Aldo Rebelo andava afastado da política. Candidatou-se ao Senado em 2022 pelo PDT de São Paulo, mas frustrou-se: terminou em sétimo lugar, com 230,8 mil votos (o eleito, Marcos Pontes, do PL, teve 10,7 milhões). O velho comunista concluiu que, aos 68 anos, era hora de voltar para Alagoas, seu estado de origem. Escolheu, no ano passado, um apartamento em Maceió para morar com a esposa, a jornalista Rita Polli. Calculou que viveria bem com a aposentadoria de deputado (21,4 mil reais líquidos) e eventuais colaborações com a imprensa. Queria, além de tudo, estar perto da mãe, que já tem 85 anos de idade. Mas todos os planos mudaram quando ele recebeu uma ligação.
“Eu disse ao Aldo: ‘Em vez de ir pra Alagoas, você deve ficar em São Paulo e integrar o secretariado do Ricardo [Nunes]. Você daria um tamanho especial pro governo’”, relembra o ex-presidente Michel Temer, que desde que deixou o Palácio do Planalto, em 2018, tornou-se um facilitador de todo tipo de costura política, transitando com desenvoltura entre as fileiras do bolsonarismo e do MDB. “Depois avisei ao Ricardo que o Aldo iria visitá-lo.”
Rebelo, segundo ele próprio recorda, disse que pensaria a respeito. Havia muito na balança: a mãe, a esposa, o sertão alagoano, por onde gosta de cavalgar. Mas era um cerco: depois de Temer, vieram o presidente do MDB, Baleia Rossi, o deputado federal Alceu Moreira (MDB-RS), o ex-deputado federal Carlos Marun (MDB-MS). Em questão de dias, todos telefonaram para Rebelo. Queriam que ele considerasse o convite e conversasse com Nunes.
Na posição de comunista dissidente (deixou o PCdoB em 2017), filiado a um partido de centro-esquerda (entrou para o PDT em 2022), amigado com o emedebismo (desde a juventude) e afinado com pautas da extrema direita (fato mais recente), Rebelo é uma peça particularmente ambígua da política nacional. Por isso interessava ao prefeito Ricardo Nunes (MDB-SP), figura do Centrão paulistano que, para se reeleger em outubro, quer atrair eleitores de esquerda ou indecisos sem melindrar, com isso, sua base de apoio bolsonarista.
“O Aldo ameniza essa coisa de que o Ricardo é o nome da direita”, atesta Temer. Depois de enviar emissários do MDB para falar em seu nome, o prefeito, enfim, ligou para Rebelo no final do ano passado e o convidou para uma conversa. “Só vou para São Paulo em fevereiro”, respondeu o pedetista, que estava passando férias em Alagoas. “Preciso conversar com você antes disso”, insistiu Nunes. Rebelo deu o braço a torcer. Na primeira semana de janeiro estava na capital paulista, tomando cafés com Temer, Rossi e Nunes.
Quando Marta Suplicy deixou a Secretaria de Relações Internacionais, filiando-se ao PT, Rebelo estava a postos para ocupar a vaga. Recebeu o convite formal de Nunes, aceitou, mas pediu um pouco mais de tempo para organizar sua vida pessoal. Em fevereiro, tomou posse numa cerimônia feita sob medida para passar um recado político. A “frente ampla” que Nunes sonha levar para a eleição se materializou na sede da Prefeitura. Além de Temer, estavam lá o senador bolsonarista Ciro Nogueira (PP-PI), o secretário de Governo e Relações Institucionais do estado de São Paulo, Gilberto Kassab (PSD), o governador de Alagoas, Paulo Dantas (MDB), o governador do Pará, Helder Barbalho (MDB), mais uma trupe de deputados e sindicalistas.
Rebelo e Nunes se conhecem há muitos anos. Conviveram no MDB nos estertores da ditadura. Rebelo, na época, era um líder em ascensão no PCdoB, partido que ainda era clandestino e funcionava dentro da única legenda de oposição aos militares. Nunes, por sua vez, era um jovem militante em Santo Amaro, distrito de São Paulo. Seguiram caminhos completamente diferentes na vida. Em Brasília, Rebelo presidiu a Câmara dos Deputados e assumiu quatro ministérios nos governos Lula e Dilma. Em São Paulo, Nunes era um vereador desconhecido que encampou a briga contra a chamada “ideologia de gênero”.
Hoje, as diferenças não são tão claras. Mais por iniciativa de Rebelo do que o contrário.
“A esquerda largou o nacionalismo no meio do caminho. Nós fazíamos passeatas com a bandeira do Brasil”, lamenta Aldo Rebelo, sentado numa cadeira em seu apartamento no bairro dos Jardins, Zona Oeste de São Paulo. O ex-ministro veste camisa e calça sociais com uma sandália de couro nordestina. Próximo à porta de entrada, fica pendurado o chapéu panamá que virou sua marca registrada. Há também uma pintura de um cavalo.
Rebelo diz que foi a esquerda que mudou, não ele. “A esquerda trocou a ideologia pela biologia. Pelos direitos individuais baseados nos traços biológicos”, continua. A crítica é recorrente entre socialistas históricos: a luta de classes, dizem, deu lugar à luta atomizada do identitarismo. Com o tempo, o ex-ministro foi se afastando das posições majoritárias do PCdoB. Concordavam na agenda geral do desenvolvimentismo, discordavam na forma de pô-la em prática. Rebelo tornou-se um dos principais críticos à demarcação de terras indígenas, na Câmara. Considerava a política indigenista uma trava ao desenvolvimento econômico, no que era apoiado pela bancada ruralista. Em 2009, propôs que novas demarcações tivessem de receber aval do Congresso. Nem todo comunista concordava.
“Eu respeito a história política de Aldo. Minha impressão é que ele acentuou ao longo de sua trajetória traços de nacionalismo que o impedem de compreender a complexidade do mundo de hoje”, comenta Orlando Silva (PCdoB-SP), deputado federal que tem uma trajetória similar à de Rebelo: ambos se formaram politicamente no PCdoB, presidiram a União Nacional dos Estudantes (UNE) e assumiram o Ministério dos Esportes durante os governos do PT. “Minha impressão é que Aldo foi um líder de esquerda, hoje não se posiciona assim”, continua Silva. “Direito dele.”
Rebelo foi deputado federal por sete mandatos consecutivos, entre 1991 e 2011. Por ter afinidades em comum – o vocabulário patriótico, a preocupação com a soberania na Amazônia, a rejeição à Comissão da Verdade –, aproximou-se dos militares. Quando Lula foi eleito pela primeira vez, o então deputado federal Jair Bolsonaro foi à Granja do Torto pedir ao presidente que nomeasse Rebelo para o Ministério da Defesa. “É uma pessoa que entende do assunto e tem grande respeito [nas Forças Armadas]”, justificou, na época.
“Trabalhamos mais de vinte anos na Comissão de Relações Exteriores e Defesa Nacional da Câmara. Viajamos muitas vezes pra Amazônia. A gente subia nos barcos da Marinha e dormia nos beliches”, lembra o ex-ministro, ao falar de Bolsonaro. Os dois, além disso, eventualmente jogavam futebol em amistosos com outros deputados. “A gente formava a dupla de defesa.”
Rebelo e Bolsonaro ainda são amigos e conversam regularmente pelo WhatsApp. A afinidade política se estreitou com o tempo. Não bastasse o apreço pelos militares, o pedetista se tornou um crítico dos dados de desmatamento no Brasil, que considera falseados (embora não apresente provas para refutar os levantamentos feitos pelo Inpe). Foi convidado a participar de um documentário da produtora de extrema direita Brasil Paralelo que nega a devastação da Amazônia. No ano passado, fez uma ponta na CPI das ONGs, no Congresso, onde denunciou que o terceiro setor formou um “Estado paralelo” na floresta.
Em fevereiro, Bolsonaro compartilhou no X (antigo Twitter) um vídeo do amigo – trajado de chapéu panamá – negando que tenha havido tentativa de golpe de Estado depois da vitória de Lula, em 2022. “Até o ex-ministro da Dilma sabe que não teve golpe”, diz a legenda.
Rebelo pensa que, como o golpe de Estado não se consumou, não há por que punir os envolvidos. “Qual foi o apoio institucional? Quantos governadores apoiaram o golpe? Em 1964, os principais apoiavam e teve apoio da Igreja Católica. Que embaixada apoiou? Que setor da mídia? Em 1964 a nata da mídia apoiava o golpe. Em 1964 teve apoio financeiro de São Paulo”, enumerou o ex-ministro, com o tom de voz ligeiramente exaltado.
o sindicalista Antônio Neto, presidente municipal do PDT de São Paulo e membro da Executiva Nacional do partido, diz que Aldo Rebelo é muito “ele mesmo”. Uma reclamação quase carinhosa. Um dirigente do PCdoB, que pede para não ser identificado para não se indispor com o amigo de longa data, faz uma análise parecida. “O partido do Aldo é ele próprio. Sempre foi. Ele tem uma formação que não é propriamente marxista. É um patriota. Um homem de talento político. De caráter, retidão e espírito sertanejo, de vaqueiro.”
No PDT, a nomeação de Rebelo para a Prefeitura de São Paulo causou perplexidade, sobretudo porque, em seguida, o ex-ministro passou a ser cotado como possível vice na chapa de Ricardo Nunes. A perplexidade tem razões não apenas ideológicas: o PDT, que tem um ministro no governo Lula (Carlos Lupi, da Previdência Social), apoia oficialmente o deputado Guilherme Boulos (Psol) na disputa pela prefeitura. “Gosto do Aldo como pessoa”, continua Neto. “Mas politicamente estamos muito distantes. Ele não discutiu com o partido sua ida para a prefeitura e reclamou do apoio ao Boulos.” Segundo ele, o partido não cogita expulsar o ex-ministro, por enquanto. “Ele não tem cargo no PDT. Nem militante é. Depois das eleições vamos discutir essa situação. Ele não constrange o PDT. Quem fica constrangido é ele.”
Rebelo diz que avisou, sim, o partido sobre sua adesão ao governo de Nunes, e lamenta a posição do PDT. “O Boulos eu conheci chamando o PT de corrupto e no movimento ‘Não vai ter Copa’. Ele queria o lugar do PT na esquerda. Eu fiquei com a presidente Dilma até o fim do mandato dela. A vice dele [Marta Suplicy] apoiou o impeachment. Que conversa é essa pra cima de mim? Defendo a Dilma até hoje como pessoa correta e honesta.”
O mesmo vale para Lula, acrescenta Rebelo. No primeiro turno da eleição de 2022, contudo, ele diz ter votado em Ciro Gomes (PDT-CE), seu correligionário. E no segundo turno? “Nem lembro se votei.”
*Versão anterior da reportagem informava que Aldo Rebelo recebeu 63 mil votos na eleição para o Senado em 2022. O número correto é 230,8 mil votos. A informação foi corrigida às 19h40 de 25/03/2024.