Tradução de Rubia Prates e Sérgio Molina
O Sagrado Coração de Apoquindo é um colégio frequentado pelas classes médias e altas de Santiago. Fica na badalada comuna de Las Condes. Às duas da tarde de domingo, 17 de dezembro, passeiam pelas ruas jovens mulheres, idosos e viaturas de segurança particular, que de tempos em tempos param para garantir que tudo está em ordem. Uma das principais preocupações do chileno é a segurança pública. A percepção de que há um descontrole da criminalidade, sobretudo devido ao aumento da imigração irregular de venezuelanos, foi explorada pelos partidos de direita durante a campanha pela aprovação de uma nova Constituição para o Chile.
Las Condes abriga eleitores predominantemente conservadores. Em setembro de 2022, a comuna formou maioria contra a proposta de Constituição encampada pelo presidente Gabriel Boric. Foram 56% de votos “Não” (no país como um todo, foram 62%). A derrota mudou a correlação de forças no Chile. Freada a onda progressista que varria o país desde 2019, deu-se início a uma nova constituinte, liderada dessa vez pelo Partido Republicano, legenda fundada pelo ex-presidenciável de extrema direita José Antonio Kast. A proposta foi à votação naquela tarde de dezembro. Las Condes deu 68% de votos a favor, mas o país a rejeitou com uma maioria de 56%.
“Não acho que ela vá melhorar tudo num passe de mágica, mas pelo menos vai acabar com a farra dos grupelhos políticos e permitir que um futuro governo tire o país do atoleiro”, me disse Juan Fernando Ojeda, um eleitor de Las Condes que passava em frente à escola, um dos locais de votação naquele bairro. Bancário aposentado de 77 anos, dezessete dos quais viveu sob a ditadura de Augusto Pinochet, ele votou “Sim”. Acreditava que a proposta continha “antídotos democráticos” que protegeriam a sociedade chilena da corrupção e do desequilíbrio fiscal, tema que preocupa o país em meio à escalada inflacionária dos últimos anos.
Mais do que tudo, disse Ojeda, essa seria a chance de recolocar o Chile nos trilhos. Faz três anos que 80% da população votou a favor de aposentar a Constituição herdada de Pinochet. Faz três anos que o país é incapaz de substituí-la por outra.
Em julho de 2021, Elisa Loncon, indígena mapuche com uma trajetória respeitada na esquerda chilena, na qual milita há décadas, foi eleita presidente da Convenção Constitucional do Chile. Uma foto imortalizou o momento. Ela aparece com o punho direito erguido, envolta num küpam (tipo de vestido mapuche) azul e preto, a máscara contra a Covid ocultando um provável sorriso. No antebraço, num aceno às feministas, ela exibia um lenço de cores verde e roxo que dizia: “nada sem nós.”
Víamos ali, de certo modo, o resultado do estallido de outubro de 2019, quando protestos irromperam por todo o país, tendo como um de seus principais símbolos a wenüfoye, bandeira mapuche. Os mapuche, maior grupo de povos originários do Chile, vêm sendo reprimidos sistematicamente há séculos e se tornaram sinônimo de resistência. Correu o mundo a fotografia em que um grupo de manifestantes aparece montado sobre a estátua equestre do general Manuel Baquedano González, um herói chileno que presidiu o país em 1891, durante a guerra civil. No topo da escultura, flamulava a bandeira do Chile ao lado de uma wenüfoye.
Depois da brutal repressão conduzida pelos carabineiros, a praça central de Santiago, até então conhecida como Praça Baquedano, onde aconteciam os maiores protestos, foi rebatizada com o nome Praça Dignidade. A palavra de ordem naqueles dias era: “Não foram trinta pesos, foram trinta anos.” Uma referência ao aumento da tarifa do metrô, que fez eclodir as manifestações, e à transição democrática que se arrastava de forma errática havia três décadas, desde 1990.
Essas imagens, hoje, parecem pertencer a um passado distante.
Dois anos depois, em maio de 2023, o país assistiu, desinteressado, à formação de uma nova Constituinte. O Partido Republicano elegeu 23 conselheiros – o equivalente a 35% dos assentos, a maior bancada de um só partido. Luis Silva, advogado ultraconservador ligado à Opus Dei, foi um dos candidatos mais votados. Os grupos indígenas, que em 2022 ocupavam 17 das 155 cadeiras da Constituinte, tiveram apenas um representante dentre os 51 que elaboraram o novo texto.
No domingo do plebiscito, por volta das seis da tarde, teve início a apuração voto a voto, transmitida ao vivo pela tevê. Em menos de duas horas, o resultado já estava sedimentado. Compareceram 80% dos eleitores (o voto no Chile, como no Brasil, é obrigatório). Um rito tedioso, protocolar. Não se viu grandes manifestações.
“O sentimento de cansaço foi fundamental para a vitória do ‘Não’, mas ele era generalizado tanto em uma quanto em outra opção”, diz Vicente Inostroza, cientista político e acadêmico da Universidade Diego Portales, em Santiago. Segundo ele, a opção “Sim” representava, para muitos chilenos, um sentimento semelhante ao “Que se fodam!”, marcante na campanha de Javier Milei, na Argentina. “Algumas pesquisas já indicavam o sentimento de medo, incerteza e raiva, e, como eles estavam bem difundidos no eleitorado, havia pouco sentimento de esperança.”
É natural que fosse assim. Passados quatro anos do estallido, não há sinal de mudança no ar. Essa paralisia, avalia Inostroza, explica a descrença dos chilenos na política. O país, com duas constituintes fracassadas em dois anos, é caso único no mundo. O governo Boric, que se opôs ferrenhamente à nova proposta, sequer comemorou quando ela foi derrotada. A sensação expressa era de alívio. E agora?
O maior foco de resistência à nova Constituição foram os grupos feministas, que se mobilizaram para impedir retrocessos nas leis sobre o aborto legal. A batalha se deu em torno de um detalhe semântico, que, embora pequeno, mudava tudo. “O direito à vida do que está para nascer” tornou-se, nas mãos dos republicanos, “O direito à vida de quem está para nascer”. Não se trata de mudança casual. O uso do pronome implica no reconhecimento do feto como pessoa. A frase poderia ser instrumentalizada, nos tribunais, para tentar revogar a Lei de Interrupção Voluntária, que permite o aborto em três situações: quando a gravidez é fruto de estupro, quando há risco à vida da mãe ou quando a gestação é incompatível com a vida.
Outro ponto de disputa foi a objeção de consciência, conceito comumente reivindicado por médicos e profissionais da saúde que querem o direito de se recusar a praticar abortos com base em suas convicções pessoais. Os governistas conseguiram excluir da proposta a “objeção de consciência institucional”, que permitiria, por exemplo, que hospitais se recusassem a fazer procedimentos de aborto ou a fornecer tratamentos contraceptivos. A objeção de consciência individual, contudo, permaneceu no texto que foi votado em 17 de dezembro.
Uma pesquisa da plataforma Decide Chile mostrou que os jovens e especialmente as mulheres foram decisivos para a vitória do “Não”. O grupo etário que mais rejeitou a proposta foi o dos chilenos com idades entre 18 e 34 anos. Dentro desse grupo, 70% das mulheres e 63% dos homens votaram contra a nova Constituição.
Maira Lucero, universitária de 22 anos e militante feminista, acredita que o resultado da votação se deve, em parte, à politização dos assuntos de interesse das mulheres. “Foi possível pôr em debate o que significava perder o aborto por três motivos”, ela diz. “No domingo, mulheres e dissidentes do país disseram ao Partido Republicano e à extrema direita que eram contra tudo o que eles representam.” Mas foi por pouco: 5,5 milhões de chilenos aprovaram a Constituição, contra 6,9 milhões que reprovaram. Uma diferença muito mais apertada que no plebiscito de 2022.
“Nem celebração, nem arrogância. Bola no chão, humildade e trabalho. Muito trabalho.” Assim, Gabriel Boric concluiu seu pronunciamento após a divulgação do resultado das urnas. O fim do processo constitucional, que leva o Chile de volta à estaca zero, ainda governado pelas leis herdadas da ditadura, é visto pela esquerda como um respiro desejado depois de três anos de desgastes contínuos no Parlamento. Daqui em diante, comemorou o presidente, “as urgências são outras”.
Boric assumiu o governo, em janeiro de 2022, com aprovação de 50% dos chilenos. Um ano depois, eram apenas 27%. Pressionado pela direita, que se radicalizou aos moldes do que aconteceu no Brasil e na Argentina, e por sua própria base eleitoral, que não vê avanços de 2019 para cá, o presidente navega mares turbulentos.
“Há uma tremenda desesperança”, diz Javiera Arce, integrante da Rede de Cientistas Políticos do Chile. “De maio até agora, a leitura do Partido Republicano foi de que o Chile é um país fascista, e não é bem assim. É um país acima de tudo pacato, conservador no sentido de não querer mudanças. As condições materiais das pessoas não melhoraram – na verdade, pioraram desde o estallido social.”
As ruas permanecem quietas. Parte da militância ambientalista e feminista, entre outros grupos que promoviam manifestações, hoje trabalha para o governo. A apatia em meio à crise, diz Arce, é motivo de preocupação. “Pode-se abrir espaço para um caudilho que diga que vai resolver nosso problema agora e as pessoas acreditem”, ela diz. “Essa tem sido a história eleitoral de toda a América Latina desde 2018. Podemos desembocar numa crise muito mais profunda do que a que vemos hoje.”