Sem uma boa dose de ambição, ninguém se lançaria na aventura de fazer um filme no Brasil ou em tantos outros países periféricos e mesmo, em alguns casos, na Europa. Além desse requisito preliminar, certa audácia e relevância do tema escolhido seriam também ingredientes necessários. O que mais haveria de essencial? Domínio da linguagem, certamente. Algum talento, é óbvio. Persistência e tantas coisas mais. Enfim, cinema é mesmo uma atividade complexa de alto risco.
Quando o talento é escasso, ambição legítima se transfigura em presunção vulgar, enquanto a ousadia tende a virar ímpeto desmiolado. Nesses casos, um tema relevante não é suficiente para sustentar o interesse diante do resultado final. Um bom exemplo recente, vindo da França e da Grécia, é O Jogo do Poder (Adults in the Room, 2019), de Costa-Gavras, recém-lançado entre nós no circuito de salas de cinema – um filme aquém de sua enorme ambição e da relevância de seu tema: a batalha do novo governo grego, eleito em 2015, com o Fundo Monetário Internacional (FMI).
Elucubrações desse teor vêm me ocorrendo com certa frequência, há algum tempo, ao assistir às produções brasileiras da safra a.P. (antes da pandemia), concebidas até 2019, mas só lançadas a partir de 2020 e que continuam a nos ser apresentadas. Ao ver, por exemplo, um dos participantes do Festival de Cinema de Gramado atualmente em curso até o próximo sábado (21/8), tive a sensação de não haver nada a comentar a respeito, salvo que a combinação de ambição, audácia e irrelevância desmesuradas resulta tão pretensiosa quanto vazia (não direi aqui qual é esse filme. Se for o caso, talvez esclareça após a manifestação do júri).
Li declaração do curador do Festival, segundo a qual houve quase duzentos longas-metragens inscritos, sem especificar quantos eram brasileiros, o que seria interessante saber para permitir avaliar a disponibilidade de títulos inéditos no mercado. Do total, atendendo à exigência de terem sido concluídos a partir de 1º de maio de 2019, sete foram selecionados para a mostra competitiva nacional e apenas quatro para a estrangeira.
Conforme escrevi em colunas anteriores, imagino que a se manter o compasso atual de asfixia da produção iniciado em 2019, o estoque de filmes brasileiros inéditos acabará se esgotando. A crise atual se tornará cada vez mais grave, afetando os profissionais do setor, os festivais de cinema e a atividade de modo geral. O mercado será suprido apenas por produções importadas e estará comprometida a própria possibilidade de existir produtores e diretores independentes fazendo filmes brasileiros ambiciosos. Esse parece ser o propósito deliberado ou o desejo inconsciente dos atuais gestores da política cultural e cinematográfica do país, agindo em consonância com o projeto destrutivo dos ocupantes do Palácio do Planalto.
Há sinais de que essa tormenta já nos envolveu. A impressão que se tem é de estar assistindo à raspa do tacho da produção a.P. – filmes defasados em relação à imprevista tragédia sanitária que acomete o país, desovados em salas de cinema que pessoas de bom senso não se aventuram a frequentar, alheios às consequências nefastas do resultado da eleição de 2018, ao alto índice de desemprego e aos acintes cometidos ou anunciados pelo desgoverno federal, como, entre outros, o propósito de vender o Palácio Gustavo Capanema (na sexta-feira, 20/8, às 16h, no Rio de Janeiro, em frente ao Capanema, será realizado um ato contra a venda, promovido pelo grupo Ocupa Minc).
Depois de ter escrito os parágrafos acima, vi outro longa-metragem brasileiro que participa também da mostra competitiva do Festival de Gramado e tive reação oposta à anterior – surpreendido, dessa vez foi um prazer assistir ao filme que se mantém atual, apesar do projeto ter sido iniciado há cerca de dez anos, o que por si só já é um feito. A ambição, nesse caso, está na habilidade em conjugar drama individual com contexto econômico do país; e a audácia se encontra na bem articulada linguagem narrativa em dois tempos que omite certas situações episódicas para se concentrar no conflito central. Sem deixar de ser ambicioso, é um filme antes modesto, com o pé no chão, nada pretensioso, salvo talvez por dois detalhes, que não revelarei agora.
Filmes como esse e alguns outros da safra a.P. demonstram talento, em alguns casos ainda imaturo, mas que anima, justifica a sobrevivência de uma cinematografia brasileira e têm o direito de continuarem a ser produzidos e existir, sendo lançados adequadamente, comentados e vistos pelo maior número possível de espectadores. Essa oportunidade lhes está sendo negada, e novos filmes de seus realizadores não passam, neste momento, de uma possibilidade incerta – poderão vir a ser realizados?
À parte do Festival de Gramado, Chão (2019), de Camila Freitas, se tornou disponível na Sessão Vitrine do streaming de filmes MUBI. O documentário, lançado em abril deste ano, já teve seus méritos reconhecidos em festivais, após ter sido exibido no Festival de Berlim. Em matéria de ambição, audácia e relevância, é um prato cheio. Demonstrando grande talento, Freitas e sua equipe acompanham a ocupação pelo Movimento Sem Terra (MST) da Usina Santa Helena de cana-de-açúcar, no Sul de Goiás, e de uma propriedade do ex-ministro da agricultura Blairo Maggi, onde a colheita de soja é mecanizada. O filme se ressente da opção feita de não haver interação alguma entre quem observa e quem é observado, assim como de seus excessivos 110’ de duração. Por outro lado, há sequências notáveis, a começar pelo prólogo em que Vó e PC conversam durante cerca de 11’ enquanto vigiam as terras ocupadas do alto da torre construída para esse fim. O modo de enquadrar os dois personagens, às vezes de perfil, mas nunca de frente, e o diálogo que gira em torno de suas modestas aspirações, situam Chão de imediato em um patamar elevado, poucas vezes alcançado em nossa produção documental recente.
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Começa amanhã (19/8) e vai até 29 de agosto, online e gratuito, o 32º Curta Kinoforum Festival Internacional de Curtas-Metragens de São Paulo. Entre mais de 600 inscrições brasileiras e mais de 2.600 estrangeiras, serão apresentados 200 curtas-metragens, incluindo produções de outros países. Esses números, por si só, demonstram o potencial dos filmes de curta duração, expressões da “cultura e arte que estão presentes mesmo nos momentos mais difícies”, nas palavras de Zita Carvalhosa, diretora do Festival, “para nos lembrar do que os seres humanos têm de melhor.”