantes devem ser diplomados nos próximos meses pela UFRN (Universidade Federal do Rio Grande do Norte): Emmanuel Bezerra dos Santos e José Silton Pinheiro. Segundo Ceiça Fraga, professora titular aposentada do departamento de história, a iniciativa partiu dos estudantes, que fizeram o pedido de diplomação à reitoria. “É importantíssimo reparar injustiças feitas com a comunidade universitária, em especial com os estudantes vítimas das atrocidades dos governos militares, que impediram essas pessoas de terem suas profissões e servirem ao país”, afirma a docente.
Santos nasceu em São Bento do Norte, no interior do estado, e em 1967 entrou na Faculdade de Sociologia e Política da Fundação José Augusto, atual curso de ciências sociais da UFRN. Integrante do Partido Comunista Brasileiro e mais tarde do Partido Comunista Revolucionário, foi preso em Recife, levado ao Dops-PE e , em seguida, a São Paulo, onde foi morto por agentes do Estado no DOI-CODI. Pinheiro é natural da pequena São José de Mipibu, vizinha a Natal, e foi integrante do Partido Comunista Brasileiro Revolucionário. Morreu no Rio de Janeiro, em consequência de torturas. Segundo documentos da Comissão Nacional da Verdade, ambos foram enterrados como indigentes.
Assim como as universidades, o governo federal também está de olho no tema. O Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania anunciou no início de julho deste ano a retomada da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos, extinta por Jair Bolsonaro em dezembro de 2022. A comissão instituída por lei em dezembro de 1995 tem como função o reconhecimento de pessoas desaparecidas que tenham participado ou foram acusadas de participação em atividades políticas entre 1961 e 1988.