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    Ilustração: Carvall

questões ambientais

Amazônia mais perto da destruição irreversível

Graças ao aquecimento global e ao desmatamento irrefreado, floresta pode perder a capacidade de se regenerar antes do que se imaginava, mostra estudo

Bernardo Esteves | 07 mar 2022_13h00
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Está bem mais perto do que se imaginava o chamado ponto de não retorno do desmatamento da Amazônia, a partir do qual a floresta equatorial pode ser substituída por um ecossistema mais pobre e menos diverso, com poucas árvores e incapaz de gerar os rios voadores que levam chuva para parte do território brasileiro. Essa é a conclusão de um estudo publicado nesta segunda (7) na revista Nature Climate Change e assinado por três pesquisadores ligados à Universidade de Exeter, no Reino Unido.

A ideia de que a Amazônia pode atingir um ponto de não retorno foi formulada pela primeira vez nos anos 1990. Foi sustentada inicialmente por modelos computacionais que simulam a evolução de vários parâmetros do sistema climático ao longo do tempo. Esses modelos mostravam que, se o aquecimento global continuasse e o desmatamento ultrapassasse um determinado patamar, haveria uma mortandade maciça de árvores e a floresta perderia a capacidade de se regenerar, até que fosse substituída por uma vegetação degradada e dominada por gramíneas e arbustos.

O estudo britânico vem se juntar a outros trabalhos recentes que estão confirmando a previsão dos modelos computacionais com observações diretas da Amazônia. No caso, os pesquisadores usaram imagens de satélite a fim de avaliar como está evoluindo a resiliência da floresta, que é sua capacidade de se regenerar depois de secas, incêndios e outras perturbações.

Para isso, os cientistas observaram a chamada profundidade óptica da vegetação, medida pela radiação de micro-ondas emitida pela superfície das árvores. Esse índice muda quando a floresta é degradada, e por isso sua variação e sua correlação com outros parâmetros fornecem uma medida da resiliência da floresta. Os autores do estudo analisaram sua evolução em toda a Bacia Amazônica entre 1991 e 2016.

“O que vimos é que, especialmente desde o início dos anos 2000, cerca de 75% da Floresta Amazônica apresenta alguma perda de resiliência”, disse o climatologista Chris Boulton, primeiro autor do estudo, numa entrevista coletiva organizada pela Nature Climate Change. O fenômeno é mais acentuado nas áreas com menos chuvas e naquelas mais próximas das localidades ocupadas por humanos, como zonas urbanas ou lavouras, continuou o pesquisador. “Podemos observar a perda de estabilidade da floresta mesmo sem que ela mostre necessariamente alguma mudança enorme na biomassa ou na cobertura de árvores”, acrescentou o climatologista Timothy Lenton, que também assina o artigo.

Os autores atribuem a perda de resiliência ao aumento do desmatamento e às condições mais secas da Amazônia nos últimos anos – a região foi alvo de quatro secas muito severas nas últimas duas décadas. A frequência e a intensidade atípica desses episódios podem ser explicadas em parte pela crise climática que o planeta atravessa.

 

O climatologista brasileiro Carlos Nobre, do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), está entre os cientistas que primeiro acionaram o alarme, no começo dos anos 1990, para o risco de substituição da floresta equatorial por uma vegetação mais próxima da Savana ou do Cerrado, mas sem a biodiversidade desses biomas. “Estudos com modelagem que fizemos mostraram que passaríamos do ponto de não retorno se a temperatura passasse de 2,5ºC e se o desmatamento na Amazônia passasse de 25% da área total”, disse o climatologista, que não teve envolvimento com a pesquisa britânica.

A temperatura média do planeta já subiu 1,1ºC desde a Revolução Industrial, e o desmatamento da Amazônia está beirando os 20% de sua área. Nobre notou que o artigo publicado esta semana e outros estudos observacionais estão mostrando que a velocidade com que esse processo está acontecendo é mais rápida do que a prevista inicialmente. “Provavelmente estamos mais próximos do ponto de não retorno do que indicavam os estudos baseados só em modelagem computacional”, afirmou. “Se cruzarmos esse ponto, em 30 a 50 anos vamos transformar de 50 a 70% da floresta num ecossistema muito degradado.”

O estudo britânico não é o primeiro a documentar a aproximação do ponto de não retorno com dados empíricos. O próprio Nobre é coautor de um desses trabalhos, que teve a química Luciana Gatti, do Inpe, como primeira autora e foi publicado em julho do ano passado na Nature. O grupo brasileiro mostrou ali que partes da Amazônia estão perdendo a capacidade de absorver gás carbônico da atmosfera. Em vez disso, a floresta se tornou uma fonte de CO2, contribuindo para o aquecimento global, o que deve reforçar ainda mais a perda de resiliência, num ciclo desastroso para a Amazônia.

Nem o estudo brasileiro nem o britânico permitem apontar quando exatamente a floresta atingirá o ponto de não retorno. “Mais importante do que determinar quando isso vai acontecer é perceber que o processo está em marcha e que afeta uma área muito maior do que a estimada inicialmente”, observou a ecóloga Mercedes Bustamante, uma estudiosa da Amazônia que não participou do estudo.

Bustamante chamou a atenção para a abrangência territorial e temporal dos dados analisados pelo grupo britânico. “Eles mostram que esse processo já está em curso há quase vinte anos, inclusive em áreas onde não estamos vendo tão claramente essas mudanças, e a tendência é que isso vá se acentuar”, afirmou a pesquisadora da Universidade de Brasília. “É quase que o prego que faltava no caixão [da Amazônia].”

A perda de resiliência da floresta pode ser ainda maior do que a apontada no estudo recém-publicado. Os dados usados pelos cientistas cobrem um período que vai só até 2016 e não capturam, portanto, os efeitos da explosão do desmatamento durante o governo de Jair Bolsonaro. Desde 2016, uma área de floresta maior que a do Espírito Santo já foi perdida apenas na Amazônia brasileira, e a taxa anual de desmatamento aumentou quase 70%. Além disso, o grupo usou imagens de satélite que só permitiam identificar áreas desmatadas com mais de 25 km2, e não levaram em conta desmatamentos menores ou áreas com mata degradada.

 

O estudo vem a público uma semana depois da publicação da segunda parte do novo relatório do IPCC, o painel de cientistas da Organização das Nações Unidas que faz uma síntese do conhecimento científico disponível sobre a crise climática. O relatório mostrou que a Amazônia é um dos pontos mais vulneráveis aos impactos do aquecimento global no território brasileiro. As secas devem se tornar mais frequentes, a vazão dos rios deve diminuir e as chuvas podem ter uma redução de até 40% na região. O documento do IPCC crava que o risco de que a floresta seja substituída por uma vegetação mais próxima à Savana aumentará se a temperatura subir entre 1,5°C e 3°C.

A perda da Amazônia seria catastrófica para o Brasil e para o clima global. Quando não está degradada, a floresta e o solo funcionam como um ralo de carbono que captura parte do dióxido de carbono emitido pelas atividades humanas, um dos grandes responsáveis pelo efeito estufa por trás do aquecimento global. Se a floresta for substituída por um ecossistema mais degradado, boa parte do carbono estocado na Amazônia será lançado de volta na atmosfera, tornando virtualmente impossível o objetivo do Acordo de Paris de manter o aquecimento da temperatura global abaixo de 1,5ºC em relação aos níveis pré-industriais.

Se a Amazônia desaparecer, o Brasil vai abrir mão também de parte da sua capacidade de se adaptar a um mundo mais quente, já que a floresta ajuda a reter inundações que vão se tornar mais frequentes e atua como uma bomba de umidade que leva água para outras regiões do país por meio dos chamados rios voadores – parte das chuvas que irrigam a agricultura feita no Sudeste e no Centro-Oeste é gerada pela transpiração das árvores amazônicas.

Para Mercedes Bustamante, o estudo britânico deveria funcionar como um chamado vigoroso à ação rápida em defesa da Amazônia por parte de governantes, empresas e da sociedade. “Achávamos que tínhamos mais tempo, mas corremos o risco de perder a Amazônia muito mais cedo do que esperávamos.”

Na avaliação de Carlos Nobre, é preciso tomar ações radicais para reverter a perda de resiliência da floresta. “A mensagem desse estudo é que temos que zerar o desmatamento, a degradação florestal e os incêndios. E precisamos também restaurar as áreas muito desmatadas, para a floresta voltar a reciclar água, aumentar as chuvas e diminuir a temperatura”, afirmou. “Não há outra solução para a Amazônia se quisermos manter a maior biodiversidade do planeta.”

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