O alerta veio de um ribeirinho na manhã de quinta-feira, 20 de agosto: havia dois corpos às margens do Igarapé Diabinho, na BR-364, que interliga a capital do Acre, Rio Branco, a Cruzeiro do Sul, a segunda maior cidade do estado. Um corpo estava sem a cabeça. O outro teve as orelhas cortadas e várias perfurações a faca, num claro sinal de que, antes da morte, as vítimas sofreram tortura. Corpos sem cabeça ou com sinais de tortura fazem parte da morte que as facções impõem a seus “soldados” por violarem os princípios de conduta ou por traição. O Acre está no centro da disputa entre o Comando Vermelho e o Primeiro Comando da Capital pelo domínio da rota internacional do tráfico de drogas na região.
Mas um detalhe chamava a atenção naquelas mortes: os dois homens eram adolescentes indígenas do povo Huni Kuin, historicamente chamados de Kaxinawá. Ambos tinham 16 anos e eram moradores do município de Feijó, a 350 km da capital Rio Branco. As duas mortes alertaram as autoridades locais para mais um entre tantos problemas enfrentados pelos povos indígenas na Amazônia: a infiltração das organizações criminosas dentro de seus territórios tradicionais. Os integrantes das facções buscam refúgio em locais afastados e de difícil acesso para fugir dos inimigos ou da polícia.
Na bacia do Rio Juruá, extremo Oeste do Acre, há áreas em que os traficantes montaram acampamentos e controlam a rota do tráfico munidos de fuzis e outras armas pesadas. Agentes do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) que atuam nas unidades de conservação já receberam recados para não realizarem fiscalizações nas áreas dominadas pela facção. A parte Norte do Parque Nacional da Serra do Divisor, próxima à fronteira com o Peru, é onde há mais registros da ação dos criminosos.
A densa floresta aliada à falta de policiamento facilita a instalação desses grupos. Na rota das facções estão dezenas de aldeias indígenas, que também passaram a ser assediadas pelos traficantes.
As regiões do Vale do Juruá e Tarauacá/Envira estão desde o fim do ano passado sob o domínio do Comando Vermelho, após uma sangrenta guerra com a facção local Bonde dos 13 (B13), aliada da paulista PCC. É nessa área que se concentra a maior densidade populacional indígena do Acre, muitos deles moradores das periferias das cidades. Na ponte sobre o Rio Envira – poucos quilômetros depois da ponte do Igarapé Diabinho – ainda é possível encontrar as pichações PCC.
São cidades caracterizadas por elevada pobreza, dependendo exclusivamente da renda de servidores públicos e do pagamento de benefícios sociais. Na zona rural essa pobreza é mais presente, e as comunidades indígenas, historicamente já vítimas de um processo de exclusão, se tornam ainda mais vulneráveis. O promotor de Justiça Juleandro Martins atuou por quase dois anos em Feijó. Ele presenciou de perto esse aumento da participação indígena no mundo do crime, e recebeu em seu gabinete a visita de lideranças relatando ter sofrido ameaças de morte ao tentar enfrentar os faccionados. Martins atuou em processos criminais envolvendo indígenas não só em inquéritos de tráfico de drogas como também de roubo. “Na verdade, o crime organizado tem como pano de fundo o tráfico, mas há uma série de outros crimes envolvidos.”
Feijó é o maior município em extensão territorial do Acre e o quinto em população, com cerca de 34 mil habitantes. Lá está concentrada a maior quantidade de terras indígenas do estado, bem como da população indígena. Por esse território que se estende da fronteira com o Peru à divisa com o Amazonas vivem os Ashaninka, os Huni Kuin, os Shanenawa e os Madijá (Kulina); Feijó é o único a possuir representantes dos três troncos linguísticos presentes em território acreano – Pano, Arawá e Aruak. Nas cabeceiras dos rios no território de Feijó, já na fronteira com o Peru, há registro de povos indígenas isolados. A mistura entre os povos é frenética: Huni Kuin que se casa com Shanenawa ou Ashaninka (e vice-versa), além dos casamentos entre os indígenas e os brancos, chamados de nawá no tronco linguístico pano, o mais comum falado entre os povos do Acre.
É dessa mistura de relacionamentos que os “soldados do crime” se aproveitam para arranjar relação com uma indígena e passar a morar nas aldeias, conta o promotor. Os líderes das facções vão se infiltrando dentro das terras indígenas. Além de refúgio seguro, querem arregimentar mais soldados e aproveitar as áreas abertas para o plantio de maconha. Ao arranjar casamento com as mulheres indígenas, os criminosos não se apresentam como faccionados, mas pessoas que querem construir uma família. Sem resistência por parte da pretendente nem de seus familiares, ganham direito a construir uma casa na aldeia.
Depois de um tempo, o novo morador passa a usar os roçados de subsistência para também plantar maconha. Prometem lucros altos e rápidos, e ganham permissão para esse tipo de cultivo. Não é difícil o plantio da folha da maconha se expandir, dividindo espaço com os pés de banana, milho e macaxeira. Os maiores ganhos ficam com as lideranças das organizações, que têm no tráfico a principal fonte de financiamento. Às famílias que se arriscam com o plantio, ficam as sobras e os riscos de suas plantações serem descobertas pelas autoridades e de terem que responder pelo crime de tráfico de drogas.
Cordial de início, a relação do faccionado com os indígenas aos poucos vai se tornando violenta. Usando armas, passam a intimidar e ameaçar os indígenas. Muitos moradores das aldeias ficam com medo de denunciar o caso para as autoridades. “A situação é muito preocupante. Alguns indígenas nos procuravam e diziam que se as autoridades não adotassem providências eles iriam adotar as próprias leis na aldeia. Parece que a cada dia que passa a facção quer ocupar mais espaço nas aldeias. Os indígenas que estão resistindo estão recebendo ameaças de morte“, afirma o promotor.
De acordo com ele, a presença desses grupos não se dá apenas por meio dos “soldados rasos”, mas também dos chefes, os chamados “gerais”. O promotor diz ter percebido certo poder de influência desses cabeças dos crimes dentro de algumas comunidades indígenas. “Eles estão utilizando o índio quase como se fosse um adolescente. Eles acabam tendo um poder de influência muito grande. Acho que isso se dá pela vulnerabilidade a que estão expostos.”
“Se as facções se instalaram foi porque houve a conivência de algumas lideranças, porque tinha filho envolvido, irmão envolvido, sobrinho envolvido. É aquela história, é meu filho, é meu sobrinho e vou pegar e entregar para a polícia? É essa questão do sentimentalismo que está fazendo com que as facções se instalem nas aldeias, os próprios indígenas se tornando membros de facção”, diz uma liderança indígena que, por já ter recebido ameaças de morte, pede o anonimato.
Outra consequência é o crescimento de indígenas que se tornaram usuários de drogas ou vendedores. Ficam dependentes dos traficantes, se endividam, e o não pagamento de dívidas tem como consequência a morte. É o que pode ter ocorrido com os dois jovens Huni Kuin executados no Igarapé Diabinho. Segundo a Polícia Militar registrou no boletim de ocorrência, eles foram retirados da casa de seus pais às 9 horas da manhã de terça-feira, 18 de agosto, por quatro homens. Daquele dia em diante, a família não teve mais notícias, tendo apenas que ir até as margens do igarapé na quinta para fazer o reconhecimento dos dois corpos mutilados. Dois dos assassinos foram presos no mesmo dia em que os corpos foram encontrados, sendo um deles menor de idade. Segundo as primeiras investigações, os adolescentes indígenas foram executados pelo não pagamento de dívidas com a facção. As mortes seguem sob investigação da Polícia Civil.
Os suspeitos podem ser indiciados pelos crimes de associação criminosa, sequestro, homicídio qualificado e ocultação de cadáver. De acordo com a assessoria da instituição, o inquérito foi renovado por mais trinta dias para a realização de diligências e coleta de depoimentos em Feijó e em Tarauacá. No dia 15 de setembro, uma terceira pessoa foi presa suspeita de participação no crime e outros também já foram identificados e terão suas prisões solicitadas.
No dia 28 de agosto, a Folha de Feijó noticiava: “Polícia Militar de Feijó prende indígena com droga.” O caso também envolvia um Huni Kuin, desta vez de 31 anos. Por serem maioria entre os mais de 24 mil indígenas do Acre, os Huni Kuin estão mais vulneráveis tanto em Feijó quanto na vizinha Tarauacá, cidade dominada pelo Comando Vermelho. De acordo com o tenente José Mendonça, comandante da PM em Tarauacá, esse tipo de prisão tem se tornado mais comum. “Eles saem de suas terras e vêm para a cidade, ficando muito expostos ao mundo do crime. Estão sendo levados a práticas criminosas, e estamos vendo aqui, no dia a dia, suas participações com as facções criminosas, infelizmente”, diz o oficial.
O comandante diz que a influência das facções mudou a dinâmica do crime numa cidade considerada pacata até tempos atrás. “Antes as ocorrências eram mais por brigas causadas por bebedeiras, uso de arma branca. Houve uma mudança para crime de tráfico com modus operandi bem definido e, como visto recentemente, mortes com requintes de crueldades.”
Segundo dados do Tribunal de Justiça, em 2020 o Acre registra pelo menos 32 indígenas nos presídios do estado, a maioria no interior. A Unidade Prisional Moacir Prado, em Tarauacá, é a que tem a maior quantidade: nove. É lá onde moradores de Feijó cumprem suas penas. Em segundo lugar está o presídio Evaristo de Moraes, em Sena Madureira, outro município com bastante presença de indígenas moradores das periferias.
A Terra Indígena Campinas Katukina fica em Cruzeiro do Sul. Ela é atravessada pela BR-364 e está próxima a vilas rurais, com forte atuação do Comando Vermelho. Essa vizinhança deixa os indígenas vulneráveis a sofrerem com a violência e terem os jovens arregimentados para o mundo do crime. Fernando Katukina, um dos líderes dessa etnia, afirma terem crescido os casos de roubos e furtos nas comunidades.
O tráfego constante de veículos pela rodovia deixa as comunidades indígenas ainda mais expostas a esses delitos. Motos e celulares são os objetos mais visados pelos delinquentes. Katukina diz já ter comunicado a situação para as autoridades federais e estaduais, mas que nada foi feito até agora. “Enquanto liderança Katukina eu fico muito preocupado com o meu povo. Nós indígenas não temos a força de coibir essa parte das facções criminosas. A gente está sem força para isso. As vidas de nossas esposas, filhos e filhas estão em risco. Nós que moramos aqui na BR-364 não temos segurança de nada”, afirma.
“Ninguém sabe o que vai acontecer daqui pra frente. A gente tem que fazer o trabalho para que essa ameaça não chegue aqui com meu povo. O meu povo não merece esse tipo de coisa: entrada de droga, de alcoolismo. Mas infelizmente isso está entrando nas nossas aldeias.”
A infiltração desses grupos criminosos nos territórios tradicionais, completa ele, representa mais um fator de risco à sobrevivência das populações indígenas em meio a tantos outros intensificados nos últimos anos. “Eu não quero ver pessoas do meu povo assassinadas por essas facções. Já bastam essas doenças que estão levando pessoas do meu povo. É tuberculose, é hepatite, é câncer. Não é fácil você lidar com as doenças que ameaçam nossas aldeias e mais a entrada das facções criminosas”, alerta.
A reportagem entrou em contato com a presidência da Fundação Nacional do Índio (Funai) em Brasília para saber se tem conhecimento da situação nas terras indígenas do Acre, mas o órgão não se manifestou. O mesmo aconteceu com o Ministério Público Federal (MPF) no estado. A assessoria se limitou a dizer que a instituição sabe da existência do problema, mas que não existe nenhum procedimento oficial para apurá-la. A Superintendência da Polícia Federal também não respondeu aos questionamentos enviados.