“Um cantinho, um violão / este amor, uma canção / pra fazer feliz a quem se ama”. Hoje Antonio Carlos Jobim faria 86 anos. Sua música continua cada vez mais viva. Tom é essa maravilha de ser humano que deixa a gente sem ter o que falar: ao evocar o compositor e sua música, tudo soa pequeno e fora do lugar. Não foi à toa que quando Helena Jobim, irmã de Tom, pediu a Chico Buarque que escrevesse o prefácio de seu livro Antonio Carlos Jobim, um homem iluminado, Chico mandou a ela uma fita gravada em que Tom mostrava algumas músicas para ele, entre as quais a que viria a ser Anos dourados. O “ maestro soberano” celebrou com sua arte o que há de melhor no Brasil, na natureza e no homem. Ninguém como ele cantou a natureza brasileira com tanto deslumbramento: ao ouvir sua música, vemos nascer pássaros, peixes, plantas, matas, mares, rios, lindas e sensíveis mulheres. Na música de Tom renasce a mata Atlântica, sua grande paixão.
O bôto, Antonio Carlos Jobim
Jobim adorava Vinicius, Caymmi, Ary Barroso, Radamés Gnatalli, João Gilberto, Pixinguinha, Villa-Lobos, Debussy, Chopin, sambas, marchinhas, serestas, valsas, modinhas, choro e era a partir de tudo isso e de sua visão iluminada do mundo que ele criava sua música. Tudo começou assim: “Tinha um tio que tocava violão popular e outro que tocava violão clássico – os espanhóis, Bach e Chopin – e fazia aquelas transcrições para a guitarra… Foi aí que fui me apaixonando pela música. Lá em casa não tinha piano, nada disso! Foi através desses tios que fui me aproximando da música…”. Mais tarde, sua mãe “alugou um piano velho alemão e convidou o maestro Hans Joachim Koellreutter para lhe dar suas primeiras aulas de música. “Quem devia estudar piano era minha irmã, mas Helena não queria saber daquilo, e eu sim”. Quando chegava da praia, ficava mexendo no piano, experimentando os sons…” Com Koellreutter aprendeu as noções básicas de harmonia e de contraponto clássicos, ”quer dizer, modal e tonal, algo mais funcional, Debussy e coisas assim”, contaria o professor.
Em 1949 casou-se com Thereza Hermany. Jobim havia entrado na faculdade de arquitetura, mas abandonou o curso e se dedicou ao estudo da música. No final dos anos 40 e início dos 50 começou a tocar nas boates cariocas e foi assim que conheceu um de seus grandes parceiros – Newton Mendonça – com quem mais tarde faria algumas das canções mais emblemáticas da Bossa Nova, como Meditação e Desafinado, Samba de uma nota só, verdadeiras canções-manifesto da nova estética que estava nascendo, da Bossa Nova. Newton Mendonça foi o único parceiro que compunha com Tom as letras e as músicas.
Clique aqui para ouvir Desafinado, com Gal Costa, no LP “Índia” (1973)
Jobim começou a trabalhar para editoras musicais, transpondo para a partitura sambas de compositores talentosos e intuitivos. Mas o que mais lhe agradava era dar assistência ao maestro Radamés Gnattali, que fazia grande parte dos arranjos das músicas gravadas: Radamés via nele um candidato sério a orquestrador e sabia que ele se preparava para isso. Passava para Jobim todas as soluções que adotava na distribuição das partes para a orquestra, o timbre obtido através da utilização de determinada instrumentação, etc. Na Continental, Radamés cuidava das músicas que seriam gravadas e escrevia os inúmeros arranjos para os programas musicais da Rádio Nacional. Tom Jobim ficava ao lado dele, muitas vezes passando para o papel as ideias do mestre, fazendo o mesmo que, 30 anos depois, atribuiria a seu filho Paulo Jobim e ao violoncelista Jacques Morelenbaum. Era uma relação tão útil quanto a de um mestre e um aluno, e tão doce quanto a de um pai e um filho. Por essas e tantas outra coisas que faria depois, Radamés passaria a ser uma das pessoas que Tom mais amou na vida. “Os filhos da gente não são somente os filhos da carne. São também os filhos das ideias”, diria anos depois para justificar porque considerava Radamés Gnatalli “o pai musical de muita gente”, conforme conta Sérgio Cabral, seu biógrafo e amigo.
Sinfonia do Rio de Janeiro, A Montanha, o sol, o mar. (1954) / Antonio Carlos Jobim, Billy Blanco / Arranjo: Radamés Gnattali / Intérpretes: Dick Farney, Os Cariocas, Gilberto Milfont, Elisete Cardoso, Lúcio Alves, Doris Monteiro, Emilinha Borba, Nora Ney e Jorge Goulart. Com Radamés Gnattali e sua orquestra.
O primeiro sucesso de Tom foi uma parceria com Billy Blanco, Teresa da praia cantada por Dick Farney e Lúcio Alves.
Em 1956 aconteceu o grande encontro de Antonio Carlos Jobim e Vinicius de Moraes, uma das mais brilhantes parcerias da música popular brasileira. Vinicius, diplomata e poeta já conhecido, começava a fazer letras de canções e tinha acabado de escrever a peça Orfeu da Conceição. Procurava um parceiro para fazer a parte musical. O primeiro convidado foi Vadico, que por algum motivo, não aceitou. Foi então que seu amigo Lúcio Rangel o apresentou a Tom Jobim, no bar Villariño, ponto de encontro da boemia carioca. Vinicius falou para Tom da peça que tinha escrito e na mesma hora o convidou para fazer a música. Foi quando Tom fez aquela famosa pergunta: “Tem um dinheirinho nisso?”. Deste encontro, nasceram eternas e lindas canções.
Para Orfeu da Conceição, eles compuseram Se todos fossem iguais a você, Lamento no morro, Um nome de mulher, Mulher, sempre mulher e Eu e o meu amor.
Orfeu da conceição – Abertura
Se todos fossem iguais a você com Roberto Paiva.
Lamento no morro, Tom e Vinicius, com Roberto Paiva.
A peça de Vinicius foi adaptada para o cinema pelo francês Marcel Camus, como Orfeu negro (1959), e ganhou a Palma de Ouro do Festival de Cannes de 1959. Mas Vinicius não gostou nada da visão estereotipada da cultura brasileira que Camus mostrou na tela. No entanto, a trilha sonora é belíssima e foi composta não só por Jobim, mas também por Luiz Bonfá (a linda canção Manhã de carnaval é de sua autoria com Antonio Maria). Para o filme, Jobim compôs A felicidade, Frevo de Orfeu e O nosso amor.
Em 1957, compõe em parceria com Dolores Duran: Se é por falta de adeus, Estrada do sol e Por causa de você. Tom dizia que Dolores Duran era “um cometa musical, desses que só aparecem de cem em cem anos.”
Por causa de você, com Dolores Duran.
Em 1958, Tom assinou a direção musical e os arranjos do antológico LP Canção do amor demais, só com composições suas e de Vinicius de Moraes, cantadas por Elisete Cardoso e onde apareceria, pela primeira vez, a batida do violão de João Gilberto :
Chega de saudade
Em 1959 Chega de saudade seria título do LP de João Gilberto – um divisor de águas e símbolo de renovação na música popular brasileira pelo impacto que causou ao sintetizar os elementos deste novo jeito de fazer música, a Bossa Nova. No disco estavam também outras duas parcerias de Tom e Vinicius: Chega de Saudade e Brigas nunca mais.
Em 1960, a pedidos do então presidente Juscelino Kubitschek, Tom e Vinicius compuseram Brasília, Sinfonia da Alvorada
O planalto deserto
Sobre este trecho da sinfonia, Tom escreveu: “A música começa com duas trompas em quintas que evocam as ‘antigas solidões sem mágoa’, de que nos fala Vinicius de Moraes, e a majestade dos campos sem arestas que há milênios se arquitetara. O espírito do lugar prevalece. Duas flautas comentam liricamente as infinitas cores das auroras e dos poentes, sobre um fundo harmônico de cordas em trêmulo. O mistério das coisas anteriores ao homem é exposto numa luz clara e transparente. ‘Onde se ouvia nos campos gerais do fim do dia o grito da perdiz, a quem respondia o pio melancólico do jaó.’ Às vezes, à beira d’água, surge a trama vegetal dos galhos e lianas. O timbre da orquestra escurece. O infinito horizonte se enche de cores do crepúsculo e se escuta uma vez o tema do planalto.”
Em 1962, juntamente com Vinicius, Tom compôs uma das músicas mais gravadas em todo o mundo: Garota de Ipanema, que com seu “doce balanço” conquistou o planeta!
com João Gilberto
Em 1968, Tom Jobim e Chico Buarque apresentaram Sabiá no III FIC. A música originalmente chamava-se Gaivota e tinha sido feita para a soprano Maria Lúcia Godoy. Tom detestava festivais, mas acabou aceitando o convite e como só tinha esta música, pediu a Chico que colocasse uma letra. Jobim não tinha nenhuma pretensão, achava que não era uma música própria para um festival, que não arrebataria o público. Era delicada demais para isso. Por essa razão, apostou uma caixa de uísque com Vinicius que a música não venceria… Mas ela ganhou! Na fase nacional, entretanto, o público não gostou nada da composição nem percebeu que se tratava de uma moderna canção do exílio. Eles a vaiaram e queriam que a vencedora fosse a panfletária música de Geraldo Vandré, Caminhando. Tom teve pagar a aposta. Na fase internacional, Sabiá venceu outra vez.
Esta estória já foi contada diversas vezes, mas vale a pena contar de novo. Em 1972, Tom Jobim estava em seu sítio no Passo Fundo, compondo Matita Perê, sua “suíte matéria” (que teria depois a parceria de Paulo César Pinheiro). No final de um dia de trabalho, lhe vieram à cabeça palavras e uma melodia que ele começou a cantarolar: “É pau, é pedra”. Teresa, sua mulher, achou bonito e Tom foi escrevendo no papel de embrulhar pão, ali mesmo, versos e mais versos, e acabou deixando de lado Matita Perê até terminar a nova canção. Águas de março seria gravada por ele ainda naquele ano no “disco de bolso” do Pasquim. Ela faz parte das canções em que Tom fala da natureza, como nas músicas Chovendo na roseira, Correnteza, Passarim, O boto. Como mostram Zuza Homem de Melo e Jairo Severiano, no livro A canção no tempo, Águas de março esconde sob sua aparente simplicidade uma estrutura sofisticada e complexa: “Essa estrutura apóia uma melodia caracterizada pela obstinada repetição de uma pequena célula rítmico-melódica, construída basicamente com duas notas (a terceira e a fundamental do acorde de tônica), harmonizada por um encadeamento de quatro acordes, com o uso de inversões e outras diferenças sutis – e é neste ponto que se situa a parte mais rica da criação de Jobim – que se resolve invariavelmente no acorde de tônica a cada final de frase, ou seja, de quatro em quatro compassos, nada menos que 18 vezes durante toda a peça. Com a troca de acordes, as mesmas notas, sempre repetidas, vão adquirindo colorido renovado, soando como se fossem notas diferentes, enquanto os referidos acordes acabam por se fixar de tal maneira que, ao se cantarolar Águas de Março eles vêm intuitivamente à imaginação, por meio de nosso ouvido interno. Essa sofisticação se estende à letra, talvez a melhor entre todas que Jobim escreveu. Em dezenas de versos incisivos, diretos, quase sem adjetivação, o poema passa impressões sobre um final de verão no campo, enunciando minuciosamente os componentes da paisagem, encharcada pelas águas de março. Este é talvez “o samba mais bonito do mundo”, disse Chico Buarque.
Elis e Tom
João Gilberto
Matita Perê, Tom Jobim, Paulo César Pinheiro ( 1973)
Crônica da casa assassinada, Tom e Vinicius in Matita Perê (1973)
Clique aqui para ouvir Passarim
Nara Leão, musa da Bossa Nova, na verdade havia gravado muito poucas canções deste estilo (em seu LP de estréia não havia nenhuma). Em 1986 ela gravaria um disco só com Bossa Nova: Garota de Ipanema (Tom e Vinicius), Desafinado (Tom e Newton Mendonça), Wave (Tom), Corcovado (Tom), Águas de Março ( Tom)
Em 1992, Tom foi homenageado pela Estação Primeira de Mangueira, sendo o tema do samba enredo da escola. Depois faria, em parceria com Chico Buarque Piano na Mangueira.
Tom e Chico
Filme A música segundo Tom Jobim, dirigido por Dora Jobim e Nelson Pereira dos Santos
Tom era um homem simples, emotivo, adorava sua família e amigos, beber, comer e prosear, sua “vidinha” carioca. Se viajava, era porque seu trabalho exigia. Passou muito tempo indo e vindo para os Estados Unidos, principalmente para Nova York e o que mais gostava de fazer quando estava lá era andar pela rua sem ser reconhecido. No Rio, muitas vezes, fazia o seguinte: quando alguém o reconhecia na rua e lhe perguntava se ele era o Tom Jobim, ele respondia: “Não sou ele. Sou muito parecido com ele. Muita gente faz confusão.”
Sérgio Cabral conta que depois que Vinicius de Moraes morreu (1980) Tom passou a dizer “Foi a morte do Vinicius que me deu a convicção de que não somos imortais.” Quando Jaguar lhe perguntou se pensava na morte, Tom respondeu: “Bastante, numa boa. Tenho lido muito os poetas que falam da morte. Manuel Bandeira é um craque nisso: ‘O aeroporto de todas as manhãs me dá lições de partir’”. Numa outra entrevista, ele disse: “O que deve preocupar as pessoas é o medo de morrer sem ter feito nada. Agora, esse negócio de ter medo da morte, claro que tenho. Todo mundo tem. Tenho medo de ônibus, de ficar impotente, de comer chocolate. Uma coisa é certa: Deus não criaria o homem para, de repente, destruí-lo. Há alguma coisa aí que não está bem explicada. Eu, por mim, curto este lindo planetinha. Enquanto me deixarem ficar por aqui, fico. Afinal, se Deus deixa que destruam dois milhões de árvores na Amazônia, sem mais nem menos, é porque as faz nascer em outro lugar, onde deve haver macacos, flores e águas altas. É para lá que eu vou, quando eu morrer. Mas, no restinho de vida, vou aproveitar para cantar, denunciar a depredação e proteger a ecologia.”
A luz do Tom, Nelson Pereira dos Santos