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    ILUSTRAÇÃO: PAULA CARDOSO

questões geopolíticas

Alinhamento de Bolsonaro e Trump preocupa europeus

Para dirigente do principal conselho de diplomacia da Europa e ex-premiê da Suécia, convergência com Washington aproxima Brasil das "democracias imperfeitas", como Hungria e Rússia

Roberto Lameirinhas | 30 nov 2018_17h46
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Ex-primeiro-ministro da Suécia (1991-1994) e co-dirigente do principal conselho pan-europeu de relações exteriores, o conservador Carl Bildt teme que países como o Brasil, que passam por um processo de transformação de sua política externa, acompanhem as posições mais duras de Washington sobre tratados comerciais, organismos globais e acordos sobre preservação ambiental. “Ainda não sabemos como as ideias do futuro chanceler vão se converter em políticas efetivas”, disse Bildt em entrevista exclusiva à piauí, sobre o diplomata Ernesto Araújo, escolhido pelo presidente eleito, Jair Bolsonaro, para o cargo. “O que me deixa preocupado de fato é Washington estar seguindo alguns conceitos que contrariam princípios diplomáticos importantes, com interpretações próprias de leis internacionais, causando uma nova desordem e novos desafios para a diplomacia. E isso servir como modelo para outros países, como o caso do Brasil, definirem suas posições.”

Bildt lembrou a tradição de sobriedade da política do Itamaraty, ao comentar textos de Araújo nos quais o futuro chanceler brasileiro elogia as posições de Trump em relação a políticas de imigração e de combate ao avanço do Islã no Ocidente, fala em libertar a política externa e o Itamaraty do “marxismo cultural” e atribui ao que chama de “climatismo” (como ele se refere às táticas de militantes da esquerda para preservar o ambiente e sequestrar liberdades individuais) as pesquisas sobre mudanças climáticas. Os endossos do futuro chanceler às ideias do presidente norte-americano estão descritos no artigo “Trump e o Ocidente”, publicado no ano passado nos Cadernos de Política Exterior da Fundação Alexandre Gusmão, ligada ao Itamaraty. Araújo escreveu: “Essas expressões de Trump parecerão a muitos, no mínimo, manifestações de mau gosto, a outros parecerão laivos de fascismo. Sim, vivemos em um mundo onde falar dos heróis, dos ancestrais, da alma e da nação, da família e de Deus é, para grande parte da ideologia dominante, uma indicação de comportamento fascista. O problema estará com Trump ou estará com essa ideologia contra a qual ele se insurge?”

Co-diretor do Conselho Europeu de Relações Exteriores (ECFR, na sigla em inglês), Bildt comentou os acenos do chanceler a Trump após participar em São Paulo de um seminário na Fundação Fernando Henrique Cardoso, nesta quinta-feira, cujo tema era “Democracias turbulentas e seus impactos no sistema internacional”. Para ele, a ascensão de Trump, apoiado por países que tendem ao radicalismo na defesa de interesses domésticos, representa riscos para o modelo de diplomacia multilateral – baseado em consenso, preferencialmente, ou decisão de maioria. “Em relação ao Brasil, existe preocupação especial com as medidas ambientais, por exemplo, e os compromissos assumidos internacionalmente. Sabemos que essa é uma questão controvertida e houve avanços nos últimos anos graças a gestões diplomáticas bem-sucedidas”, afirmou Bildt nesta quinta-feira.

O conceito “America First” de Trump reforçou um novo ordenamento, marcado pela retomada do poderio econômico americano por meio da hegemonia política e pelo combate ao que considera “exportação de empregos” por parte dos Estados Unidos – cujas empresas haviam migrado para mercados com mão de obra mais barata e menos impostos.  Os principais expoentes desse pensamento atualmente são líderes dos movimentos radicais de direita como o Tea Party e Alt-Right. Um dos membros mais destacados do Alt-Right, Steve Bannon, dirigiu a campanha eleitoral de Trump de 2016, foi assessor político da Casa Branca até o ano passado e manteve pelo menos um encontro com um dos filhos de Bolsonaro.

Trump, assim como líderes conservadores populistas de outros países, vendem a ideia de que a ordem antiga, a da globalização, fracassou em sua tarefa de melhorar a vida das pessoas por meio do desenvolvimento econômico. Desde que assumiu o poder, Trump abandonou o Acordo de Paris para redução de emissão de gás carbônico, mudou a sede da embaixada dos Estados Unidos em Israel para Jerusalém e adotou o confronto como regra nos contratos comerciais com a China, além de recuar em negociações de aproximação com Cuba e Irã, acertadas pelo antecessor, Barack Obama.

As semelhanças com o ideário defendido por Bolsonaro são evidentes. “Quando me perguntavam, durante a campanha, se eu faria isso [levar a embaixada do Brasil para Jerusalém], eu dizia sempre que sim. Cabe a vocês decidirem qual é a capital de Israel, não a outras nações”, declarou Bolsonaro ao jornal israelense Israel Hayom. Sobre a China, o partido de Bolsonaro, o PSL, rejeitou nesta semana um convite de Pequim para uma viagem destinada a estreitar os laços com o país comunista. E, na quinta-feira, o presidente eleito conversou com o conselheiro de Segurança Nacional da Casa Branca, John Bolton, sobre estratégias para conter avanços comerciais chineses – principais parceiros de negócios com o Brasil.

Entre as principais preocupações de Bildt para o país estão os reflexos do ideário do grupo de Bolsonaro em relação ao meio ambiente – como a discussão sobre também se retirar do Acordo de Paris, por exemplo. O acordo, aprovado em 2015 por 195 países, prevê a redução gradual da emissão de carbono a partir de 2020. Nesta quarta-feira, a pedido do presidente eleito, o governo brasileiro desistiu de receber a Conferência do Clima marcada para 2019. “O Brasil é o mais importante país do globo em relação ao tema ambiental. Questões sobre como se desenvolver com impacto ambiental mínimo estiveram muito presentes quando eu estava no posto de primeiro-ministro e participei no Rio do encontro de cúpula da Eco-92”, disse o político sueco.

Para Bildt, que à frente do Conselho Europeu de Relações Exteriores é responsável pelo estudo e planejamento das mais importantes políticas diplomáticas da Europa – que envolvem, por exemplo, ações padronizadas para restringir a chegada de imigrantes ilegais – movimentos nacionais que criaram governos populistas e ultranacionalistas em diferentes países tendem a gerar dificuldades em vários níveis, incluindo para o sistema internacional (termo usado genericamente para descrever o conjunto de organismos multilaterais como a ONU e a União Europeia). “Não há dúvida quanto a isso. Mas temos de ver esse fenômeno como uma questão mais profunda sobre a eficiência da própria democracia como sistema político, que não foi capaz de reduzir as insatisfações causadas pela corrupção, pela falta de segurança, pela escassez de postos de trabalho”, explicou. “Em qualquer que seja o caso – o de Matteo Salvini [na Itália], de Bolsonaro ou de Viktor Orbán [na Hungria] –, são movimentos que chegaram ao poder com votações expressivas. E foram eleitos sob o impacto causado pela frustração com a democracia, paradoxalmente, com um alto custo para a estabilidade do sistema democrático.”

Há outros exemplos recentes dessa virada de caráter nacionalista, como Colômbia, Polônia, Filipinas e mesmo os Estados Unidos. E o avanço dessa ideia de pressão pela frustração se reflete no sistema internacional, que passou, então, a ser alvo de questionamentos. Na Alemanha, por exemplo, a percepção de que a crescente chegada de estrangeiros está tirando emprego de cidadãos nacionais e afetando as políticas de bem-estar social, levou um partido de extrema direita, a AfD, a superar a cláusula de barreira e eleger uma bancada no Parlamento pela primeira vez desde o fim da Segunda Guerra. Na França, em reação ao aumento de comunidades islâmicas e do crescimento da criminalidade e da ameaça de atentados, a Frente Nacional, de Marine Le Pen, obteve a segunda melhor votação nas eleições de 2017. A Espanha, país que se recupera da brutal recessão econômica do início da década, vê o crescimento acelerado do Vox, partido de ultradireita que usa os mesmos slogans de campanha de Trump: “Espanha primeiro!” e “Vamos tornar a Espanha grande outra vez!”

 

Bildt acredita que o regime russo de Vladimir Putin é o principal símbolo de quanto governos nacionalistas populistas apresentam tendência a atropelar regras para atender os interesses de seu Estado. A última e mais perigosa manifestação dessa tendência é a intimidação dos russos à presença ucraniana no Estreito de Kerch, no Mar de Azov, com o objetivo de estrangular a rival Ucrânia economicamente. Como resultado, a situação tem escalado a um ponto que pode resultar em guerra. “O que acontece ali é que a Rússia está tomando passos em contradição às leis internacionais e em contradição a acordos internacionais. Eles tentam sentir até que ponto a resposta da comunidade internacional será forte. O que defendemos é que tome medidas equilibradas e calibradas e essas medidas são extremamente importantes para formatar um padrão de resposta a hostilidades futuras”, afirmou Bildt.

O estreito, único acesso para os portos ucranianos do Mar de Azov, é ocupado militarmente pelos russos desde 2014, com a anexação da Crimeia – uma área que passou a ser disputada por Rússia e Ucrânia após a dissolução da União Soviética, em 1991. Um tratado de 2003 dá aos dois países direito de navegação no Estreito de Kerch, mas, após incorporar a Crimeia, Moscou assumiu as tarefas de vigilância e segurança da via marítima. Com isso, passou a fazer inspeções em navios que se dirigem do Mar Negro para os portos no Mar de Azov. Kiev queixa-se que essas inspeções são demoradas e causam atrasos e outros prejuízos à sua Marinha Mercante.

No último domingo, três embarcações militares da Ucrânia que estavam a caminho de um exercício no Mar de Azov foram alvo de disparos da Marinha russa, que deteve 23 tripulantes ucranianos. Kiev alega ter informado Moscou previamente da movimentação de seus navios. A Rússia nega. A situação de confronto se agravou nesta quinta-feira, com o anúncio russo de que estava deslocando mísseis para bases na Crimeia, enquanto países europeus, como a Grã-Bretanha se dispunham a enviar uma frota para a região.

Na frente diplomática, Trump cancelou na quinta-feira – na última hora e por meio de um post na sua conta no Twitter – uma reunião com Putin que deveria ser o ponto alto do encontro do G-20, que se realiza nesta sexta-feira e no sábado, em Buenos Aires. Numa tentativa de minimizar o anúncio, o Kremlin informou no dia seguinte que Putin terá um encontro “breve e improvisado” com o americano.

Sob o argumento de que a disseminação de governos populistas nacionalistas – como aqueles que a retórica de Trump estimula – torna cada vez mais lenta a reação do sistema internacional a atropelos como o de Moscou, Bildt é um crítico feroz do silêncio, mantido até agora principalmente pela Europa, em relação a Moscou. “A Rússia já vinha aumentando significativamente o contingente militar no Mar de Azov e, nos últimos meses, começou a estrangular discretamente a liberdade de navegação de todos os navios que entram nos portos ucranianos. A escaramuça do fim de semana pertence a essa nova tendência. Os Estados Unidos e alguns países europeus se esforçam para parecer assertivos sobre o apoio à liberdade de navegação no Mar do Sul da China. Mas, quando se trata do Mar Negro e do Mar de Azov, todos parecem evitar contrariar Putin”, escreveu Bildt num artigo que publicou, em parceria com outro diretor do ECFR, Nicu Popescu, na revista Foreign Policy. “A Rússia precisa receber da comunidade internacional uma mensagem forte e clara: ela não pode atacar nem aprisionar navios de outros países”, afirmou.

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