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Antes e depois de Juiz de Fora

As consequências do atentado a Bolsonaro e a erosão da democracia no país

Fernando de Barros e Silva | 07 set 2018_10h49
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Se o Brasil fosse o Museu Nacional, Jair Bolsonaro seria o incêndio. Era essa a primeira frase da coluna que eu estava escrevendo nesta quinta-feira à tarde quando recebi, às 16h14, por WhatsApp, a notícia de que Bolsonaro tinha sido esfaqueado em Juiz de Fora. Ao espanto e incredulidade do primeiro impacto, se seguiram o lapso de egoísmo (“não acredito, perdi minha coluna”) e a constatação óbvia: isso é horrível, horrível em vários sentidos, tudo mudou.

Tudo mudou, mas “tudo” o quê? Não há muita dúvida de que o atentado a Bolsonaro é um acontecimento que divide a campanha presidencial em duas eras (antes e depois de Juiz Fora) e inscreve o dia 6 de setembro nas páginas da história. Abriu-se um abismo entre 5 de setembro e 7 de setembro de 2018, a um mês do primeiro turno da eleição.

Lembro-me, ao escrever isso, do que disse o jornalista Bill Emmott, editor-chefe da revista The Economist entre 1993 e 2006, no livro Visão 20:21 – Lições do Século 20 para o Novo Milênio (publicado no Brasil pela editora Record):

“Em 10 de setembro de 2001, o terrorismo internacional praticado por fanáticos religiosos não era considerado um tópico especialmente importante. Era apenas um medo entre tantos nas listas de ameaças presentes e futuras, mas não um medo muito imediato. Depois das 8h46 da manhã do dia seguinte, esse tipo de terrorismo foi transformado no único assunto de interesse.

Essa mudança de perspectiva era inteiramente compreensível, dada a magnitude, o drama e o horror dos eventos daquele dia, e naquele momento também era totalmente apropriada (…) Contudo, a verdade sobre aquele episódio singular, vista em retrospecto, é que nem a visão do 10 de setembro nem a do 12 de setembro estavam corretas.”

Emmott publicou seu livro dois anos depois que as torres gêmeas foram ao chão, um intervalo de tempo irrisório na perspectiva dos historiadores, mas bastante extenso para quem se dedica a fazer todos os dias uma espécie de registro taquigráfico da história, caso dos jornalistas. É óbvio que o maluco de Juiz de Fora não é Bin Laden, como também é evidente que os atentados têm magnitudes e alcance muito distintos. A despeito disso, mal comparando, hoje nos encontramos no dia 12 de setembro de 2001.

Talvez fosse mais apropriado recordar de outro atentado. Em junho de 2016, uma semana antes da votação do Brexit – o referendo que decidiu pela saída da Grã-Bretanha da União Europeia –, a deputada trabalhista Jo Cox foi assassinada no interior da Inglaterra por um fanático nacionalista. Ao esfaqueá-la e depois atirar contra seu corpo, o assassino gritava “Grã-Bretanha em primeiro lugar!”. A comoção provocada pela morte de Cox levou muita gente a especular que aquele evento trágico teria influência decisiva sobre o resultado, a favor da permanência do país na União Europeia. A posição defendida por Cox, no entanto, acabou sendo derrotada, como se sabe.

 

Faço essas ressalvas como uma espécie de antídoto contra minhas próprias intuições. A primeira delas é que o atentado consolidou a passagem de Bolsonaro ao segundo turno das eleições. Se o eleitorado dele já se mostrava muito pouco suscetível aos apelos de outros candidatos, a partir de agora o vínculo empático com o líder atacado tende a se estreitar, além de assumir contornos ainda mais estridentes. Ficarei surpreso se Bolsonaro não subir nas pesquisas.

Mais grave do que isso, no entanto, é a perspectiva de que a agressão ao presidenciável venha desencadear manifestações assemelhadas – não necessariamente contra candidatos, mas entre os eleitores – e o processo político seja tragado pela espiral da violência. Depois de Juiz de Fora, o risco de que a campanha eleitoral descambe mudou de patamar.

Tudo isso se conecta e se soma ao pecado original desta eleição – que é o banimento da candidatura do líder de fato, nas circunstâncias que conhecemos. Apesar de estar preso desde abril, Lula continua sendo o nome escolhido por quatro de cada dez eleitores e é, de longe, o preferido pelos mais pobres. É inevitável que sua exclusão do jogo dê curso ao sentimento de ilegitimidade que ronda a sucessão.

Ao mesmo tempo, manobrando do xadrez em Curitiba e advogando ou não em causa própria, Lula tem sido extremamente bem-sucedido em sua estratégia política, o que autoriza as especulações a respeito de um eventual segundo turno entre Bolsonaro e Fernando Haddad. É apenas um entre os cenários possíveis, claro, já que Ciro Gomes, Marina Silva e Geraldo Alckmin também estão no jogo. Depois de Juiz de Fora, no entanto, suspeito que as chances de um embate entre Haddad e Bolsonaro aumentaram. De todas as combinações do tabuleiro, essa seria a mais explosiva.

É irônico que o inimigo da democracia se transforme agora em mártir, disputando – ou dividindo – esse lugar simbólico com Lula. Vítima de uma violência que só deve ser repudiada, Bolsonaro não se torna uma pessoa melhor por isso. Ele é o mesmo que disse em 1999:

“Através do voto você não vai mudar nada nesse país, nada, absolutamente nada. Só vai mudar, infelizmente, no dia em que partir para uma guerra civil aqui dentro, fazendo o trabalho que o regime militar não fez. Matando uns 30 mil, começando pelo FHC, não deixar ele pra fora não, matando! Se vão morrer alguns inocentes, tudo bem, em tudo quanto é guerra morre inocente.”

A política como guerra regeneradora, o morticínio como meio legítimo e eficaz de ação, a apologia da ditadura e de seus métodos, a convicção de que os adversários são inimigos e devem ser eliminados – tudo isso fermenta na cabeça de Jair Bolsonaro e define sua personalidade profundamente autoritária. O eco que ele encontra agora em parcela expressiva da população é o sintoma mais gritante da erosão da democracia no país, mas está longe de ser o único.

O Brasil, de certa forma, é o Museu Nacional. E Bolsonaro é o incêndio.

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