Em 22 de junho de 2023, Alexandre de Moraes deu início ao julgamento de Jair Bolsonaro. O ex-presidente da República era acusado de abuso de poder político em sua campanha pela reeleição no ano anterior. Este episódio, o último do podcast, traz os bastidores desse julgamento que acabou tornando Bolsonaro inelegível. E conta como Alexandre, entre apoios e agressões, se movimenta na nova geografia do poder um ano após ter assumido a presidência do Tribunal Superior Eleitoral.
ALEXANDRE
[Thais Bilenky]: Em abril de 2023, o presidente do Tribunal Superior Eleitoral, Alexandre de Moraes, tinha 16 ações contra Jair Bolsonaro na sua mesa. Alexandre pretendia marcar o julgamento de uma delas para aquele mesmo mês. A ideia era que o ministro do Supremo e do TSE Ricardo Lewandowski participasse do julgamento antes de se aposentar, em maio.
Mas, Lewandowski antecipou sua saída para abril e a vaga dele no TSE foi ocupada por Kassio Nunes Marques.
[Record News – Ricardo Lewandowski]: Esta minha antecipação se deve a compromissos acadêmicos e profissionais que me aguardam. E eu agora encerro um ciclo da minha vida e vou iniciar um novo ciclo.
[Thais Bilenky]: Assim, dos sete ministros do TSE, quatro eram próximos do ex-presidente. Mas, dois desses ministros também estavam de saída do TSE. Seus mandatos acabariam em meados de maio. Chegou maio, eles saíram, e uma semana depois, numa quarta-feira, às 10 horas da manhã, o ministro da Justiça, Flávio Dino, foi ao Palácio do Planalto se reunir com Lula.
Dino levou uma lista com nomes para o TSE. O presidente da República é quem escolhe os ministros dos tribunais superiores. Dino disse a Lula que já tinha falado com Alexandre. O presidente do TSE tinha pedido as duas vagas que estavam em aberto para pessoas próximas a ele.
Os dois professores na USP, como Alexandre: eram André Ramos Tavares e Floriano de Azevedo Marques. Dino sugeriu que Lula falasse com Alexandre pessoalmente. O gabinete da Presidência, então, telefonou para o ministro às 11 horas da manhã convidando para um almoço dali a duas horas.
Alexandre foi recebido a sós por Lula no Palácio do Planalto. Do almoço, o ministro foi direto para o Supremo. E horas depois, no meio da sessão plenária, anunciou, ele mesmo, a escolha dos nomes para o TSE.
[Uol – Alexandre de Moraes]: Eu gostaria de tomar a liberdade, consultei Vossa Excelência antes, de informar à Corte que o presidente da República já nomeou os dois juízes para o Tribunal Superior Eleitoral.
[Thais Bilenky]: André Ramos Tavares e Floriano de Azevedo Marques foram os escolhidos.
[Uol – Alexandre de Moraes]: Em nome da Justiça Eleitoral, eu quero agradecer ao presidente da República pela celeridade nessa nomeação, até para que nós possamos continuar a prestação de serviços normais na Justiça Eleitoral.
[Thais Bilenky]: Doze dias depois, Alexandre pautou o julgamento que tiraria Bolsonaro das próximas eleições. A convergência entre Alexandre e Lula é recente. Os dois são corinthianos roxos: é só falar do último jogo no Itaquerão que fica fácil quebrar o gelo. Até a eleição de 2022, era um telefonema ou outro, uma relação protocolar. Depois de outubro, eles tiveram alguns encontros em cerimônias públicas. Mas, às vésperas da posse de Lula, em dezembro, a relação se estreitou.
Alexandre de Moraes recebeu o presidente eleito para um jantar na sua casa em Brasília: uísque, futebol, política. Essa reunião aconteceu com absoluta discrição, sem que nenhuma notícia sobre o encontro vazasse. Pouco depois, os ataques de 8 de janeiro aproximaram os dois ainda mais. Falavam-se com frequência sobre as medidas necessárias para enfrentar e responsabilizar quem atentou contra a democracia.
Desde então, Alexandre esteve ao menos três vezes no Palácio da Alvorada, onde mora o presidente da República. Em duas delas estavam só os dois e Flávio Dino. Em outra, um seleto grupo de congressistas e ministros fizeram um churrasco. Lula e Alexandre têm origens distintas na política. São de grupos que, tradicionalmente, fizeram oposição um ao outro. Alexandre foi indicado ao Supremo pelo ex-presidente Michel Temer, o vice que articulou o impeachment de Dilma Rousseff e tirou a petista da Presidência.
Mas é como diz Lula: na política, não se escolhe o interlocutor. É verdade que Lula tem um bom diálogo com outros ministros do Supremo, como Gilmar Mendes e Luís Roberto Barroso, que também o receberam para jantar em casa. Uma pessoa muito ligada ao presidente da República me contou que as relações mais espinhosas tomam tempo para ser construídas: Lula vai cultivando, avança, recua, exige todo um esforço para se consolidar. Com Alexandre a aproximação foi rápida, espontânea. E simbiótica.
Esse é o Alexandre. Um podcast original da Trovão Mídia e da revista piauí.
Meu nome é Thais Bilenky. Passei os últimos meses apurando como Alexandre de Moraes atua no Supremo e no TSE: com quem ele conversa, como toma decisões e por que, afinal, ele não sai do noticiário? Quando a Trovão Mídia me convidou para fazer esse podcast lá em janeiro, eram essas as perguntas que a gente se fazia.
E quanto mais eu apurei, mais fiquei capturada pela história. É um momento da política com elementos que antes não estavam na cena: não tinha granada, não tinha blitz contra eleitor, não tinha destruição da sede dos Três Poderes e não tinha uma frente ampla formada para reagir a ameaças.
Então, veio um ministro do Supremo e presidente do TSE com uma disposição incomum para o enfrentamento. Chegamos ao sexto e último episódio dessa série com lances eletrizantes: Alexandre arquivou o inquérito contra alguns dos empresários que especularam sobre golpe de Estado no dia em que foi ao ar o episódio sobre eles. O ministro manteve a investigação sobre dois dos empresários e mostrou indícios comprometedores de um deles.
Teve ainda a prisão do ajudante de ordens de Bolsonaro e revelações bombásticas sobre esquemas do ex-presidente. A temperatura está alta e não vai baixar tão cedo. Chegamos ao fim do podcast, mas a novela continua.
Episódio 6: Avenida Brasília.
Uma coisa era certa: ninguém ia pedir vista, ninguém ia adiar o julgamento de Bolsonaro no TSE. Estava marcado para começar no dia 22 de junho e até o recesso, em 2 de julho, o caso estaria encerrado. Faltando poucos dias para a votação em plenário, Raul Araújo Filho, um dos ministros próximos a Bolsonaro, avisou, no cafezinho do TSE, que seu voto estava pronto. Era uma sinalização de que ele não ia pedir para adiar o julgamento. Araújo seria o segundo a votar.
Na terça anterior ao julgamento, no jantar que os ministros fazem juntos no TSE toda semana, o assunto na mesa era o relatório do ministro Benedito Gonçalves, que seria o primeiro a votar: eram 460 páginas. Benedito cogitou pedir uma sessão extra para dar tempo de ler tudo. Alexandre brincou: “preciso dormir, Benedito. Não vai me fazer varar a noite”. Kassio Nunes Marques ficou em silêncio.
A ação – das 16 que estavam no TSE – era sobre uma reunião que Bolsonaro fez com embaixadores. Aconteceu em julho de 2022, no Palácio da Alvorada. O então presidente fez uma apresentação com power point, em inglês, repleta de erros, para propagar teses infundadas sobre o sistema eleitoral brasileiro.
[Poder 360 – Jair Bolsonaro]: É impossível fazer uma auditoria em eleições aqui no Brasil. No Brasil, não tem como acompanhar a apuração. Eu não sei o que vêm fazer observadores de fora aqui. Vão fazer o quê? Vão observar o quê?
[Thais Bilenky]: Na plateia, dezenas de embaixadores escutaram mentiras quando, por exemplo, Bolsonaro disse que o Supremo fazia um conluio para eleger Lula. Ou que hackers podiam invadir livremente o sistema das urnas. Além de sediar o encontro no Alvorada, que pertence à União, Bolsonaro ainda transmitiu sua fala na TV Brasil, um canal público. E, por isso, foi acusado de usar a estrutura estatal em benefício de sua candidatura. O PDT entrou com uma ação no TSE.
Ministros do tribunal consideraram o conjunto da obra enquadrável como abuso de poder político. Daí porque escolheram começar por essa ação e não alguma das outras 15 pendentes. Havia aí uma oportunidade pedagógica, digamos assim.
[Justiça Eleitoral – Alexandre de Moraes]: Bom dia a todos, declaro aberta a sessão dessa quinta feira, dia 22 de junho de 2023, cumprimento os eminentes integrantes da corte. Trata-se de ação de investigação judicial eleitoral, ajuizada contra candidatos ao cargo de presidente e vice-presidente da República, por suposto abuso de poder político e uso indevido dos meios de comunicação nas eleições de 2022.
[Thais Bilenky]: O julgamento acabou dividido em quatro sessões consecutivas do TSE. O país se viu ligado na TV Justiça para acompanhar cada voto. Benedito inaugurou os trabalhos com seu relatório, sintetizado em 60 páginas. Foi duro no pedido de condenação.
[CNN – Benedito Gonçalves]: Em razão de sua responsabilidade direta e pessoal pela conduta ilícita praticada em benefício de sua candidatura à reeleição para o cargo de presidente da República, declaro sua inelegibilidade por oito anos seguintes ao pleito de 2022.
[Thais Bilenky]: Depois de Benedito, votou Raul Araújo, a favor de Bolsonaro.
[Justiça Eleitoral – Raul Araújo]: Fato é que a intensidade do comportamento, concretamente imputado à reunião de 18 de julho de 2022, e o conteúdo do discurso não foi tamanha a ponto de justificar a medida extrema da inelegibilidade.
[Thais Bilenky]: Então, veio Floriano de Azevedo Marques.
[sonora]
[Justiça Eleitoral – Floriano Marques]: Houve desvio de finalidade,na medida em que…
[Thais Bilenky]: Floriano começou a sustentação e logo no início Kassio Nunes Marques se retirou do plenário. Foi para a sala reservada dos ministros e ficou reunido com o gabinete por um bom tempo.
[Justiça Eleitoral – Floriano Marques]: E houve abuso de poder político, pois o primeiro investigado mobilizou todo o poder de presidente da República para emular sua estratégia eleitoral em benefício próprio, agindo de forma anormal, imoral e sobremaneira grave pelas premissas e consequências que adiante se verá.
[Thais Bilenky]: Floriano terminou o voto – contra Bolsonaro. Depois dele, vieram André Ramos Tavares e Cármen Lúcia. Ambos votaram pela inelegibilidade. Nunes Marques foi o sexto dos sete votos. Começou meio no muro e terminou por absolver o ex-presidente.
[Justiça Eleitoral – Kássio Nunes Marques]: Finalmente, divirjo de sua excelência para julgar improcedente também em relação ao primeiro investigado, Jair Messias Bolsonaro, porquanto não identifico conduta atribuída a ele que justifique a aplicação das graves sanções previstas no artigo 22, inciso XIV da Lei Complementar 64 de 1990. É como voto, senhor presidente.
[Thais Bilenky]: Alexandre, o sétimo e último a votar, confirmou a condenação. 5 a 2.
[Justiça Eleitoral – Alexandre de Moraes]: Para condenar o primeiro investigado, Jair Messias Bolsonaro, pela prática de abuso de poder político e pelo uso indevido de meios de comunicação nas eleições de 2022. E declarar sua inelegibilidade por oito anos seguintes…
[Thais Bilenky]: Bolsonaro estará fora das eleições até 2030. A sucessão de Lula não terá nas urnas o nome do candidato que obteve 58 milhões de votos em 2022 – 49% do eleitorado.
Chegou julho. A Justiça entrou em recesso. Alexandre viajou com a família para a Itália, onde participaria de um fórum internacional de direito.
[Jornal Nacional]: O ministro Alexandre de Moraes estava na Itália para fazer uma palestra na Universidade de Siena. Ontem à noite, no aeroporto de Roma, foi vítima de agressões. O filho de Alexandre de Moraes que o acompanhava na viagem chegou a ser agredido por um dos envolvidos.
[Thais Bilenky]: A reação institucional ao episódio foi veemente e a voz mais enfática a sair em defesa de Alexandre foi a de Lula.
[TV Brasil – Lula]: Nós precisamos punir severamente pessoas que ainda transmitem ódio, como o cidadão que agrediu o ministro Alexandre de Moraes no aeroporto de Roma.
[Thais Bilenky]: No espaço de uma semana, ele condenou a agressão publicamente três vezes.
[TV Brasil – Lula]: Quer dizer, um cidadão desses é um animal selvagem, não é um ser humano. O cidadão pode não concordar com a pessoa, mas ele não tem que ser agressivo, ele não tem que xingar, ele não tem que desrespeitar.
[Thais Bilenky]: A Polícia Federal se pôs a investigar o caso com envergadura de possível crime contra a democracia. Os agressores foram alvo de busca e apreensão e intimados a prestar depoimento. O caso cresceu nos dias seguintes. Não demorou até começarem os questionamentos. Alguns disseram que a reação era exagerada.
[Uol – Wálter Maierovitch]: E agora o que espanta é que o Supremo chamou essa investigação para si. E até a ministra Rosa Weber, deferiu buscas e apreensões. Ora, com que competência? Com qual atribuição? Então, isso está cheirando mal.
[Thais Bilenky]: Em agosto, eu fui conversar com a professora Eloísa Machado, pesquisadora da Fundação Getúlio Vargas.
[Eloísa Machado]: Sete meses atrás, aproximadamente, o tribunal foi destruído. Foi queimado, as cadeiras foram arrancadas, as portas foram arrancadas. Então, a gente não está falando apenas, né, de algo que está no plano do discurso, que está no plano da crítica. A gente está falando que, de fato, populares incitados invadiram o plenário, destruíram o Supremo Tribunal Federal.
[Thais Bilenky]: Eloísa é estudiosa do Supremo Tribunal Federal. Ela cedeu algumas horas numa manhã agitada pra conversar comigo, na redação da revista piauí, em São Paulo.
[Eloísa Machado]: O contexto mostra, de fato, um cenário de intimidação da atuação dos ministros, de restrição aí do que eles podem ou não podem fazer, tudo de maneira a enfraquecer a atuação do Supremo Tribunal Federal com um propósito específico.
[Thais Bilenky]: Mas, para Eloísa Machado, tem um porém nessa resposta à agressão a Alexandre em Roma. O inquérito não tem justificativa para tramitar no Supremo em vez da Justiça do interior paulista, que é onde moram os agressores.
[Eloísa Machado]: Agora, o Supremo Tribunal Federal não pode se manter, na direção dessas ações e desses inquéritos, desprezando que há todo um Poder Judiciário capaz de julgar esses casos. Não existe foro por prerrogativa de função para as vítimas, né?
[Thais Bilenky]: Foro por prerrogativa de função é o famoso foro privilegiado e só vale para o investigado, não para a vítima. O protagonismo de um ministro do Supremo traz desafios, não só agressões, como as de Roma. Alexandre também acabou envolvido mais de uma vez em enredos conspiratórios cheios de vai-e-vem e passagens mal explicadas. Primeiro, foi com o senador Marcos do Val, que disse e depois desdisse que Bolsonaro queria gravar Alexandre escondido para comprometê-lo. Depois, veio a história do hacker que acusou Bolsonaro de lhe pedir para assumir um outro suposto grampo feito no telefone de Alexandre. As histórias acabaram não sendo comprovadas, mas elas registram uma constante na crônica política.
O enfrentamento ao golpismo que Alexandre simboliza faz dele não apenas um juiz de pulso firme, mas também faz dele um personagem central da trama política. E não é a primeira vez que isso acontece no Brasil. Quando Joaquim Barbosa relatou o mensalão no Supremo, em 2012, e condenou a elite do PT e outras dezenas de figuras, ele foi convertido a herói nacional, insuflado a disputar as eleições e virar presidente da República.
Em 2013, então presidente do Supremo, Barbosa encampou um discurso antipolítica que, um ano depois, ia mudar o rumo do país, com a Lava Jato.
[Jornal da Record – Joaquim Barbosa]: Nós temos partidos de mentirinha. Nós não nos identificamos com os partidos que nos representam no Congresso.
[Thais Bilenky]: Barbosa ameaçou se candidatar mais de uma vez. Fez que ia, mas não foi. Depois, veio Sergio Moro que, da vara de Curitiba, mandou para a cadeia políticos poderosos, em especial Luiz Inácio Lula da Silva.
[Migalhas – Sérgio Moro]: Mas esses casos envolvendo graves crimes de corrupção, envolvendo figuras públicas poderosas, só podem ir adiante se contarem com o apoio da opinião pública e da sociedade civil organizada.
[Thais Bilenky]: Moro aceitou o convite de Bolsonaro para ser ministro da Justiça, despertou amor e ódio, foi também ele incensado a se lançar presidente. Não se viabilizou, se elegeu senador – e essa é uma outra história. No caso de Moro, as comparações vão além. No início, eram mais discretas, hoje já nem tanto: Alexandre é acusado por detratores de usar os métodos da Lava Jato como prisões excessivas.
[Eloísa Machado]: Se a gente olhar para o Judiciário em geral, a gente não tem excepcionalidades, porque é um Judiciário que, em geral, prende mal, e prende muito, e prende sem requisitos de prisão preventiva muita gente.
[Thais Bilenky]: Essa é a pesquisadora Eloísa Machado de novo.
[Eloísa Machado]: Quando a gente coloca o foco nessas operações, essa crítica ainda acaba sendo majorada por essa instrumentalização, em razão de outros interesses. Então, é possível, sim, criticar a maneira como essas prisões preventivas têm sido usadas no Judiciário e também nesses dois casos.
[Thais Bilenky]: Essas ponderações, em geral, levam a um segundo questionamento: quando chegará a hora em que o Supremo voltará a um novo normal. Ou, em outras palavras: quando os poderes excepcionais conferidos a Alexandre nos inquéritos de ofício serão sustados?
Tem gente que advoga que já passou da hora. No Supremo, escutei que isso simplesmente não vai acontecer. Primeiro, porque as ameaças golpistas e a eventual responsabilização de Bolsonaro e de seus operadores não são caso encerrado. Segundo, porque não há quem tenha poder para fazer o Supremo parar.
Como Joaquim Barbosa e Sérgio Moro, Alexandre desperta amor e ódio. Escuta elogios e apelos para ser presidente da República da mesma forma que enfrenta a ira de críticos. Em geral, ele leva na esportiva. Pelo menos é assim que faz parecer.
Quando circulou uma foto de Alexandre sem camisa, tomando sol na piscina, uma assessora comentou que ele estava bombando na comunidade LGBTQIA+. Ele deu risada. Quando chegam memes fazendo graça do seu perfil de xerife, sua reação é ficar incomodado? Não, ele dispara as figurinhas para os amigos no Whatsapp.
Alexandre cultiva uma persona pública sisuda e implacável, mas no trato pessoal não há quem não mencione alguma piada que ele tenha contado em uma roda de Brasília. Essa conversão que Alexandre operou ao longo da carreira, de conservador linha-dura a aliado estratégico da esquerda, é um manancial de piadas.
Alexandre, por exemplo, tira sarro com senadores lulistas que votaram contra sua indicação para o Supremo em 2017 e hoje se comportam como amigos íntimos. O voto a favor da descriminalização do porte de maconha no Supremo, em agosto de 2023, foi um momento e tanto na mudança da imagem de Alexandre.
Quando ele apareceu pela primeira vez para o grande público, em 2016, foi naquele vídeo em que ele corta pés de maconha no Paraguai. Alexandre era ministro da Justiça de Temer.
[Poder 360 – Alexandre de Moraes]: Parceria para a erradicação da maconha.
[Thais Bilenky]: No começo de 2017, na sabatina do Senado, antes de assumir sua vaga no Supremo, Alexandre nuançou a figura de linha-dura:
[TV Senado – Alexandre de Moraes]: Nós prendemos quantitativamente, não qualitativamente.
[Thais Bilenky]: E defendeu mudança na lei para diferenciar usuário e traficante.
[Brasil de Fato – Alexandre de Moraes]: O aumento de jovens, sem instrução, pretos e pardos presos.
[Thais Bilenky]: Esse é o Alexandre no julgamento de agosto de 2023.
[Brasil de Fato – Alexandre de Moraes]: Principalmente por tráfico de entorpecentes. E a partir do momento que foram presos por tráfico de entorpecentes, acabaram sendo cooptados pelas organizações criminosas, quando saem, eles têm que pagar o que estão devendo.
[Thais Bilenky]: A sua decisão e a proposta de estipular uma determinada quantidade de gramas de maconha para definir o que é tráfico estavam prontas desde 2018. Os dados mostrando a arbitrariedade do Judiciário na aplicação da lei de drogas já estavam coletados e organizados.
[Brasil de Fato – Alexandre de Moraes]: Mas não triplicamos o número de presos por tráfico de drogas de brancos, maiores de 30 anos, com curso superior. Triplicamos com pretos e pardos, sem instrução e jovens.
[Thais Bilenky]: O texto lido pelo ministro em plenário foi talhado de referências pop e ironias, com protestos antirracistas e estocadas na elite branca.
[Luciano Carvalho – Alexandre de Moraes]: Alguém preso com 100 kg de pasta de cocaína, ninguém acha que é usuário. Não há nariz para tanto. Alguém pego com 2 toneladas de maconha: “ah, estava fazendo um depósito para o inverno”, também não é possível. Da mesma forma, alguém pego com dois cigarrinhos de maconha: “oh! É um traficante perigoso, é o nosso Pablo Escobar”.
[Thais Bilenky]: Em suma, o que Alexandre fez foi um voto instagramável. O que mudou foi a sua forma de se comunicar.
Mesmo com o turbilhão de sua vida em Brasília, Alexandre não deixou a Faculdade de Direito da USP. Toda segunda-feira, ele chega às 7 horas da manhã no Largo de São Francisco, no centro de São Paulo, precedido de seguranças, para dar duas aulas: Controle de Constitucionalidade e Ministério Público. Vai embora na hora do almoço.
O ambiente da São Francisco já lhe foi mais hostil. Antes, seu nome era pichado nos muros da faculdade acompanhado de ofensas. O centro acadêmico fez protesto público acusando Alexandre de defender, em sala de aula, a tortura como método de obtenção de informação.
Agora, o ambiente é outro: selfies, tietagens, deferências. Ele não dá um passo naquela faculdade sem ser abordado. Eu vi isso acontecer nas quatro ou cinco vezes em que estive lá. Na primeira, fui cercada por bedéis da faculdade e seguranças do ministro. Eles não me deixavam ir ao bebedouro sem ter alguém na minha cola.
[Segurança]: Ele vai vir conversar com a senhora no intervalo, tá?
[Thais Bilenky]: Ah, tá bom.
[Thais Bilenky]: Mesmo que a sala de aula seja, em tese, um espaço de livre acesso, fui proibida de entrar. Uma funcionária da faculdade chegou a me instruir a não me dirigir ao ministro.
[Segurança] Dar entrevista no intervalo, tá? Para não prejudicar a gente, tá bom?
[Thais Bilenky]: Tá bom.
[Segurança] Ai a senhora fica aqui comigo…
[Thais Bilenky]: Mas isso foi uma orientação deles?
[Segurança]: É, na hora que eles… que der o intervalo, ele vem chamar a senhora.
[Thais Bilenky]: Tá certo.
[Segurança]: Com a equipe dele, tá bom? Então a senhora fica aqui. Deixa ele passar, tá bom?
[Thais Bilenky]: Tá bom.
[Thais Bilenky]: Os alunos ficam entusiasmados em ter aula com Alexandre. Essa é a Mariana, de 23 anos.
[Mariana]: A aula dele é bem cheia, inclusive. Eu cheguei um pouco atrasada, já todos os bancos estavam lotados. Tem gente que nem é do quinto ano ou que nem pegou matéria dele, mas que pede para assistir como ouvinte. E eu achei que ele fosse, tipo, uma pessoa bem séria assim, sabe? Que chegaria, falaria, sei lá, lei seca, sabe, ou algo assim nesse sentido, mas não, ele é bem descontraído.
[Thais Bilenky]: Alexandre circula pelas arcadas à vontade. Arcadas é uma alusão à arquitetura do século 19 da faculdade: tem um pátio ao ar livre cercado exatamente por essas colunas e arcos. Da Faculdade de Direito da USP saíram 55 ministros do Supremo – como Alexandre, Toffoli e Celso de Mello. A escola formou um terço de todos os ministros da história da corte e também 13 presidentes da República, entre eles Michel Temer. Alexandre conversa com professores, alunos, bedéis: todo mundo.
[Alexandre de Moraes]: Por exemplo, o presidente da República edita uma medida provisória tipificando um crime: portar, usar, transportar, depositar, agitar camisa verde com P de porco do lado esquerdo do peito. Crime. Pena: seis….
[Thais Bilenky]: Em sala, escreve na lousa com giz e não perde a piada.
[Alexandre de Moraes]: Você coloca aquela camisa ridícula, acabou de sair aquela Medida Provisória. É inconstitucional, essa Medida Provisória? Você entra com habeas corpus, vai para audiência de custódia, o juiz é corinthiano e olha e fala: “não vejo nada de inconstitucional nessa medida”. E ainda escreve na decisão: “antes tarde do que nunca”.
[Thais Bilenky]: Floriano de Azevedo Marques, ministro do TSE, frequentou a São Francisco com Alexandre quando ambos eram alunos da graduação. Agora, os dois continuam por lá, como professores. Perguntei a Floriano o que leva uma pessoa que lida com os assuntos mais relevantes da República a não arredar o pé da sala de aula.
[Floriano Marques]: Eu vou te dar uma resposta que é uma resposta que parte da presunção franciscana, mas talvez explique: o que que é mais importante que dar aula na faculdade? É muito importante. Essa coisa é muito importante. Eu tenho certeza que nesses anos, 20 anos, eu dei aula para mais de um futuro ministro do Supremo.
[Thais Bilenky]: Floriano vê Alexandre cada vez mais à vontade no poder.
[Floriano Marques]: É um processo meio Benjamin Button institucional: a pessoa vai alcançando muito precocemente uma posição e aí, chega um determinado momento em que ela não precisa mais ser tão, protegida, né, ou passar uma imagem de uma pessoa tão séria, sisuda, responsável, pelo simples fato que isso já está dado, né?
[Thais Bilenky]: E o que isso significa? Agora, à vontade na cena, Alexandre vai finalmente disputar uma eleição, como ensaiou fazer tantas vezes ao longo da vida? Usará o capital político acumulado ao longo dos últimos anos para conquistar apoio popular? E o desgaste que ele também acumulou?
Sempre que se colocam essas perguntas, a resposta imediata é: supondo que sim, ele decida se lançar, ele se lançaria pela esquerda, que agora em parte simpatiza com ele? Ou pela direita, onde tudo começou? Ok, Alexandre então seria o candidato antibolsonarista, mas por qual partido?
Pela ordem de chegada no Supremo, Alexandre de Moraes assumirá a presidência do tribunal daqui a quatro anos. Vai chefiar o Poder Judiciário inteiro, ambição de muita gente na Justiça. Em meados de 2029, se tudo correr como esperado, Alexandre de Moraes terá sido presidente do TSE e do Supremo. Estará com 60 anos e uma avenida aberta pela frente.
Alexandre é um podcast original da Trovão Mídia e da revista Piauí. Eu sou Thais Bilenky e fiz a reportagem e o roteiro. Se você gostou dessa série, deixe uma avaliação na sua plataforma de áudio. E recomende o podcast pros amigos. A direção geral e o tratamento de roteiro são da Ana Bonomi e do José Orenstein. A produção executiva é da Ana Bonomi, do José Orenstein e da Mari Faria. Assistência de produção da Ana Azevedo. A trilha sonora original, o desenho de som e a montagem são do Arthur Decloedt. A finalização é da Phonocórtex. Checagem feita por João Felipe Carvalho. Gravado no estúdio Nanuk, em São Paulo.
Esse episódio usou áudios de Uol, Poder 360, canal da Justiça Eleitoral no youtube, CNN, TV Globo (Jornal Nacional), TV Brasil, canal do STF no youtube, Jornal da Record, canal Migalhas no youtube, Brasil de Fato, @otaldebochado no Instagram.