Omédico Atamai Caetano Moraes atua na linha de frente do combate à pandemia de Covid-19 na cidade de Curitiba, capital do Paraná. Dá plantões em diversas Unidades de Pronto Atendimento (UPA) e também no Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (SAMU). No começo de março, a Prefeitura de Curitiba reorganizou a rede de saúde da capital para evitar um colapso nos atendimentos de doença. Diversas UPAs passaram a funcionar em sistema híbrido: como centros de internamentos para casos de Covid-19 e também como pronto atendimento para ocorrências graves, como infartos e AVCs. Moraes contraiu o vírus e testou positivo duas vezes no ano passado, em agosto e dezembro. Em fevereiro, recebeu a segunda dose da vacina. Agora, quando a capital paranaense vive o pico da doença, com média de 39 mortes por dia (74% maior do que há catorze dias) e ocupação de leitos de UTI beirando 100%, Moraes chega a trabalhar 120 horas por semana. “Tenho vários colegas surtando. Alguns amigos médicos e enfermeiros afastados por burnout”, conta. Para o médico de 26 anos, notificar a morte dos pacientes virou uma rotina desesperadora. “Eu dou em média três notícias de morte por dia. É desumano, gigantesco, o volume de falecimentos. Ser a ponte da despedida é extremamente esgotante.”
(Em depoimento a Plínio Lopes)
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Sou o médico de alguns dos 3.620 pacientes que morreram de Covid-19 aqui em Curitiba. Sou incumbido de notificar os familiares de que seus maiores amores se transformaram em estatística. Mais um, menos um.
Neste ano, houve um colossal aumento da procura de atendimento médico nas Unidades de Pronto Atendimento (UPA). A demanda de internamentos também subiu exponencialmente, e a complexidade dos casos aumentou. A prefeitura de Curitiba formalizou uma espécie de hospitalização da UPA, delegando mais e mais responsabilidades a estas unidades.
Os pacientes que chegam precisando de atendimento são cada vez mais jovens e com sintomas e quadros mais graves. Anteriormente tínhamos menos óbitos e, dessas perdas, a maioria eram idosos. Hoje entubamos com frequência pacientes na casa dos 20 anos e, infelizmente, mesmo eles não costumam ter boa evolução clínica. A grande maioria exige seguimento e tratamento em hospitais, em leitos intensivos, os quais não estão disponíveis, infelizmente. Eu preciso entubar de cinco a oito pessoas num dia, em um plantão de 24h. Ano passado eu passei vários plantões sem entubar ninguém. Piorou demais. A nova cepa tem sido extremamente virulenta e infecciosa para a população.
O maior desafio é a escassez de recursos de toda natureza. Dispomos de poucos profissionais qualificados disponíveis – a esmagadora maioria já está dobrando plantões ou mesmo triplicando jornadas para ajudar nos atendimentos. Faltam estrutura e insumos hospitalares, como bombas de infusão, monitores, ventiladores, medicamentos e afins. Com isso perdemos significativa qualidade no atendimento prestado, sem previsão de melhora do contexto atual.
Temos carência fundamentalmente de médicos, enfermeiros, técnicos, fisioterapeutas, funcionários da limpeza, servidores administrativos, entre outros. Nós não temos mais pessoal para abrir novos leitos. Além disso, os insumos estruturais e as demandas de consumo teriam, quando muito, capacidade para atender quiçá 30% dos leitos atualmente abertos. Em outras palavras: subdimensionamos a demanda e agora sacrificamos a qualidade de atendimento individual para atingir a maior quantidade de pessoas doentes.
Acredito que o que vivo hoje, sem exageros, entrará nas páginas da história. Em décadas que virão, olharemos para trás e vamos refletir sobre o dantesco caos que vivemos. Ter que desenhar estratégias da distribuição de recursos terapêuticos, como medicamentos, de acordo com o prognóstico dos pacientes, em razão da escassez de insumos é um absoluto descaso com a dignidade da vida humana.
Tenho feito cerca de dez plantões de doze horas por semana, o que dá 120 horas por semana. É uma sobrecarga absurda. Todo este tempo na linha de frente e manejando pacientes entre a vida e a morte, com muitas perdas, infelizmente. Os profissionais são capacitados, mas não temos toda a estrutura necessária. Hoje temos pacientes hipergraves em lugares que não foram projetados para esse tipo de atendimento. Com isso, há uma drástica redução na qualidade do atendimento.
Tenho vários colegas surtando. Alguns amigos médicos e enfermeiras afastados por burnout [síndrome causada pela exaustão extrema]. Nossa última fronteira são os profissionais de saúde. E nós estamos por um triz.
Alguns dias são para se esquecer. Nessa semana, entubei a paciente mais jovem que já havia atendido com Covid-19, de apenas 22 anos. Depois, foi um rapaz de 26 anos. Perder um paciente com a minha idade é particularmente cruel. Tão jovem como eu, igualmente vivo, e os sonhos dele agora se interrompem. ‘Vou mesmo precisar disso?’, ele perguntou pra mim com a fala entrecortada, sem fôlego, com os olhos marejados e recheados de desespero ao se deparar com o laringoscópio [instrumento utilizado durante a intubação]. Seria o último suspiro de quem veio para Curitiba assumir o novo emprego no qual havia sido aprovado. O último diálogo. Não se despediu de seus amores, não fez as pazes de suas mágoas, não rezou seu último perdão.
“Olá senhora, você é a mãe do paciente? Infelizmente, não são boas notícias que tenho para dar…”. Quase todo dia tenho de dizer frases assim. Cada vez sou menos eloquente, e a cada notícia é mais uma frustração compartilhada. Ser a ponte da despedida é extremamente esgotante.