Tenente-coronel da Força Aérea Brasileira, o ministro Marcos Pontes, da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações, se aposentou – ou “foi para a reserva”, como determina a legislação em caso de militares – aos 43 anos, um mês depois de retornar de sua famosa missão ao espaço, em 2006. Sua excelente saúde lhe permitiu emendar o fim da carreira militar com o início de uma profícua atividade como palestrante. Nesses treze anos, antes de entrar para a política, Pontes também se tornou coach, consultor e autor de livros de autoajuda. Sua realidade é distante daquela idealizada pela legislação que diz que os militares, na situação de inatividade, têm o dever de “disponibilidade para o serviço” até a morte, mesmo sujeitos a “sacrifícios dos interesses pessoais”.
É legítimo argumentar a favor de Pontes que, no caso (embora jamais ocorrido na história recente do Brasil) de uma convocação de oficiais para uma guerra ou para missões militares, ele deixaria suas atividades para voltar ao serviço. No entanto, enquanto isso não acontece, o impacto de casos como o do ministro para as contas da Previdência Social chama a atenção para as premissas das regras de aposentadoria dos militares. A maior parte dos oficiais se aposenta antes dos 50 anos com integralidade salarial. A justificativa para a aposentadoria precoce é a hierarquia. Por não obter a promoção para patentes mais altas, de coronel ou brigadeiro – no caso de Pontes, aposentou-se como tenente-coronel –, o militar “vai para a reserva” para evitar que seja comandado por um oficial mais jovem ou com menos tempo de Forças Armadas, em cujas fileiras antiguidade é posto.
Uma pesquisa recente feita por demógrafos da Universidade Federal de Minas Gerais oferece mais um argumento para esse debate. Pontes tem grandes chances de passar mais tempo aposentado do que o que passou na ativa. Os oficiais da FAB, revela a pesquisa, têm uma significativa vantagem na expectativa de vida, dependendo da idade de referência, em relação à média dos homens brasileiros. Por exemplo, entre os 45 e 80 anos, os oficiais da Aeronáutica têm uma vantagem de 4,5 a até 4,7 anos a mais do que os homens brasileiros. Para se ter uma ideia, no ano 2000, usado como referência para a pesquisa, um brasileiro de 45 anos tinha expectativa de uma sobrevida de 25,7 anos, enquanto um oficial da Aeronáutica da mesma idade tinha expectativa de viver mais 30,4 anos. Esses oficiais são considerados, segundo a demografia, um “grupo de vanguarda” – ou seja, aquele que, em um país em desenvolvimento como o Brasil, é beneficiado primeiro ou mais intensamente pelos avanços nas condições de vida do que outros segmentos populacionais. Os grupos retardatários vão colher esses benefícios e se aproximar da expectativa de vida dos vanguardistas apenas se os ganhos em saúde e educação forem democráticos ao longo do tempo. Apenas dados de oficiais homens da FAB foram pesquisados, pois as mulheres “entraram apenas mais recentemente” na Aeronáutica e os números não podem ser comparados.
Os demógrafos da UFMG, em artigo publicado na revista acadêmica alemã Demographic Research, batizaram a condição dos oficiais da FAB de “ilhas de Suécia” no Brasil, uma vez que a expectativa de vida desse subgrupo é igual à média do país escandinavo – que registra uma das mais altas taxas do planeta. Na Suécia, considerando a expectativa de vida ao nascer, os homens vivem em média 81 anos e as mulheres, 84 anos, segundo a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico. “Esse é um indicador valioso do tamanho da desigualdade em saúde em um país grande e heterogêneo”, escreveram os autores Vanessa di Lego, Cássio Maldonado Turra e Cibele Cesar. O objetivo da pesquisa não foi estabelecer uma relação direta entre a longevidade dos oficiais da FAB e a Previdência Social. Os pesquisadores estavam mais preocupados em descobrir os determinantes da desigualdade em relação aos grupos de vanguarda. No entanto, como a expectativa de vida dos brasileiros é o argumento oficial para justificar a reforma da Previdência, a descoberta em relação aos oficiais da FAB é um elemento que insinua emergência na discussão sobre a alteração da idade de aposentadoria desse grupo ou de todos os militares.
Defensor da igualdade de idade mínima entre os homens e as mulheres, o ministro da Economia, Paulo Guedes, sempre usa como justificativa técnica para essa alteração a maior expectativa de vida feminina em comparação à masculina. Se elas vivem mais, para Guedes, seria natural que se aposentassem mais tarde. No caso dos militares, porém, como a expectativa do subgrupo nunca havia sido mensurada, o mesmo argumento, até agora, estava ausente do debate. A “ilha de Suécia”, entretanto, ajuda a explicar a participação do segmento militar em 47% no rombo do sistema de Previdência do funcionalismo público no país. De 2017 para 2018, o aumento na despesa só com militares foi superior a 16%, passou de 37,7 bilhões de reais para 43,9 bilhões, segundo dados do Tesouro Nacional. No caso dos aposentados no setor privado, o déficit aumentou 7%. Embora os militares neguem esse percentual com uma série de argumentações sobre as especificidades da carreira, a expectativa de vida ou a de sobrevida (usada nos sistemas de Previdência e no cálculo, por exemplo, do fator previdenciário) resiste acima das peculiaridades.
“Além da seleção inicial dos militares para o ingresso na instituição, os processos que são construídos ao longo da formação, como o padrão de alimentação, oferta de serviço de saúde de qualidade, hábitos de higiene e cuidado com o corpo padronizam positivamente esses indivíduos, anulando quaisquer marcas de dificuldades na origem”, disse Vanessa di Lego, líder do estudo e atualmente em pós-doutorado na Áustria. A perspectiva da pesquisa é longitudinal, analisando 808 militares ingressantes na FAB entre 1947 e 1960 (na segunda fase, para a tese de doutoramento, ela ampliou para 13.341 militares, e de 1943 a 2015). Segundo di Lego, essa é uma oportunidade única de análise de ciclo de vida no Brasil, devido à carência de fontes de grupos de vanguarda com dados disponíveis. Mesmo indivíduos nascidos nas regiões ou cidades mais pobres do país, ao longo da carreira militar, conseguem apagar a suposta desvantagem da origem e atingem altos níveis de longevidade.
O ministro Pontes, embora com essa expectativa de vida e projeção de receber o benefício a que fez jus por tanto tempo, contribui com um percentual abaixo do funcionalismo público, dos aposentados do Instituto Nacional de Seguridade Social e dos ativos do INSS. A revelação da pesquisa evidencia também o aumento da contribuição dos militares ativos e inativos, hoje em 7,5%, para 11%, como se especula – ainda assim três pontos percentuais abaixo do que já pagam muitas categorias de funcionários públicos e como preveem várias propostas de reforma da Previdência elaboradas por economistas. O professor de demografia da UFMG Cássio Turra alerta para o fato da existência de outras “ilhas de Suécia” a serem consideradas no caso da reforma da Previdência: “Os militares são mais saudáveis do que a média da população brasileira, mas os demais funcionários públicos, especialmente os mais graduados, que recebem além do teto do regime geral, também são.”
De acordo com o professor da UFMG, “a idade mínima e a contribuição dos militares precisam aumentar” para oferecer sustentabilidade ao modelo. Vanessa observa, porém, as particularidades da carreira militar e as exigências de exclusividade – embora essas também existam para outras carreiras típicas de Estado. “Os servidores públicos têm um sistema geracional de solidariedade. No caso dos militares, o pacto é com o Estado. No entanto, isso não dispensa uma discussão sobre a viabilidade do sistema atual de pensão dos militares”, afirmou a pesquisadora. Trata-se de um debate, por enquanto, condicionado à aprovação da reforma da Previdência para os civis. E ainda difícil de ganhar transparência. Pontes, por exemplo, preferiu não fazer qualquer comentário à piauí sobre sua aposentadoria, e disse que só fala sobre assuntos referentes ao seu ministério.
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Errata: A primeira versão desta matéria citava uma diferença de nove anos entre a expectativa de vida média dos brasileiros ao nascer e a dos oficiais da FAB. No entanto, como o grupo estudado pelos demógrafos da UFMG é formado por indivíduos adultos, a pesquisa levou em conta a taxa de mortalidade nas idades adultas (a partir de 45 anos) e não ao nascer. Pela limitação da amostra, seria impossível estimar a mortalidade além dos 80 anos com precisão científica. Por isso, os pesquisadores estimaram a vida até essa idade. Os oficiais da FAB, como afirma o estudo, mantêm o padrão sueco e a vantagem sobre a média dos brasileiros. Considerando, portanto, a expectativa de vida em idades específicas, os oficiais da FAB viveriam, segundo a pesquisa, entre 4,5 e 4,7 anos a mais do que o brasileiro médio, entre as idades de 45 e 80 anos. Entre as idades de 55 e 80, os oficiais viveriam 3,6 anos a mais do que a média dos brasileiros e entre as idades de 65 e 80 anos, 2,2 anos a mais (de um total de 15 anos). Essas diferenças, embora possam parecer pequenas, são bastante significativas em termos demográficos.