minha conta a revista fazer logout faça seu login assinaturas a revista
piauí jogos

    Angela Merkel em reunião com o então presidente Donald Trump em março de 2017 - Foto: Bundesregierung/Kugler

questões de política internacional

O adeus de Merkel, a anti-Trump

Enquanto nos Estados Unidos e no Brasil debate público virou briga de rua, política alemã mostrou com sua chanceler a assepsia de um seminário de pós-graduação – o que também está longe do ideal

Oliver Stuenkel | 23 set 2021_11h47
A+ A- A

Domingo (26/9) será um dia atípico na Alemanha. Angela Merkel encerrará seu quarto e último mandato, após dezesseis anos à frente do governo. Para os alemães, a troca de bastão é um fenômeno raro. Enquanto nos últimos 39 anos o Brasil teve nove mandatários,  na Alemanha só três pessoas ocuparam o posto de primeiro-ministro – que os alemães chamam de chanceler. Lá a alternância é tão lenta que batiza gerações. Assim, os nascidos no início dos anos 1980 fazem parte da “geração Kohl”, já que guardam lembranças mais ou menos vívidas do governo de Helmut Kohl, que durou de 1982 a 1998. Já a geração Z só conhece uma primeira-ministra, sendo conhecida no país como “geração Merkel”. 

Mas a saída de Merkel não é um acontecimento marcante apenas pela raridade, e suas consequências serão sentidas muito além das fronteiras alemãs. Merkel se tornou a líder mais influente da Europa e talvez a política mais respeitada do mundo. Comedida e republicana, serviu de âncora em anos marcados pela instabilidade global. Após enfrentar a crise financeira de 2008, o colapso econômico grego em 2010, a invasão russa da Ucrânia em 2014 e a crise migratória de 2015, Merkel pretendia limpar as gavetas da Bundeskanzleramt em 2017. A eleição de Donald Trump, em janeiro daquele ano, fez com que a Mutti — “mamãe”, como é apelidada na Alemanha — decidisse concorrer a mais um mandato. O objetivo de Merkel era conter o estrago que o presidente americano causaria no cenário internacional. Ciente disso, Trump atacou-a com mais virulência do que a qualquer outra liderança do Ocidente.

Merkel elegeu o trumpismo como sua última batalha, mas o coronavírus tinha outros planos. Os dois últimos anos de sua gestão exigiram que ela aproveitasse sua vasta experiência em gestão de crise para minorar os efeitos da pandemia. Em março de 2020, Merkel tomou uma atitude inédita em todo seu mandato: fez um discurso à nação no horário nobre da televisão. Em pouco mais de dez minutos, pediu à população para ficar em casa e alertou que a Covid-19 representava “o maior desafio alemão desde a Segunda Guerra Mundial”. Trinta milhões de pessoas assistiram ao seu apelo, convincente o bastante para que boa parte dos alemães passasse a levar o vírus a sério. O efeito não foi conquistado apenas por suas palavras, mas pelo inusitado de ver uma figura alheia aos holofotes achando que era o caso de buscá-los. Se a tendência atual é de líderes superexpostos e conectados, com grande foco em imagem e oratória, Merkel sequer possui uma conta no Twitter, nunca foi conhecida pelos discursos arrebatadores e suas aparições na tevê costumam se limitar a uma saudação insossa no Ano-Novo. Suas escolhas sempre foram no sentido de diferença entre ela e o cidadão comum. Desde seu primeiro mandato, declinou da residência oficial e mora com o marido em um apartamento normal de Berlim. No dia a dia, é avessa a firulas e frequentemente pode ser vista fazendo compras no supermercado. 

Antes de entrar para a política, em 1989, Merkel foi pesquisadora da área de química quântica, ainda na Alemanha Oriental. Durante a pandemia, comandava as reuniões sobre medidas emergenciais metodicamente, buscando o consenso de forma obsessiva. Antes de anunciar a primeira flexibilização do distanciamento social, Merkel analisou as recomendações preparadas por um grupo de 26 pesquisadores de áreas como psicologia e ética. Em seguida, negociou um acordo com os dezesseis governadores do país em reuniões que invadiam a madrugada. A ação errática de líderes como Donald Trump, Boris Johnson, Narendra Modi e Jair Bolsonaro diante da pandemia fez com que o estilo monótono, técnico, confiável e previsível de Merkel parecesse um diamante no palheiro. Diante do caos, ela se mantinha wie ein Fels in der Brandung (“como uma rocha no mar agitado”), conforme dizem os alemães. Até sua aparência transmitia essa mensagem. Com roupas, cabelos e trejeitos basicamente inalterados em quase duas décadas, o estilo de Merkel evocava continuidade, segurança, cautela e até um certo tédio. Seja lá qual fosse a novidade econômica, política ou sanitária do mundo, lá estaria ela, com seu terninho de sempre, o cabelo no mesmo penteado de sempre e as mãos posicionadas no famigerado “losango de Merkel”. 

Sua paciência de Jó estendeu-se até mesmo a Bolsonaro. Enquanto o presidente francês Emmanuel Macron partiu para o confronto durante as queimadas na Amazônia em 2019 e se envolveu numa briga com o mandatário brasileiro nas mídias sociais, Merkel foi bem mais ponderada e só desistiu quando não havia mais jeito. Em conversas com outros chefes de Estado, insistiu que isolar o Brasil não era a solução. Dentro de casa, defendeu ratificar o acordo comercial entre o Mercosul e a União Europeia a despeito da pressão ambientalista, argumentando que desistir da parceria não ajudaria a Amazônia em nada. A chanceler só desistiu do Brasil quando a relação bilateral definhou a um nível lamentável e o governo Bolsonaro decidiu, no mesmo ano, mudar a governança e destino dos recursos do Fundo Amazônia — programa bilionário de financiamento à proteção da floresta. Foi só depois de inúmeras conversas frustrantes com o então ministro do Meio Ambiente Ricardo Salles que a Alemanha optou por suspender os pagamentos. 

O espírito conciliador da chanceler transformou a política alemã em uma ilha de tranquilidade em tempos de polarização global, mas isso não é tão bom quanto parece. O resultado de seus esforços é um debate público moroso demais, sem grandes disputas ideológicas e muito em cima do muro, como se boa parte do país tivesse embarcado em um grande consenso da “terceira via”. Ao arrastar o partido conservador (CDU) para o centro ideológico e quase sempre agir de forma pragmática, Merkel soube esvaziar o programa dos outros partidos ao simplesmente adotar suas pautas, como fez com o aumento do salário mínimo. A maior vítima desse esvaziamento por adesão foi o Partido Social-Democrata (SPD), que fez três tentativas de vencê-la nas urnas, mas nunca conseguiu explicar ao eleitor como exatamente se diferenciaria da chanceler. Ao se posicionar quase como uma figura suprapartidária — sem pender claramente para a direita ou para a esquerda —, Merkel acabou anestesiando o debate público. A forma mais acabada dessa estratégia se exprime justamente em seu jeito de falar, batizado de merkeln. No novíssimo dicionário alemão, merkelar é falar de um jeito tão técnico e monótono que fica quase impossível vencer a pessoa em um debate. Enquanto Trump interditava a conversa fugindo do assunto e falando alto, Merkel conseguia um efeito parecido ao entrar tão profundamente nos meandros do assunto que ele se tornava antes uma equação tediosa do que uma bandeira política capaz de provocar sentimentos. Ao longo dos anos, ela se tornou a própria Midas da despolitização: bastava tocar em um tema para que ele perdesse seu caráter mobilizador. Essa estratégia — chamada de “demobilização assimétrica” — foi fundamental não apenas para baixar a temperatura e evitar a polarização como para manter boa parte de seus opositores em casa nos dias de votação.

Se Trump e Bolsonaro conseguiram inviabilizar o debate público funcional ao negar fatos e técnicas e politizar o impolitizável, Merkel fez algo parecido ao tecnicizar cada mínimo aspecto da política. Enquanto outros países lavam roupa suja diante do mundo e inventam motivos para se estapearem internamente, o cenário político alemão sofre calado, definhando de um mal secreto chamado apatia. Porque, no fim das contas, a saúde da política requer um pouco de briga entre lados claramente delimitados. É preciso haver dois times para o gol valer alguma coisa. Ao neutralizar a energia e o dissenso próprios à política, a Alemanha se viu com uma população letárgica, assolada por um clima de indiferenciação e de tanto faz. 

O eterno pisar em ovos imposto por Merkel acabou atrasando uma série de conversas desconfortáveis que a sociedade alemã precisa ter, sobretudo no âmbito da mudança climática e da digitalização — áreas nas quais o país está preso no passado. Sem querer bater de frente com grandes grupos de interesse como a indústria automobilística, Merkel deixou outros países tomarem a dianteira na construção de cidades sustentáveis. Da mesma forma, qualquer visitante internacional se espanta com o atraso digital alemão, onde a internet é lenta mesmo nas grandes cidades e há regiões rurais que até hoje continuam basicamente desconectadas. A defasagem tecnológica do país ficou bastante evidente durante a pandemia, afetando seriamente a viabilidade das aulas remotas. No âmbito social, o país também tem ficado longe da vanguarda mundial em aspectos centrais como a igualdade de gênero.

Não há dúvida de que sociedades altamente polarizadas podem se beneficiar de uma liderança conciliadora. Os Estados Unidos são prova disso. Bastou eleger um presidente que não desperta paixões viscerais nem em seus apoiadores nem por parte da oposição que a temperatura do debate público já retornou a níveis administráveis. Mas tudo demais é ruim, inclusive a parcimônia. 

Em defesa de Merkel, é preciso reconhecer que houve dois momentos importantes nos quais ela ousou enfrentar a opinião pública. O primeiro deles foi em 2008, quando a maioria dos alemães discordava de sua decisão de resgatar a Grécia, assegurando a permanência do país na zona do euro. Sete anos depois, a chanceler fez valer a sua vontade em um momento histórico, decidindo manter as fronteiras abertas durante a crise migratória e se comprometendo a receber 1 milhão de refugiados da Síria. Isso lhe rendeu ataques veementes dentro de seu próprio partido, e muitos acusaram-na de facilitar a ascensão da extrema direita, que usou a chegada dos imigrantes para promover a xenofobia. Merkel reagiu às críticas com um raro apelo a recursos retóricos clássicos, como a adoção de um bordão. Em inúmeras entrevistas da época, a chanceler fez questão de usar um mesmo slogan motivacional: Wir schaffen das (“Nós vamos conseguir lidar com isso”). E a Alemanha de fato conseguiu. Em 2020, uma pesquisa mostrou que a maioria dos recém-chegados já trabalhava e pagava impostos, e que 80% dos jovens refugiados nutriam um sentimento de pertencimento em relação à Alemanha. O resultado foi surpreendente para uma sociedade que ainda não aceitou que depende da migração massiva para garantir sua própria estabilidade demográfica. 

Vendo o sucesso desses dois episódios nos quais a chanceler ousou bater o pé, é impossível não lamentar que ela tenha assumido tão poucos riscos. Caso tivesse usado seu vasto capital político para acordar a Alemanha de seu estupor e promover debates desconfortáveis, o país poderia ter avançado muito mais em temas como a crise climática e a necessidade de prescindir da proteção geopolítica americana. No entanto, tarefas assim foram deixadas para o seu sucessor, que será decidido nas eleições federais deste domingo (26).

Após dezesseis anos de um confortável banho-maria, é provável que a política alemã do pós-Merkel se torne mais volátil, sobretudo até que a nova liderança se consolide. Por isso, a troca de bastão apresenta uma oportunidade de ouro para reacender os ânimos da população e infundir na arena pública aquela dose de dissenso necessária ao embate saudável de ideias. Se o Brasil pudesse envasar um único mililitro de bile doisladista e despejar sobre a Alemanha, esse certamente se tornaria um caso histórico de cooperação internacional. 

Assine nossa newsletter

Toda sexta-feira enviaremos uma seleção de conteúdos em destaque na piauí