Em 23 de outubro de 2022, Alexandre de Moraes autorizou a prisão de Roberto Jefferson. Mas quando os policiais chegaram à casa do ex-deputado, no Rio, foram recebidos a tiros de fuzil e granada. Como Alexandre lidou com figuras como Jefferson, Carla Zambelli e Daniel Silveira? Este episódio conta os movimentos do presidente do Tribunal Superior Eleitoral às vésperas do segundo turno.
Acompanhe aqui a transcrição do episódio:
ALEXANDRE
Thais Bilenky: Faltava exatamente uma semana pro segundo turno. Roberto Jefferson estava em casa, em Comendador Levy Gasparian, uma cidadezinha na fronteira do Rio, quase em Minas. Ele tava sentado na cama do quarto, falando no telefone, quando viu pelas câmeras de segurança, uma movimentação no portão.
[Roberto Jefferson]: Eu quero mostrar a vocês, ó. Chegou a Polícia Federal aqui para me prender agora, ó.
Thais Bilenky: A Polícia Federal tinha chegado por ordem dele.
[Roberto Jefferson]: As violências do Xandão
Thais Bilenky: Alexandre de Moraes. Jefferson pegou o celular e filmou os policiais na TV do circuito interno e mandou tudo para as redes, em tempo real.
[Roberto Jefferson]: Querem nos cercear, querem nos esmagar, querem nos prender. E eu não vou me entregar! Estou mostrando a vocês que eles acabaram de chegar. É luta!
Thais Bilenky: Esse embate de Alexandre com o ex-deputado federal e manda chuva do PTB não tinha começado ali. Jefferson tinha sido preso pouco mais de um ano antes, em agosto de 2021, por ordem de Alexandre. Motivo? Atentar contra as instituições e atacar ministros do Supremo. A decisão veio dentro do inquérito das milícias digitais, uma das investigações abertas pelo Supremo e relatadas por Alexandre.
Jefferson passou seis meses na cadeia, em Bangu. Em janeiro de 2022, o ministro acabou aceitando mandá-lo para casa, a pedido da defesa, que alegou motivos de saúde. Jefferson saiu do presídio para cumprir prisão domiciliar. Mas não fez a parte dele: deu entrevista, usou rede social para disparar fakenews, e mandou e desmandou no partido que ele controla, apesar de estar proibido de exercer atividade política.
Ou seja, ele violou várias e reiteradas vezes as ordens de Alexandre. A gota d’água veio a oito dias do segundo turno das eleições. Foi um vídeo publicado na noite de sexta feira: Jefferson ofendeu feio a ministra do Supremo Carmen Lúcia.
[Roberto Jefferson]: Deus me livre dessa mulher que está aí nessa latrina que é o Tribunal Superior Eleitoral.
Thais Bilenky: Alexandre primeiro soltou uma nota de repúdio ao que chamou de: “agressão covarde à colega do Supremo”. Depois, acionou a polícia federal, para que os agentes de plantão no Rio ficassem de sobreaviso. Não é comum, no Brasil, a justiça mandar prender gente no final de semana, a menos que seja em flagrante. E o contexto, no caso de Jefferson, era ainda mais complicado: a partir de terça-feira, seria proibido prender qualquer eleitor no país. A lei veda prisão nos cinco dias anteriores à uma eleição, exceção, de novo, para os casos em flagrante. Jefferson queria ganhar tempo: soltou os cachorros nas redes justamente na sexta a noite, acreditando que a PF só ia chegar na segunda. Aí, se ele conseguisse enrolar até meia noite, a partir do primeiro minuto de terça feira, estava blindado e não ia poder ir para a cadeia.
A partir de terça-feira seria proibido qualquer eleitor no país. A lei veda a prisão nos cinco dias anteriores à uma eleição. Exceção, de novo, para os casos em flagrante. Jefferson queria ganhar tempo. Soltou os cachorros nas redes justamente na sexta à noite, acreditando que a PF só ia chegar na segunda. Aí, se ele conseguisse enrolar até meia noite, a partir do primeiro minuto de terça feira, estava blindado e não ia poder ir para a cadeia.
Às oito da manhã do domingo, quatro policiais federais se encontraram no Rio, esperaram chegar o mandato de prisão preventiva de Brasília e saíram de carro, em direção à casa de Jefferson no interior. Jefferson tinha feito da própria casa um bunker. Construiu um muro alto na frente. Chegando lá, um dos policiais desceu do carro, viu a tranca com com cadeado e tocou o interfone. Ninguém atendeu. Ele pulou o muro e caminhou alguns metros até a porta da casa, tocou a campainha e a esposa do Jefferson avisou gritando: “vai embora! Vai embora que vai dar merda.”
Jefferson vigiava tudo da varanda do segundo andar. Viu os policiais só com pistolas, nem colete à prova de balas eles estavam usando. Achou pouco e foi para cima. Da sacada apareceu aos berros: “não vou me entregar! De jeito nenhum!”. Em seguida, em um gesto brusco, tirou o pino e atirou uma granada na viatura, depois sacou um fuzil escondido atrás do parapeito e começou a disparar. Foram cinquenta tiros e três granadas.
A única agente mulher da operação foi atingida por estilhaços de bala na bacia, na testa, nas pernas e nos braços. Ela sangrou muito, avisou que estava ferida e desmaiou. Enquanto um dos policiais corria para acudi-la, o outro retaliou, atirando em direção a Jefferson para fazer o político parar. Aí, esse policial que estava atirando também foi atingido por estilhaços na cabeça e caiu ferido. Ou seja, dos quatro agentes da operação o que pulou o muro estava tentando voltar, dois estavam machucados e o quarto tentava, sozinho, controlar a situação. Foi praticamente um strike.
Apareceu, então um cunhado do Jefferson que, acredite se quiser, se ofereceu para levar os policiais feridos para o pronto socorro. Os dois agentes que ficaram na casa precisavam evitar que alguém entrasse ou saísse de lá enquanto esperavam reforço. Nesse momento de trégua, Jefferson pegou o celular e filmou de novo a TV do seu quarto com as imagens da viatura fuzilada.
[Roberto Jefferson]: Estou dentro de casa, mas eles estão me cercando. Vai piorar. Vai piorar muito. Vou cair de pé, como homem que sou. Sou líder. Vou embora, mas deixo plantado o meu exemplo. Não se entreguem ao Xandão. Não se entreguem.
Thais Bilenky: Os policiais tinham começado a operação ao meio dia. Lá pelas duas da tarde, um agente da polícia federal conseguiu entrar na casa para negociar a rendição. Jefferson dizia que só ia sair de lá se fosse direto para o cemitério. A esposa dele tentava convencer o marido de que ele ia se dar mal atacando a polícia.
[Roberto Jefferson]: Não dá para acreditar. Esses caras me tratando desse jeito… Não pode.
[Esposa de Roberto Jefferson]: Vê um calmante para ele! Carla, Faz um calmante e dá para ele!
[Roberto Jefferson]: Lutem! Para a nossa bandeira estar no topo do mundo!
Thais Bilenky: Depois de muita conversa, Jefferson se acalmou e a negociação avançou. O político passou então a pedir a presença do ministro da Justiça Anderson Torres, um bolsonarista de carteirinha. O ministro da Justiça faz parte do poder executivo, subordinado ao presidente da república. Exigir a presença dele ali era meio que uma cartada final do Jefferson, que acabaria arrastando Bolsonaro para mais um duelo com Alexandre. Bolsonaro acatou o pedido de Jefferson, mandou Torres até lá para negociar, junto com o diretor geral da Polícia Federal. Os dois pegaram um avião da Força Aérea Brasileira, bancado com dinheiro público, rumo à casa de Jefferson.
O absurdo da cena foi transmitido ao vivo para todo o país: nas TVs, nos jornais, nas redes sociais, todo mundo começou a criticar o tratamento VIP e a rendição de luxo. Jefferson, em prisão domiciliar, tinha simplesmente jogado granadas e tentado fuzilar policiais federais.
[Band – Joel Datena]: Ele utilizou um armamento bélico de altíssima precisão! Você viu quantos disparos ali, Dias?
[Band – Thaís Dias]: Um armamento pesadíssimo, Joel!
Thais Bilenky: Bolsonaro, então, se deu conta do estrago. Se arrependeu, e mandou o ministro da Justiça e o diretor da PF darem meia volta. A essa altura, na rua, do lado de fora do portão da casa do Jefferson, um monte de bolsonaristas estava aglomerado para hostilizar as autoridades. Os agentes foram ficando inquietos. A Polícia Militar tinha chegado para dar reforço e já queria invadir. O governador do Rio, Cláudio Castro, o chefe máximo da corporação foi acionado, mas mandou a tropa esperar. O que aconteceu a seguir não veio a público, até agora.
Castro passou a mão no telefone. Chamou Alexandre de Moraes. O governador disse que a PM estava à disposição do ministro. Alexandre respondeu que tinha determinado a prisão, mas que a polícia procedesse como achasse melhor. Juntos, Alexandre e o governador calcularam que se a polícia invadisse, Jefferson podia revidar. E se ele acabasse morto, podia virar herói do bolsonarismo. Alexandre bancou: Jefferson não ia matar, nem morrer, ele ia se entregar. Alexandre teve uma ideia para forçar Jefferson a se render. Muito melhor do que invadir a casa, era cortar água e luz. Sem energia elétrica, não daria nem para carregar o celular. Dito e feito.
Lá para as sete da noite, já escuro, Jefferson cedeu. Fez o que disse que não faria e se rendeu. Na delegacia, pediu desculpas aos policiais, disse que não queria atingir os agentes, só a viatura. E que, na verdade, o problema dele era com uma só pessoa.
[Roberto Jefferson]: O cachorro do Supremo, o Xandão! Xandão.
Thais Bilenky: Esse é o Alexandre. Um podcast original da Trovão Mídia em parceria com a revista piauí.
Eu sou Thais Bilenky, repórter da revista piauí e apresentadora do Foro de Teresina. Eu fiquei na cola do Alexandre de Moraes nesses últimos meses. Conversei com alguns dos principais nomes da política nacional para tentar entender quem é o homem que recebeu uma espécie de carta branca para garantir a democracia no país. Agora, nessa série, eu conto tudo o que descobri nos bastidores de Brasília.
Episódio 3: O Xerife
O processo eleitoral de 2022 foi tiro, porrada e bomba. Alexandre teve que pôr para jogo tudo o que aprendeu na carreira de promotor, político, chefe de polícia e ministro do Supremo. Alguns dias depois da cena que culminou com a prisão de Roberto Jefferson, foi a vez de outra bolsonarista extremada causar. Era véspera do segundo turno.
[CNN – repórter]: Tem uma resolução do TSE de que você não pode portar arma um dia antes da eleição. Como que a senhora avalia…
[CNN – Carla Zambelli]: Eu não respeito resolução ilegal. Eu tenho porte de arma e o bandido não vai respeitar resolução do TSE.
Thais Bilenky: Essa é Carla Zambelli. Uma deputada federal que virou VIP em Brasília por ser leal e obediente a Bolsonaro. Zambelli era considerada um ativo para o ex-presidente tanto para mobilizar o povo nas ruas e nas redes, como também para propagar teses infundadas de fraude nas urnas, que ajudariam a confundir o eleitor.
[Carla Zambelli]: Eu recebi vários vídeos de denúncia, eu fui contactada por várias pessoas, especialistas em urnas eletrônicas, que disseram que vai haver fraude. Eu gostaria de dizer para vocês que no primeiro turno já houve fraude.
Thais Bilenky: Tudo corria como planejado, na mais perfeita desordem. Ela se reelegeu como deputada com quase 1 milhão de votos no dia 2 de outubro e seguiu em campanha por Bolsonaro no segundo turno. No sábado, véspera da votação, escorregou. Zambelli estava andando pelos Jardins, bairro rico e central de São Paulo, perto da avenida Paulista. A poucas quadras dali, Lula fazia uma última caminhada antes da eleição.
Eu estava cobrindo esse ato petista, quando um amigo jornalista me mostrou no celular, incrédulo, a cena que tinha acabado de acontecer.
[sonora]
[Voz masculina não identificada]: É a Zambelli, é a Zambelli. Carla Zambelli, ó gente, armada. Ameaçando uma pessoa aqui, ó, com a arma.
Thais Bilenky: Zambelli entrou em uma discussão com um eleitor de Lula, um homem negro que estava de pé em uma calçada. Não gostou do que ouviu, e foi para cima do cara, com uma arma em punho. Um segurança de Zambelli também saiu correndo com a arma nas mãos apontada para o homem. O cara acelerou, atravessou a rua, ela correu atrás e o segurança deu um tiro, que não atingiu ninguém.
[Carla Zambelli]: Deita no chão
[Voz masculina não identificada]: Você quer me matar, mano?
Thais Bilenky: À luz do dia, uma deputada federal saiu correndo com uma arma na mão, no meio da rua, por desavença política. E ainda tinha um agravante: Alexandre tinha vetado porte de arma naquelas 24 horas antes da eleição. Justamente para evitar cenas de faroeste como aquela. Zambelli afrontou a ordem e, quando questionada, alegou legítima defesa. Disse que tinha sido agredida. Os vários ângulos da cena, gravados pelas pessoas que estavam em volta, mostraram que não. Zambelli tinha ido para cima do cara que só fez fugir, da deputada e dos seus seguranças.
[Globonews – Natuza Nery]: Assim, não tem, já passando para você, Demétrio, não dá para ter um olhar benevolente aí nessa história.
[Globonews – Demétrio Magnoli]: Isso dá prisão em flagrante, ela é uma ameaça à segurança pública, o que ela fez é um crime continuado.
Thais Bilenky: O estrago estava feito. Aquela cena, somada à de Jefferson na semana anterior, era demais até para os eleitores dispostos a votar em Bolsonaro. A ressaca foi grande: Bolsonaro passou a evitar Zambelli e chegou a discutir com ela em um jantar semanas depois. A deputada que era VIP ficou sem lugar naquela barca furada e foi atirada ao mar. Sem lugar, sem armas e sem voz.
Primeiro, o Supremo determinou uma investigação que, depois de alguns meses, suspendeu o porte de arma de fogo da Zambelli. Na sequência, Alexandre tirou o alto-falante da deputada: mandou suspender a conta dela em todas as redes – quase 9 milhões de seguidores somados.
[Carla Zambelli]: Dia 1º de janeiro, senhores generais quatro estrelas, vocês vão querer prestar continência a um bandido ou à nação brasileira?
Thais Bilenky: Zambelli ainda tentou driblar Alexandre. Criou uma conta nova no Instagram e publicou esse vídeo incitando o Exército a dar um golpe de Estado.
[Carla Zambelli]: De que lado da história vocês vão ficar? Salvem as nossas almas. Diante dos quartéis generais.
Thais Bilenky: Só que, nesse momento, já eram novos tempos no Brasil. Lula ainda não tinha tomado posse, mas o poder já tinha mudado de eixo. Alexandre já tinha bloqueado a conta de vários outros golpistas, e a cadeia de comando das redes bolsonaristas estava toda combalida.
O pastor Silas Malafaia, uma das vozes mais fiéis ao ex-presidente, deu um pito em Zambelli. O clima era ruim. Resultado: a deputada tomou chá de sumiço. Foi para os Estados Unidos, depois foi para Europa, passou dezembro fora do Brasil, voltou e, no segundo dia útil de 2023, veio a batida na porta.
[Carla Zambelli]: Apesar de ter entregue espontaneamente minha G3C 9mm, eles levaram também agora minha 380 Taurus, uma Ruger 9 milímetros e uma arma de coleção 38 que eu tinha.
Thais Bilenky: A Polícia Federal entrou na casa de Zambelli para pegar armas. Ela tinha escondido três delas na primeira apreensão, no ano anterior. A procuradoria denunciou ela por porte ilegal.
[Carla Zambelli]: Eu quero pedir apoio de todos vocês, saibam de uma coisa: nós não vamos desistir do nosso Brasil. Resistam, persistam. Não desistam.
Thais Bilenky: A saúde sentiu. A deputada teve crise de fibromialgia, úlcera gástrica. Ficou sem a rede de proteção bolsonarista. Sozinha contra Alexandre. E aí ela fez o que disse que não faria.
Deu uma entrevista à Folha de São Paulo, no final de fevereiro de 2023, em outro tom. Disse que agora não era mais hora de bater no Supremo, que em muitas noites foi dormir achando que ia ser presa ao acordar. Ligou e mandou e-mail para o gabinete de Alexandre sinalizando trégua. Ele devolveu as redes sociais dela e, desde então, ela é uma outra Zambelli.
Durante o mandato do Bolsonaro na Presidência, eu falei várias vezes com a deputada. Ela era acessível, contava caso, se posicionava. Agora mudou: aquela voz extrema que pedia golpe, silenciou. O mais recente lance desse embate foi em agosto de 2023. A Polícia Federal fez mais uma busca e apreensão na casa de Zambelli. Reteve armas e o passaporte dela.
[Carla Zambelli]: Eu sou uma deputada séria. Eu sei do que é certo e do que é errado.
Thais Bilenky: No mesmo dia, a PF prendeu um hacker que disse ter recebido 13 mil reais de Zambelli para forjar um mandado de prisão contra Alexandre. Zambelli negou.
[Carla Zambelli]: Não participaria de uma piada de mau gosto com o Alexandre de Moraes. Eu sei o que pode acontecer com um deputado que brinca com ministros do Supremo Tribunal Federal.
Thais Bilenky: Mas ninguém faz o que Alexandre faz sozinho. No ringue político, para entrar nessas brigas e sair ganhando é preciso apoio. Teve uma pessoa em particular que ajudou Alexandre, involuntariamente, nessa tarefa de construir uma frente de batalha: Jair Bolsonaro. No Supremo tinha ministro que passava reto pelo outro, nem se cumprimentavam. Teve uma briga épica entre Luís Roberto Barroso e Gilmar Mendes que foi inesquecível.
[Luís Roberto Barroso]: Mau sentimento. Você é uma pessoa horrível, uma mistura do mal com o atraso e pitadas de psicopatia.
Thais Bilenky: Mas, quando Bolsonaro tomou posse, tudo mudou. O Supremo se uniu, porque os ministros viraram vítimas de constantes ataques do presidente da República. E, aos poucos, alinharam decisões coletivas para respaldar Alexandre.
À medida que a eleição de 2022 se aproximava, Alexandre, já como presidente do TSE, sabia que era urgente ter ainda mais apoio, para além do Supremo e do Judiciário. Estabeleceu contato direto com gente importante no Senado, na Câmara, no Tribunal de Contas da União, e mesmo no governo. E na sociedade civil também: na OAB, na Febraban, grandes empresários, banqueiros, intelectuais e jornalistas.
Uma fonte com quem conversei definiu esse esforço como: “uma rede de blindagem institucional da democracia brasileira”. Alexandre trocava mensagens com frequência e se encontrava pessoalmente com esses atores. Ele ganhou uma espécie de carta branca, da esquerda à direita no establishment político, para enfrentar o golpismo bolsonarista. Uma carta branca que, na época, foi criticada por alguns e hoje por muitos, mas isso é assunto para um outro capítulo.
Fato é que no processo eleitoral cada um já sabia o que tinha que fazer dentro do seu quadrado para não deixar o TSE sozinho no front de batalha. A cada ataque de figuras como Jefferson ou Zambelli, Alexandre respondia rápido e encontrava apoio no debate público. Mas, tinha um furo na tal rede de blindagem da democracia. Uma pessoa que destoava: o presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira.
Eu vou pedir licença agora para voltar um pouquinho no tempo. Arthur Lira assumiu o comando da Câmara em fevereiro de 2021 e selou uma aliança absolutamente pragmática com Bolsonaro. O presidente da República abriu o cofre: entregou para os congressistas um controle inédito do Orçamento Público, o famoso Orçamento Secreto. Em troca, Lira garantiu governabilidade, voto para as medidas mais essenciais e um apoio tácito na disputa entre Poderes. Como assim? Assim: Bolsonaro atacava o Supremo. Todo mundo criticava. Lira se calava.
[Arthur Lira]: Eu sou o presidente da Câmara dos Deputados. E não comentarista político.
Thais Bilenky: Lira queria posar de ponte entre Bolsonaro e os seus adversários, mas deixava rolar a tensão. Eis que, depois de 15 dias como presidente da Câmara, Lira se deparou com cenas explícitas de bolsonarismo: o deputado Daniel Silveira foi preso em flagrante em Petrópolis, no Rio. Ordem de Alexandre.
Daniel Silveira tinha feito apologia ao AI-5, o ato institucional que endureceu a repressão da ditadura militar. Essa fala do Daniel Silveira foi um aceno bem direto e reto a golpe de Estado. Silveira ainda xingou os ministros do Supremo.
[Daniel Silveira]: Totalmente esvaziados, totalmente inócuos, totalmente oligofrênicos. Ignóbeis, é o que vocês são.
[Thais Bilenky]: Agora deixa eu te contar uma história sobre essa figura. Dois anos antes desse vídeo, eu tomei café da manhã com Silveira, no apartamento funcional dele, em Brasília. Me chocou o tal do bulletproof coffee que ele tomava, traduzindo: café à prova de bala, uma bebida feita de café batido com manteiga sem sal, óleo de coco e canela.
Ele tem 1 metro e 90, 115 quilos, careca lustrada tipo Xandão. Ex-PM punido por mau comportamento, sorria ao dizer que já tinha matado vários. Passei um dia inteiro com Silveira na Câmara, vi ele escapar do expediente para fazer compras no shopping e à noite ainda acompanhei o deputado puxar ferro na academia. Ele mandava umas assim:
[Daniel Silveira]: Eu não furo uma fila no trânsito, eu não gosto. Por que alguém acha que pode fazer isso?
Thais Bilenky: No carro, meia hora depois, ele mandou o motorista fazer uma manobra proibida para fugir do trânsito. Mas, voltando ao assunto, depois da defesa do AI-5, Alexandre, que era relator do inquérito das fake news e já estava bem de olho nos excessos bolsonaristas, mandou prender o deputado. No dia seguinte, os outros dez ministros do Supremo validaram a decisão. E, em seguida, a Câmara aprovou a prisão. Mas Lira mandou também um recado para o Supremo:
[G1 – Arthur Lira]: Como temos que tocar no assunto muito claro sobre prisão de parlamentar e decisão monocrática. Entre outros assuntos…
Thais Bilenky: Traduzindo o politiquês, Lira estava falando mais ou menos assim: “não achem que podem sair prendendo deputado com canetada. Se for decisão de um ministro sozinho então, Senhor Alexandre de Moraes, aí é que a gente não vai aceitar mesmo”.
Silveira ficou preso por um mês, até que Alexandre mandou o deputado cumprir pena em casa. Fora da prisão, ele tirou a tornozeleira eletrônica várias vezes, deixou a bateria acabar e circulou fora da área permitida. Aí, foi mandado de volta para a cadeia, saiu, voltou e saiu de novo. Na tribuna da Câmara, no mesmo plenário onde Lira disse que não ia tolerar atitudes como aquelas, Silveira afrontou Alexandre. Várias vezes.
[Daniel Silveira]: O ministro Alexandre de Moraes, o sujeito medíocre, que desonra o STF adotou medidas protetivas contra este parlamentar.
[Daniel Silveira]: Aqui eu falo em tribuna: não será acatada a ordem do Alexandre de Moraes enquanto não deliberar pela Casa. Quem decide isso são os deputados. Alexandre, cumpra a Constituição.
Thais Bilenky: Foi quase um ano desse embate. No começo de 2022, Alexandre mandou Silveira botar a tornozeleira pela milésima vez. E o deputado, que já era réu no Supremo, disse que não ia botar coisa nenhuma. Levou um travesseiro para o gabinete e dormiu na Câmara, dizendo que lá ninguém podia tocar nele.
As atenções todas se voltaram para Lira. O presidente da Câmara ia ficar do lado de quem? De Alexandre ou do radical? Alexandre e Lira tiveram uma conversa dura no telefone. Não veio a público, mas eu descobri, e te conto.
O presidente da Câmara argumentou que mandar a polícia botar tornozeleira em Silveira, dentro da Casa, era armar o circo que ele queria. Silveira estava criando a cena para acusar Alexandre de não respeitar a independência do Poder Legislativo. Alexandre então mandou Lira marcar uma data com Silveira para botar a tornozeleira. Lira disse que não, não queria se submeter ao ministro naquele duelo, disse que ia mandar Silveira se apresentar à polícia e pressionou o ministro para o Supremo julgar Silveira de uma vez por todas em plenário, em vez de ficar à mercê das decisões individuais de Alexandre.
Naquele momento, Silveira representava o enfrentamento do bolsonarismo à Justiça. E ele não estava mais sozinho, como na primeira prisão, um ano antes. Agora, a família Bolsonaro e expoentes do grupo, tipo Carla Zambelli, estavam lá, prestando solidariedade ao deputado. Chegaram a aparecer com travesseiro na Câmara para fazer companhia para o migo.
Lira só não foi mais duro com Alexandre, porque não queria perder o controle sobre o Orçamento Secreto, que estava pendente de julgamento no Supremo. Então, a medida que Lira tomou publicamente foi soltar uma nota.
[Globonews – Camila Bonfim]: A gente já tem até aqui na nossa tela inclusive, ó, o que disse Artur Lira, ele disse o seguinte: “sou o guardião da sua inviolabilidade. Não vamos cair na armadilha de tensionar o debate para dar palanque aos que buscam holofote”. E ele termina dizendo: “seria desejável que o Plenário do STF examinasse esses pedidos do deputado Daniel Silveira o mais rápido possível, e que a Justiça siga a partir dessa decisão final da nossa Corte Suprema.”
Thais Bilenky: Ele, em resumo, disse que ninguém podia ser abordado pela polícia dentro da Câmara, mas também criticou o circo que o deputado estava fazendo. O Supremo julgou Silveira. Com exceção de Kassio Nunes Marques, indicado por Bolsonaro, os outros nove ministros seguiram o voto de Alexandre e condenaram o deputado a oito anos de prisão em regime fechado, perda de mandato, suspensão dos direitos políticos e multa de 200 mil reais.
No dia seguinte à condenação, seguinte mesmo, no meio do feriado de Tiradentes, Bolsonaro tirou uma carta da manga: concedeu graça constitucional ao deputado. Um perdão da pena, ao qual o presidente da República tem direito. O costume dos presidentes anteriores era dar esse perdão de forma coletiva, em época de Natal, para presos que já tivessem cumprido algum período da pena, conhecido como indulto. Nunca ninguém antes tinha perdoado a pena de um só condenado, muito menos um aliado político. Era grave.
[Bolsonaro]: Artigo primeiro: fica concedida graça constitucional a Daniel Lúcio da Silveira, deputado federal, condenado pelo Supremo Tribunal Federal…
Thais Bilenky: Bolsonaro foi ousado: com essa medida, ele estava desrespeitando uma decisão do Supremo, órgão máximo da Justiça brasileira. Estava batendo de frente com Alexandre, exatamente como prometeu fazer inúmeras vezes nos anos anteriores. Silveira até se lançou ao Senado, com apoio do Bolsonaro, mas não conseguiu se eleger e, a rigor, nem poderia, porque os seus direitos políticos estavam cassados.
Resumo: quando o ano virou, em 2023, acabou o mandato de deputado federal do Silveira. E no dia seguinte, seguinte mesmo, veio a batida na porta. Alexandre mandou prender o homem. Argumentou que, para variar, ele não respeitava as regras impostas pelo Supremo, danificou a tornozeleira, continuava usando rede social e atacava o sistema eleitoral com fake news.
Um assessor de Alexandre comentou com ele: “Ministro, o senhor não perde tempo”. Alexandre riu. Daniel Silveira foi parar em Bangu 8. Junto com o outro bolsonarista: Roberto Jefferson.
No mesmo dia da prisão de Silveira, veio a público uma história que tinha acontecido com ele dois meses antes. Silveira tinha tentado armar uma arapuca para Alexandre ser expulso do TSE, e as eleições serem anuladas. Segundo um senador chamado Marcos do Val, Silveira e Bolsonaro pediram para o senador cumprir uma missão: marcar uma reunião com Alexandre e levar um gravador escondido.
A ideia era pegar alguma declaração comprometedora do ministro. Inicialmente, Do Val disse que o próprio Bolsonaro pressionou para ele topar a empreitada. Depois, isentou Bolsonaro. Do Val, no fim, foi até Alexandre, ainda em dezembro de 2022. Mas, em vez de grampear o ministro, ele contou o plano. Alexandre mandou ele delatar o caso oficialmente. Do Val não quis, e sua palavra caiu em descrédito. O ato final entre Silveira e Alexandre aconteceu agora, em maio de 2023. O Supremo respaldou o ministro: derrubou de vez a graça que tinha sido concedida por Bolsonaro a Silveira. Só os ministros André Mendonça e Kassio Nunes Marques, indicados pelo ex-presidente, votaram a favor de anular a condenação. Silveira continuou na cadeia.
Um por um, Alexandre enquadrou bolsonaristas: Jefferson, Zambelli, Silveira e quetais. Mas nem só de deputado marombado e extremista com arma de fogo na mão vive o bolsonarismo. O cerco de Alexandre vai alcançar também uma turma que não estava tão acostumada assim com batida policial.
[Jornal Nacional – Carlos Nascimento]: O Ministro do STF, Alexandre de Moraes, atendeu a um pedido da Polícia Federal e autorizou busca e apreensão em endereços de oito empresários bolsonaristas.
Thais Bilenky: E depois, Alexandre vai bater de frente com os figurões da política, e com os militares de alta patente, que respaldavam o capitão Bolsonaro. Como o General Hamilton Mourão.
[Hamilton Mourão]: Hoje, nós estamos no limite ali de uma ditadura da toga.
Thais Bilenky: No próximo episódio, te falo desse embate. E conto também dos tropeços e excessos de Alexandre.
Alexandre é um podcast original da Trovão Mídia e da revista Piauí. Eu sou Thais Bilenky e fiz a reportagem e o roteiro. Alexandre está disponível na sua plataforma de áudio preferida. Se você gostou, não deixa de seguir, dar 5 estrelas e comentar o episódio no Spotify. Assinar no Apple Podcasts. Favoritar na Deezer. Também dá pra seguir a gente no Amazon Music, se inscrever no Google Podcast ou no Castbox e assim, você recebe uma notificação sempre que tiver um novo episódio.A direção geral e o tratamento de roteiro são da Ana Bonomi e do José Orenstein. A produção executiva é da Ana Bonomi, José Orenstein e Mari Faria. Assistência de produção da Ana Azevedo. A trilha sonora original, é do Arthur Decloedt. A finalização é da Phonocórtex. Checagem feita por João Felipe Carvalho. Gravado no estúdio Nanuk e no Trampolim, em São Paulo. Esse episódio usou áudios de O Globo, O Povo Online, Poder360, CNN Brasil, UOL, facebook oficial da Carla Zambelli, GloboNews, Revista Fórum, Gazeta do Povo, G1, Jovem Pan News, canal do youtube do Ministério Público Federal, Band e Estadão.