Depois de estrear no Festival É Tudo Verdade em abril de 2023, Amanhã, de Marcos Pimentel, está sendo lançado esta semana no circuito comercial de São Paulo, Belo Horizonte, Porto Alegre e Salvador. De lá para cá, o documentário cumpriu a rotina habitual de inúmeros filmes brasileiros, predestinados, mesmo após terem participado de um evento importante, a percorrer outros festivais, cada qual com seus méritos, mas em geral de alcance mais restrito, até chegarem incógnitos aos cinemas, depois de muitos meses, sem condições mínimas que permitam estabelecer um vínculo efetivo entre eles e o público.
No final de setembro do ano passado, Amanhã foi premiado como Melhor Longa pelo Júri Popular do FAM (Florianópolis Audiovisual Mercosul), além de ter sido exibido no CineBH. Em novembro, participou do forumdoc.bh e este ano, no início de fevereiro, completou sua trajetória festivaleira recebendo menção honrosa no Pirenópolis Doc.
Durante dois finais de semana, em 2002, Pimentel reuniu e gravou três crianças que moravam separadas pela Barragem Santa Lúcia, em Belo Horizonte. Júlia e seu irmão Cristian no conjunto de favelas de um lado do lago, Zé Thomaz do outro, em um bairro de classe média alta.
Os “trágicos quatro anos do governo Bolsonaro”, a partir de 2019, deixaram Pimentel, conforme ele declarou, “com a certeza de que havia chegado o momento certo para voltar”. Novas gravações só puderam ser feitas, no entanto, com Júlia e Cristian. Zé Thomaz aceitou a princípio, mas depois desistiu de se envolver no projeto. Havia participado quando menino, autorizado pelo pai que, na época, disse: “Isso é currículo para ele.” Já adulto, a decisão cabia ao próprio Zé Thomaz e ele alegou, de acordo com a narração de Amanhã, feita por Pimentel, “que as coisas mudaram e que tem noção do mundo polarizado de hoje. Diz que o Brasil está dividido. Considerava melhor não participar mais do filme”.
Sem Zé Thomaz, a intenção de promover o reencontro dos participantes da gravação de 2002, premissa básica de Amanhã, foi frustrada, e a possibilidade de concluir o documentário chegou a ser questionada. Segundo Pimentel em voz off: “Hoje, sua recusa diz muito não só do currículo, mas do lado do país onde ele vive. E seu silêncio também. Nos tempos brutais em que vivemos, o silêncio tem lado.”
A condenação sumária de Zé Thomaz soa estranha. Transparece ressentimento da parte do diretor, compreensível até certo ponto. Afinal, o alicerce do filme fora solapado. Mesmo assim, será cabível criticar quem participou do projeto quando criança e vinte anos depois exerceu seu direito legítimo de não participar outra vez? Em vez de se voltar contra Zé Thomaz, não teria sido mais adequado reconsiderar o artificialismo da premissa idealista de Amanhã, que pretendia reunir crianças de classes sociais diferentes que não se conheciam e, após dois encontros iniciais breves, aproximá-las de novo após duas décadas?
Pimentel insiste em estabelecer um nexo entre o governo do inominável ex-presidente da República e a realidade social registrada em Amanhã, quando é notório que as condições de vida dos personagens parecem ser perenes, independentes de circunstâncias políticas e, por isso mesmo, ainda mais terríveis.
Desde a primeira sequência de Amanhã, é evidente que a situação deflagradora do documentário resulta da iniciativa de Pimentel, sem a qual dificilmente teria ocorrido. Vemos uma menina de personalidade forte (Júlia) brincando com um menino tímido e desengonçado (Zé Thomaz) “na casa dele”, em 2002. Primeiro, escalam o trepa-trepa na área de recreação do edifício residencial; depois, na sala do apartamento, jogam videogame. Em seguida, na favela, junto com Cristian, sobem na laje da casa onde ele e a irmã moram; depois, vão jogar bola. Fechando o preâmbulo, Pimentel esclarece a situação em voz off: “Passei dois finais de semana filmando ou tentando filmar os três, porque o Cristian fugia o tempo todo. Sem saber, inauguramos ali uma série de encontros e desencontros.”
Cristian declara quando vê as gravações feitas há vinte anos: “Eu vou ser sincero. Eu nem lembrava do Thomaz. Quando eu vi o vídeo ali eu… volta na mente, me lembrando…” Júlia, de seu lado, lembra bem dele e fica magoada quando o novo contato é recusado: “Quebrar a expectativa da gente dói mais ainda, né?”
Júlia vinte anos mais velha, em 2022 (Foto: Divulgação)
A verdade é que a ausência de Zé Thomaz não prejudica o projeto em nada, muito pelo contrário – contribui para tornar Amanhã mais interessante. Júlia e Cristian são excelentes personagens que sustentam o documentário com galhardia até o fim e lhe conferem relevância. Thomaz, por sua vez, embora não esteja presente, mantém-se como referência constante de cuja memória, já próximo ao encerramento do filme, o casal de irmãos indica querer se emancipar – Cristian queima as fotografias de Thomaz feitas durante a gravação de 2002 e Júlia joga as fotos na água do lago formado pela barragem.
O percurso trágico de Cristian, um rapper premiado, o leva a ser preso meses após o término das gravações, para cumprir sua décima condenação.
Desde o início, Júlia é o principal sustentáculo de Amanhã. Ao receber a notícia, dada por Pimentel, de que Zé Thomaz “não quer encontrar”, sua longa resposta, resumida a seguir, é contundente. Síntese de questões levantadas no documentário, é lamentável que seja toda em voz off:
“Não [quer encontrar]! Mas por quê? Ele está fora do país? O que aconteceu?… E ele deu algum parecer, o motivo que ele não quer? Ele tá com medo de nós sermos lixo? Porque nós não somos lixo. Nós só temos classes sociais diferentes. Mas nós sabemos tratar, entrar e sair com tranquilidade. Ele está sendo mais um dos bonequinhos do sistema. Ele está sendo mais um soberbo que não abre a mente diante das dificuldades sociais. Para mim, ele está sendo muito imaturo, até porque hoje a gente tem muito movimento de abraçar os diferentes, de abraçar os menos favorecidos. Se ele tivesse se mantido aquela criancinha humilde com coração bom que ele tinha, ele não teria se comovido com tantas coisas […]. Agora, a pessoa que está lá, fechada, colocado dentro da bolha dele, ele não consegue ver o mundo de fora, o que realmente são as pessoas em vez do que as pessoas pensam. Ele vai ter crítica fazendo ou não o filme. Qualquer decisão que ele tomar na vida dele, ele vai ser criticado positivamente ou negativamente. Isso é a vida. Não é porque eu tenho classe social menos favorecida que eu também não sou criticada em minhas decisões, não. Vai ter crítica o tempo todo. Isso é a vida. Então para mim ele é um covarde. Porque, primeiro você fala sim, depois você fala não, por quê? Estou com medo da opinião dos outros? Não. Eu disse não, por quê? Porque eu estava com vergonha de mim mesma, da situação na qual eu me encontrava. E não com o que os outros iam falar disso, daquilo e daquilo outro. Porque eu não estava me sentindo segura. Nós não temos grandeza para mostrar, além da nossa humildade […]. Nós não fizemos grandes coisas ao ver da população, né? Somos pessoas que temos ensino fundamental incompleto e coisa e tal, mas a nossa essência cresceu a cada dia. A nossa essência tem crescido a cada dia. E eu acho que ele perdeu a essência dele. Não o julgo… Eu não sei a pessoa que ele é junto dos amigos, junto da família. Mas é muito cômodo você estar junto só dos seus. É muito cômodo. Eu já vendi bala no sinal, já conversei com rico, já conversei com pobre e eles são abertos, eles são francos. Alguns são ignorantes, sim. […] Eu não deixei me tornar ignorante porque tem pessoas ignorantes à minha volta […].
Eu estava numa expectativa tão grande de conhecer o Zé Thomaz, mas de uma versão diferente que eu achei que seria melhorada porque eu acho que quando a gente amadurece a gente tem que melhorar e não regredir. E não se igualar ao que não é bom. A gente tem que sobressair. E ele ter se tornado só mais um… Ele planta aqui e colhe lá na frente quando nós, assim, gueto, vencer, ele vai ver…”
A certa altura de Amanhã, parecendo se dirigir a Pimentel, Júlia diz: “Esse filme vai muito além do que só a minha história e a história do Cristian, né? De certa forma, nós somos só figurantes, né? O principal no filme fala da sociedade mesma em si. Nós vamos retratar ela de uma forma que nós vivemos, mas que [é como] muita gente passa.”